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A impossibilidade de se construir a referência

No documento Estamira em Três Miradas (páginas 82-86)

Diferentemente da incoerência textual, o terceiro aspecto lingüístico encontrado por Todorov no discurso esquizofrênico foi a impossibilidade de se construir a

referência. Os aspectos lingüísticos citados acima são condições necessárias para a

existência de coerência em um texto. Portanto, a coerência é uma condição necessária à referência (Todorov, 1980, p. 81), mas não suficiente, e sim preliminar. Permita-nos aqui discorrer um pouco sobre a questão da referência antes de delimitarmos com clareza os achados de Todorov e apontarmos os nossos.

As formas existentes em um língua para a ação enunciativa de se referir a um objeto são (a) as descrições definidas, (b) os nomes próprios, (c) os demonstrativos, (d) os dêiticos e os (e) determinantes (Ducrot & Todorov, 2007, pp. 231-233).

As descrições definidas são as expressões que comportam um nominal (nome, nome+adjetivo, nome+relativo, nome+complemento etc.) acompanhado por um artigo definido ou pronome possessivo (o livro; meu livro). Vejamos o exemplo:

Felizmente, nesse período que eu comecei a revelar e cobrar... a verdade... sabe o que que acontece? Felizmente tá quase todo mundo

alerta. Erra só quem quer (anexo A, linhas 34-36).

Nesse trecho, Estamira faz uma descrição definida quando chama “verdade” de “a verdade”, numa tentativa de nos direcionar a atenção para um referente, porém, em toda a sua narrativa, não designa claramente o que seria “esta” verdade! Eis um exemplo de perda da referência determinando uma incoerência do discurso. Nós compreendemos o que ela fala, porém, o que denota não nos remete a um referente objetivado.

Os nomes próprios são aqueles que, em tese, convém a um único ser (Deus, Estamira, Leopoldo), embora tais nomes possam se referir a mais de um referente. Comportam uma ação denotativa, ou seja, são capazes de denotação, que significa a capacidade de um conceito de aplicar-se aos objetos que formam sua extensão, sendo empregado para designar a relação entre um signo lingüístico e uma classe de objetos do mundo (Neveu, 2008, p. 94). Assim, quando vemos narrado por Estamira:

O trocadilo fez duma tal maneira... que quanto menos as pessoas têm... mais eles menosprezam, mais eles jogam fora. Quanto menos eles têm. (anexo A, linhas 48-50).

83 Logo nos vemos diante de um sujeito de uma frase ao qual é atribuído um nome próprio, “o trocadilo”, embora este nome não nos remeta a nada como objeto extralingüístico.

Outro fenômeno observável na proposição acima é a utilização por parte de Estamira do dêitico anafórico “eles” que é utilizado sem que haja uma relação perceptível com um referente antecedente. Eis a definição de anafórico: “um segmento de discurso é chamado anafórico quando é necessário referir-se a um outro segmento do mesmo discurso” (Ducrot & Todorov, 2007, p. 257). Assim, o sujeito da frase está no singular – “o trocadilo” – enquanto que o pronome pessoal “eles” está no plural. Aqui, “eles” é um segmento anafórico já que remete o leitor para um antecedente como forma de dar coerência ao que é narrado numa tentativa de formar referência. Ora, somos obrigados a nos fazer a mesma pergunta que Martins & Costa – “quem são eles?” (Martins & Costa, 2003) – ao constatarmos que Estamira, embora use a anáfora, não faz uma operação de referência que viabilize a coerência de sua narrativa, não nos remete a nenhum antecedente, fato que nos deixa perdidos gravitando em torno de algo que não sabemos o que é ou quem é ou quem são!

Prosseguindo, os demonstrativos são elementos lingüísticos que acompanham um gesto de designação (Todorov, 1980, p. 232), ou seja, aquelas expressões como “isto”, “aquilo”, “este”, “aquele”, que vêm acompanhadas de um gesto denotativo que direciona nossa atenção ao referente explicitado. Aqui devemos ter em mente o seguinte: apenas os demonstrativos não bastam para delimitar o objeto, mesmo que sejam acompanhados pela designação. Um substantivo, eventualmente implícito, é necessário para realizar o ato de referência, pois são eles que recortam o continuum sensível num mundo de objetos (Todorov, 1980, p. 232).

Os dêiticos são expressões cujo referente só pode ser determinado em relação aos interlocutores – chamados também de shifters, embrayeurs (Todorov, 1980, p. 232). Assim, os pronomes da 1ª. e 2ª. pessoa designam respectivamente a pessoa que fala e aquela a quem se fala. O sentido dos dêiticos só pode ser apreendido por alusão do seu emprego. Também conhecidos como dêixis (do grego = designação) exprimem um modo de relação referencial que se manifesta pelo fato dos signos lingüísticos que o exprimem não poderem ser interpretados independentemente de coordenadas pessoais e espácio-temporais definidas pela situação de enunciação (Neveu, 2008, p. 93). Como

84 exemplo, expressões como “eu”, “tu”, “aqui”, “lá”, “agora”, “amanhã”, “esta noite”, etc. são suscetíveis de serem interpretadas diferentemente conforme as situações.

No exemplo abaixo, a palavra em negrito está no masculino singular determinando a perda da referência por não nos remeter a nenhum referente. Só pode ser entendido na situação de produção.

A constelação... Todo o meio... eles ficou com raiva do cometa. Eles tá com raiva do cometa. Há determinados astros perversos... astros negativo... que está com raiva do cometa, porque o cometa achava... que ele não deveria procurar uma carcaça como a minha (anexo A,

linhas 645-649).

Os determinantes são os elementos que devem ser acrescentados para que se possa fixar um conceito a uma certa realidade, fazendo, portanto, a passagem do sentido ao referente. “Livro” não nos remete a um referente, porém o uso do determinante “o” colocado na frente – o livro – tem o poder de denotar não qualquer livro, mas “este” livro. Conseqüentemente, um determinante pode ser um artigo definido, um possessivo, um demonstrativo, um numeral e artigos e adjetivos chamados de indefinidos (alguns, certos, todos) (Todorov, 1980, p. 233). Não apenas teremos a referência estabelecida em “o amigo”, mas também em “um amigo” ou “alguns amigos”.

Estamira está em tudo quanto é canto... tudo quanto é lado... até meu sentimento mermo veio... todo mundo vê a Estamira! (anexo A, linhas

32-33)

Conclui que a referência seria uma construção mental do alocutário – definido como um papel interlocutivo caracterizado por sua função de destinatário direto do discurso e está engajado na interlocução da qual é participante em pleno direito (Neveu, 2008, pp. 27-28) – o qual seria capaz de construir uma representação mental dos fatos evocados a partir dos elementos referenciais dados pelo interlocutor. Um discurso pobre nos seus elementos determinantes da referência acaba por possibilitar uma descontinuidade na construção dessa tão importante função lingüística e fazendo com que os interlocutores se refiram a fatos, pessoas e situações diferentes, às vezes contraditórias, tornando a comunicação impossível, porque incoerente. Portanto,

um discurso sem referência, que não permite a construção de representações, é um discurso que não encontra sua justificação fora de si mesmo, um discurso que é apenas discurso (Todorov, 1980, p. 81).

85 Enfim, Todorov reitera o que antes fora dito por Bleuler, ou seja, que “o paciente tem a intenção de escrever, mas não de escrever alguma coisa (...). Numerosos doentes (...) falam mas não dizem nada” (Todorov, 1980, p. 81) e finaliza com uma boa metáfora, pois nos desvela a questão de o esquizofrênico perder a capacidade de denotar o objeto de sua fala, de seu desejo e de sua querela: “escrever é para o esquizofrênico um verbo intransitivo, ele fala sem dizer” (Todorov, 1980, p. 81).

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No documento Estamira em Três Miradas (páginas 82-86)