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A verdade, a revelação e a missão

No documento Estamira em Três Miradas (páginas 136-139)

A minha missão, além de d’eu ser a Estamira, é revelar... é a verdade, somente a verdade. Seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então... ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes... Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não.

(anexo A, linhas 9-13).

Na proposição acima, podemos perceber, frase a frase, que o sujeito actante (S) é a própria Estamira que diz ter uma missão (O), um propósito especial a ser realizado.

A

(D1) = ser Estamira, ser importante (D2) = os expectadores, os inocentes. (S) = Estamira (O) = a missão, revelar a VERDADE, ser Estamira, ensinar.

137 Ainda, coloca-se direcionada a outro objeto, “ser Estamira” (O). O sujeito actante aqui diferencia-se do objeto ao se colocar numa direção de realização deste, ou seja, o ser por detrás do nome “Estamira” está em busca do objeto “ser Estamira”. Ora, de início já evidenciamos uma fato particular e intrigante pertinente à natureza do discurso de da protagonista. Ela está dissociada dela mesma. Seu eu está posto como objeto tanto para D2 quanto para Op e, por isso, se encontra como alvo para o desejo ou cobiça do outro. Também, essa característica pode ser uma particularidade do funcionamento psicótico, ou pelo menos de sua dinâmica gerativa, como também da dinâmica narcísica das neuropsicoses narcísicas, como definira Freud.

Porém, continuando nossa análise, D1 parece estar oculto, pois, como essa narrativa inaugura a fala de Estamira, não temos acesso ao eu da enunciação, embora ele comece a se insinuar. No entanto, analisando o triângulo psicológico, “D1 quer que S deseje O no interesse de D2”, poderíamos nos perguntar: por que Estamira deseja ser “Estamira” e ter uma “missão”? Ora, a protagonista está inserida em um contexto sócio- cultural e, conseqüentemente, é motivada por acontecimentos passados vividos. Já que motiva-se a colocar seu nome próprio como alvo do desejo, destaca-o do seu estatuto de ordinário, habitual, enaltecendo-o, como se seu nome estivesse, por necessidade, deixando o pólo do comum para direcionar-se ao pólo do extraordinário, e mitificando- o, como forma de deixá-lo para a posteridade. Logo, parece-nos que aqui se inicia uma auto-intitulação própria e freqüentemente encontrada em pessoas com tendência grandiosas e megalomaníacas, ou seja, já de início vemos se insinuar as pegadas de um paranóico. Para além de intitular-se com nomes valorativos de superioridade, Estamira destina seu desejo não para um objeto de valor socialmente reconhecido – uma rainha, presidente, mãe de Deus, ou o próprio Deus –, mas sim destina a flecha do desejo para o seu próprio nome, como se ele fosse mais, o ponto máximo de chegada do desejo, detentora de uma singularidade última, para onde se movem suas aspirações. Parece dizer-nos que “ser Estamira” é mais ou melhor que ser qualquer outra coisa acima dela mesma.

Ainda, se deseja realizar uma missão (O), deve estar sendo motivada por um desejo de mudança do saber comum. Aqui se insinua outro objeto importante, “revelar a verdade”. Vemos que o triângulo ideológico nos é importante aqui. Ela deseja “revelar a verdade” em benefício dos inocentes. Portanto, Estamira está inserida em um contexto de mundo, como fantasia própria ou realidade efetiva material, onde a mentira se encontra em conflito com seus desejos e, mais além, parece acreditar que a mentira

138 também atrapalhe os inocentes, tanto é que direciona sua tarefa para beneficiá-los. Nesse mundo em que vive, a verdade está oculta pela mentira e, logicamente, isso não é do seu agrado. Para ela, o ocultamento da verdade tem um custo e serve de motivação para o seu desejo de revelar

a verdade, somente a verdade. Seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então... ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes... (anexo A, linhas 9-13).

Os triângulos psicológico (D1-S-O) e ideológico (D2-S-O) perfazem o contexto motivacional e histórico nos quais Estamira está inserida e dentro dos quais seus desejos assumem significação. Assim, é possível inferir que ela está sendo motivada para o objeto (O) tendo em vista a atenção de D2, ou seja, desempenha sua tarefa em função de alguém que está inserido no actante destinatário. Na proposição de nossa análise, “os inocentes” desempenham o papel de alvo de seus esforços, sendo diante deles que ela se constrói como objeto (O) grandioso (“ser Estamira”) e profético (“revelar a verdade”). Ainda, sua emersão como objeto de atributos especiais revela sua motivação narcísica, pois se põe como centro do olhar do destinatário, cuja oferta é ela mesma e não algo que possui ou que poderia dar e prescindir. Tanto é que, como explicitaremos em análises adiante, ela não tem oponentes existenciais, apenas conjunturais.

Outro aspecto importante fruto da análise anterior é o fato de “os inocentes” (D2), como vemos na frase “os inocentes... Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não.”, serem postos por ela no lugar de oponentes (Op). Ora, se aqueles que antes eram o alvo de seu beneplácito, de repente, perdem a ingenuidade e se transformam em oponentes (Op), fato evidente quando Estamira repara a frase proferida vertendo o estatuto de inocente para “esperto ao contrário” numa espécie de desistência ou reformulação do dito anterior, é porque não encontrou um actante simpático no outro lado da linha comunicacional (S-O-D2). Ainda, não vemos aqui a presença de uma actante adjuvante (A), bem como em outras proposições ao longo de toda a narrativa. Nenhum adjuvante (A) concorda com o objeto (O) defendido por ela. Portanto, o eixo do conflito, na figura do actante Op, fica preenchido pelos atores “esperto ao contrário” e, numa espécie de reversão de posição, por “os inocentes”, que, na visão de Estamira, parecem desejar plantar a mentira para a qual ela tem o antídoto. Eles têm ações ludibriosas e enganadoras, as quais ela desvendou e quer apresentar. O “esperto ao contrário” se opõe ao seu mundo, impedindo que a protagonista realize com sucesso a trajetória comunicacional para a

139 concretização da sua missão, ou seja, ele impede que Estamira tome posse do seu objeto (O), rivalizando-a e opondo-se a isso.

Podemos observar aqui uma outra característica própria do modelo actancial a ser explorada a fim de futura legitimação. No mundo psicótico, no que se refere aos atores dramáticos, o objeto (O) não é cobiçado efetivamente, quanto à realidade efetiva material, pelo oponente, ação que ocorre apenas no imaginário do sujeito (S). No decorrer do drama, o sujeito (S) deseja o objeto (O) sendo rivalizado por uma cobiça imaginária do oponente (Op). Portanto, se constitui uma narrativa monofônica quanto ao actante objeto, já que, se construíssemos outro modelo actancial (2) colocando como sujeito (S2) o oponente (Op) de S1, S2 não teria o mesmo objeto (O) que o sujeito (S1), o que nos mostra a inexistência de uma rivalidade conflitiva real, que ocorre apenas na realidade psíquica, imaginária de S1. Ou seja, nessa trama vivida pelo sujeito (S1), o oponente (Op) não é ator – personagem que executa (Ubersfeld, 2005, p. 63) –, pode ter um papel – , porém não atua.

No documento Estamira em Três Miradas (páginas 136-139)