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Alterações do pensamento

No documento Estamira em Três Miradas (páginas 62-65)

Por pensamento entende-se na tradição aristotélica o conceito, o juízo e o raciocínio, considerados estes como elementos constitutivos do pensamento, enquanto que o curso, a forma e o conteúdo, são as dimensões do processo do pensar (Dalgalarrondo, 2008, p. 193).

O elemento conceito pode ser definido por “uma construção simbólica do espírito que, além dos dados sensoriais, tenta alcançar a essência dos objetos, agrupando-os num mesmo conjunto” (Paím, 1993, p. 71) e é entendido como o elemento estrutural básico do pensamento, resultante da síntese por abstração e generalização de um número de fenômenos singulares (Dalgalarrondo, 2008, p. 194; Paím, 1993, p. 71).

Os juízos são formados a partir de um processo que conduz ao estabelecimento de relações significativas entre os conceitos básicos e se constitui na afirmação de uma relação entre dois conceitos (Dalgalarrondo, 2008, p. 194).

Por sua vez, o raciocínio relaciona os juízos perfazendo um modo especial de ligação entre conceitos, de seqüência de juízos, de encadeamento de conhecimentos (Dalgalarrondo, 2008, p. 194), ou seleciona e orientar os dados do conhecimento, tendo como objetivo alcançar uma integração significativa, que possibilite uma atitude racional ante as necessidades do momento (Paím, 1993, p. 115).

O curso do pensamento é o modo como o pensamento flui, a sua velocidade e seu ritmo ao longo do tempo, enquanto a forma conceitua sua estrutura básica, sua arquitetura, preenchida pelos mais diversos conteúdos e interesses do indivíduo, conteúdos que referem-se àquilo que dá substância ao pensamento, os seus temas predominantes, o assunto em si (Dalgalarrondo, 2008, p. 195).

Os delírios e a condensação de conceitos já foram abordados em tópicos anteriores. Portanto, vamos nos ater aqui a alterações do pensamento definidos como concretismo e afrouxamento das associações cujos fenômenos se apresentam com clareza no documentário analisado.

Concretismo ou pensamento concreto trata-se de uma tipo de pensamento com

evidência de dificuldades na distinção entre o abstrato (simbólico) e o concreto (imediato), sendo que o pensamento se adere mais à dimensão sensorial da experiência

63 (Dalgalarrondo, 2008, p. 198). O indivíduo tem dificuldade de compreender a ironia, o subentendido, o duplo sentido, bem como categorias abstratas de modo geral (Dalgalarrondo, 2008, p. 198). Não é tipicamente um sintoma esquizofrênico, pois pode ser encontrado em pessoas normais como resultado da baixa escolaridade e cultura (Paím, 1993, p. 126).

As associações frouxas ou afrouxamento das associações são o resultado do afrouxamento dos enlaces associativos (Dalgalarrondo, 2008, p. 202), ou seja, o processo associativo que permite o encadeamento das idéias é fluído, pouco articulado, transparecendo uma tendência a pouca ou nenhuma coesão entre as idéias ou conceitos. São alterações comumente observadas na esquizofrenia, principalmente em sua fase inicial.

No quadro 3, página 62, vemos algumas das alterações citadas acima. Vemos a dificuldade que Estamira teve de relacionar a fala de sua filha a um conceito mais abstrato de “diferença de gostos”. Estamira demonstrou, assim, que tem dificuldade de transitar entre pensamentos concretos e abstratos. Relacionou as cores, ditas de forma metafórica por sua filha para representar um exemplo de diferença entre opiniões, não com o assunto levantado por Carolina, mas à sensorialidade da palavra cor e, portanto, não conseguiu entender o teor da afirmação de sua filha. Exemplo claro de concretismo do pensamento.

O processo de pensamento de Estamira demonstra várias alterações do ponto de vista da sua forma. Nos dois exemplos citados abaixo, no campo das associações frouxas, verificamos uma tendência à descontinuidade do assunto, bem como um encadeamento lógico fraco, fruto de associações de idéias com pouca coesão. A

distraibilidade – “instabilidade marcante e mobilidade acentuada da atenção voluntária,

com dificuldade ou incapacidade para fixar-se ou deter-se em qualquer coisa que implique esforço produtivo, determinando com que a atenção seja desviada de um objeto a outro” (Dalgalarrondo, 2008, p. 106) – é um sinal perceptível ao observador atento que nos permite verificar que determinadas frases perdem o paralelismo semântico com as que sucedem-nas. É possível também verificar uma pobreza do discurso, pois vemos um pensamento de estrutura pobre e rudimentar com tendência a uma raciocínio concreto, cujos conceitos são escassos e utilizados em sentido mais literal que abstrato ou metafórico. A abstração ocorre com dificuldade, sem consistência.

64 Ainda, no segundo exemplo de associação frouxa, podemos observar várias

palilalias e logoclonias, bem como o mesmo fenômeno de baixa coesão no

encadeamento das frases, com frouxidão das associações.

Outro fenômeno relatado pela psiquiatria clássica que podemos citar nos exemplos abaixo é o fenômeno do psitacismo:

alteração muito excepcional da fala, consistindo em um raciocínio sobre as palavras, sem considerar as idéias que as representam, com uma inundação da linguagem através de repetições (Martins, 2003, p. 361).

É muito comum Estamira construir teorias em cima de palavras. De “controle remoto” constrói idéias de natural e artificial. Dos “nervos”, por similaridade de forma, dá origem a teorias sobre os “fios elétricos”. Do “ferro” passa à lã, gradações de temperatura que são tomadas sem objetivo aparente, o que determina a interrupção abrupta de sua fala. No segundo exemplo de associação frouxa, vemos também o fenômeno do psitacismo. De “gás” constrói uma idéia de “gás carbônico”, o qual se transforma em material combustível bom para cozinhar ou pra qualquer coisa.

Quadro 3 - Exemplo de alteração do pensamento encontrado no documentário "Estamira"

Concretude Associação frouxa

Estamira – Que ponto de vista o quê? Ponto de vista errado!

Carolina – A senhora gosta do rosa, eu gosto do amarelo... e aí?

Estamira – Que gosta do rosa, gosta do amarelo o quê!

Carolina – Eu sou obrigada a gostar do rosa igual à senhora?

Estamira – Cor não tem nada a ver com isso!

Quem foi que falou que eu não gosto dele? Só não é isso que vocês pensam!

“Ah, o controle remoto. Ó... Tem o controle remoto superior, natural... e tem o controle remoto artificial. O controle remoto é uma força quase igual assim, mais ou menos igual... à luz, à força elétrica, à eletricidade, sabe? Agora é o seguinte, no homem... na carne e no sangue tem os nervos. Os nervos da carne sangüína... vêm a ser... os fios elétrico. Agora os deuses, que são os cientistas... técnico... eles controla... ele... ele vê aonde ele conseguiu... os cientistas, determinados trocadilos, ele consegue... porque o controle remoto não queima, torce. O cientista tem o medidor que controla, igual o ferro, o ferro ali, aquele que tem os número. Tem pra lã, tem pra... É... tão simples, né?”

- “Eu não gosto de falar lixo, não, né? Mas vamos falar lixo. É cisco, né? É caldinho disso. É fruta, é carne, é plástico fino, é plástico grosso... é não sei o que lá mais... E aí vai azedando, é laranja, é isso tudo... E aí faz esse puquê, sabe? É... aí, imprensa, azeda, fica tudo danado e faz a pressão também. E aí vem o sol e esquenta e mais o fogo de baixo... aí, forma o gás, o gás carbônico, entendeu? Do qual o gás carbônico serve pra... até pra cozinha, pra qualquer coisa. Mas ele é forte, ele é bravo. Quem... não consegue a... tem gente que não se habitoa com ele. Não dá conta... é tóxico”.

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No documento Estamira em Três Miradas (páginas 62-65)