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Todos os elementos apresentados em nosso trabalho, até então, vêm apontando para uma correlação de forças ainda desfavorável aos trabalhadores rurais, o que tem tensionado para a reprodução de condutas e relações, em geral, conservadoras no campo. Isto

encontra subsídio em condições objetivas e materiais de produção agrícola ainda predominantemente sustentada na propriedade privada e no trabalho familiar.

No entanto, vale destacar que as relações de propriedade nas áreas desapropriadas demonstram certa diferença das relações predominantes, conforme já elencamos nos capítulos anteriores, pois, no âmbito local, não predomina a exploração do trabalho alheio (a terra é de quem nela trabalhe) e ainda há coexistência do trabalho coletivo com o individual ou familiar, como é o caso da Lagoa do Mineiro. Por outro lado, essa situação, em determinada medida, também nos apresenta semelhanças, em alguns aspectos, com as formações econômicas pré- capitalistas, caracterizadas por Marx (2008).

A cooperação no processo de trabalho que encontramos no início da civilização humana, nos povos caçadores ou, por exemplo na agricultura de comunidades indianas, fundamentam-se na propriedade comum dos meios de produção e na circunstância de o indivíduo isolado estar preso à tribo ou à comunidade, como a abelha está presa à colméia. Distingui-se da cooperação capitalista sob dois aspectos (...). A cooperação capitalista, entretanto, pressupõe, de início, o assalariamento livre que vende sua força de trabalho ao capital. Historicamente, desenvolve-se em oposição à economia camponesa e ao exercício independente dos ofícios (p.387).

Percebendo essa realidade em sua amplitude, parte de um conjunto de relações que conformam a totalidade da vida social no atual período histórico, constatamos, conforme demonstrado por Marx (2006), que a relação entre capital e trabalho

pressupõe um processo histórico que dissolve as diversas formas nas quais o trabalhador é um proprietário e o proprietário trabalha. Isto significa, antes de mais nada: 1) Uma dissolução da relação com a terra como uma condição natural de produção que o homem trata como sua própria existência inorgânica (...) 2) Dissolução das relações em que o homem mostra-se como o proprietário do instrumento (...) 3) Implícito em ambos está o fato do homem possui meios de consumo anteriores à produção, necessários a sua manutenção como produtor (...) compartilha dos meios de subsistência do mestre à moda patriarcal (...) 4) Há a dissolução das relações os trabalhadores mesmos (...) ainda são parte direta das condições objetivas de produção e objetos de apropriação (...). Para o capital o trabalhador não constitui uma condição de produção, mas apenas o trabalho o é (...). E o capital se apropria não do trabalhador mas de seu trabalho – e não diretamente mas por meio de troca (MARX, 2006, p.91-93).

Um dos pressupostos do modo de produção capitalista é a separação do “trabalho livre” das condições objetivas de sua efetivação, dos meios de produção (da terra, por exemplo), o que significa a dissolução tanto da “pequena propriedade livre” como da “propriedade comunal da terra” (MARX, 2006).

Tais condições históricas indicam que, na lógica de produção de valor de uso e valor de troca, os produtores das áreas de “reforma agrária”, hoje, também compõem o amplo circuito da divisão social do trabalho e o conjunto denominado de “trabalhador coletivo”. Desta forma, “o relacionamento do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho é o de propriedade” (Idem, p.65). Sobre isso, o MST formulou a seguinte análise:

Os atuais Sem Terra (...) ao lutarem pela terra trazem em seu horizonte, a posse da terra individual familiar, como a melhor maneira de superar sua condição de exploração e de privação. Estes trabalhadores, entendem que sua libertação passa pelo acesso à propriedade privada da terra, para poderem dispor pela primeira vez em suas vidas de forma plena e livre o seu destino e gerirem autonomamente as suas vidas. Não se constituiu na consciência destes trabalhadores, o rompimento destas condições de exploração, pelo caminho da coletivização da terra (...). Portanto, o lote individual familiar é que se afirmou no horizonte das famílias que lutam pela terra (...). Ele esta sinalizando para o MST que esta disposto a fazer individualmente seu próprio destino e o de sua família, que passa também a ser sua propriedade. Este ser não possui apenas o lote, mas estabelece sobre ele o seu próprio governo, com leis próprias, com a organização do trabalho a partir de sua vontade e desejo, com planos de produção, relações de trabalho e de comercialização próprios e ninguém poderá intervir, a não ser nos aspectos em que ele decide contribuir. Esta relação individualizada e individualizante com a propriedade, determinará o modo de agir e de pensar destes ser social e se tornará cada vez mais rígida quanto maior for o tempo de duração dessa relação (...). Além de afirmar seu poder individual, dispensando a ação comunitária e da organização, ele se relacionará com as estruturas sociais (cooperativas, associações, organizações políticas e religiosa, etc) somente para tirar vantagem, buscando proteger e ampliar seus bens privados (...). Estes assentados, via de regra, participarão da vida social e econômica, seguindo a lógica do seu interesse material e do prazer individual (...). Sua consciência se desenvolve em torno do aspecto da propriedade da terra, dos bens e dos interesses da família. Sua participação na vida social ou das lutas políticas somente terá sentido se ele perceber que terá ganhos ou benefícios, tendendo a valorizar e a compreender somente os aspectos econômicos da luta, se afastando das ações organizadas que visem aspectos políticos nas reivindicações164.

O núcleo central responsável pela organização da vida social nos territórios continua sendo a família e a propriedade privada. Isso não seria diferente tendo em vista que tal forma de organização social é fruto de um processo histórico que, com o advento da “nova divisão do trabalho acarretou uma nova divisão da sociedade em classes”, levando a destruição das antigas formas de vida em coletivo e, conseqüentemente, o trabalho comum da

164 Documento Os assentamentos no centro de nossas ações. MST, Setor de Produção, Cooperação e Meio

terra que antes era vigente. Assim, “a terra cultivada passou para usufruto das famílias particulares” (ENGELS, 1980, p.175).

Percebe-se, portanto, conforme já nos indica Engels (1980), que a transição, a consolidação e a permanência da propriedade privada deu-se, e ainda dá-se, necessariamente com o vínculo entre dois principais complexos da modernidade: o Estado e a família nuclear burguesa. Esta passa a ser “imagem e semelhança” para a organização de todos os indivíduos, de todas as classes. Desta forma, desde então, a família individual assume o papel de “unidade econômica da sociedade” sendo a primeira forma de família que não se baseia em condições naturais, “mas em condições econômicas e, de modo específico, no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva que havia surgido espontaneamente” (Idem, p.71).

É, portanto, no atual “estágio” de desenvolvimento da sociedade capitalista que a divisão do trabalho, fixando a oposição entre campo e cidade, atinge “seu pleno desenvolvimento e revoluciona toda a sociedade anterior” (Idem, p.185), minando o caráter comum da produção e da apropriação “instaurando a apropriação individual como regra predominante”. Assim, a produção mercantil capitalista torna-se a forma dominante. Essa dinâmica é favorável ao surgimento de um segmento já consolidado em nosso tempo, que “pela primeira vez (...) sem tomar absolutamente parte na produção, conquista a direção da produção em seu todo e submete a si economicamente os produtores” (Idem, p.177): os atravessadores.

Fruto também desse processo que institui a família, tal como hoje concebemos, é a divisão sexual do trabalho fundada na supremacia do homem sobre a mulher e seus filhos. Relação de dominação que passa a exercer função central na perpetuação da propriedade privada. Nesse processo o Estado exerce função primordial. Este

não é, portanto, de modo algum, um poder que é imposto de fora à sociedade e tão pouco é a “realidade da idéia ética”, nem “a imagem e a realidade da razão”, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando essa chega a um determinado grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que essa sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está dividida em oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que essas oposições, classes com interesses econômicos em conflito não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Esse poder, surgido da sociedade, mas que se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela, é o Estado (ENGELS, 1980, p. 181).

Vemos, então, que essa caracterização é, na verdade, expressa de forma particular na contemporaneidade. Os traços desse processo constituem a organização da vida dos produtores que vivem e trabalham, hoje, no campo brasileiro. A realidade da Lagoa do Mineiro nos aponta algumas condições econômicas e ideológicas geradas pela primazia da propriedade privada e do trabalho familiar. Essa situação é descrita e transposta claramente nos depoimentos:

A situação que existe aqui é que muitas vezes o individualismo pesa muito, né. O individualismo afasta as pessoas muitas vezes do coletivo, sabe? (...) A pessoa melhorou de situação, melhorou de vida aqui dentro do assentamento e se individualiza e aí, na prática dele, ele acha que tem o mesmo direito, aí ele faz um roçado aonde quer, pode fazer uma casa pro filho... tudo isso dizendo que „isso aqui também é meu‟ (...) quer dizer, ele não ver o coletivo como se fosse dele e isso é uma insatisfação, pra mim, aqui dentro, sabe? (...). O caba não deixa os seus afazeres pra ser coletivo, né. Porque no dia que tu tá no coletivo, tu tá deixando de fazer o seu (Entrevistado 02/ Representante da COOPAGLAM).

O problema é esse negócio de não ver o coletivo produzindo pra si, né, porque é pouca coisa, fica na associação, nas despesas... Ele não vê o lucro no seu bolso (Entrevistado 17/ Representante da localidade Córrego das Moças).

Não, sem dúvida, a produção na parte familiar o retorno tá maior (...). É porque, na realidade é a aquilo que eu acabei de falar, né. São as necessidades básicas de cada um, que isso puxa muito a diferença. Primeira coisa: o individual, eles se sentem muito como uma coisa deles. Ele tá ali cuidando e diz: „isso aqui é meu e da minha família‟. No coletivo, ele tem ainda, no pensamento dele, uma coisa: „tá lá, mas, se eu morrer, eu não sei se faço parte, se minha família vai fazer parte‟. Ontonce, que é eu não assumir o coletivo com a responsabilidade igual ao individual, como dele. Eu assumo muito mais o coletivo que seja uma coisa de fora a parte. E ele não entende que a razão e a valorização de uma associação, de uma cooperativa, de um assentamento são as coisas coletivas. O básico é a coisa coletiva que é quem puxa, quem dá o nome (Entrevistado 01/Representante do Colegiado Gestor).

„Eu quero o meu, eu quero desse jeito‟ (...). Porque a Reforma Agrária tem muitos modelos (...). Quando você quer a terra, é um modelo. Agora, quando ganhou a terra, venceu a batalha, como nós, agora já tem outro modelo. São muitos modelos (...). Aí depois vem aquela estória do „meu‟,‟ eu quero é o meu‟. Aí pronto (...). O modelo daqui e de todo assentamento é o conjunto, porque, se não, não acontece nada, né. Se não tiver conjunto, como é que nós vamos receber o que nós quer? (Entrevistado 15/Representante da localidade Corrente).

Essas condições objetivas e subjetivas incidem diretamente sobre a visão de mundo e a participação coletiva dos produtores que tendem a se afastar do projeto político da

classe, reconhecendo a ordem social existente como a única possível. Isso principalmente diante das dificuldades, estruturantes e conjunturais, encontradas no âmbito da organização coletiva, expressas principalmente através dos fenômenos presentes nas relações sociais cotidianas da realidade local, como “cooptação”, “corrupção”, “individualismo”, “autoritarismo”, “oportunismo”. Tudo isso implica na eliminação da expressão social das relações, reduzindo-as a uma relação pessoal direta, descaracterizando a identidade coletiva dos trabalhadores e desestimulando-os perante a possibilidade de efetivação de uma organização coletiva que venha realmente a atentar os interesses de todos.

Tal processo incide de forma particular e em maior proporção sob os segmentos oprimidos dentro da própria classe, como as mulheres e os jovens. Isto tendo em vista que

o assentado, ao colocar a cerca em seu lote, estará também submetendo todos os membros da sua família ao desígnio e a vontade do homem, do cadastrado. Os jovens e as mulheres passam a ser refém do livre arbítrio do “chefe da família”, reproduzindo-se aquilo que é de mais atrasado e conservador nas relações entre as pessoas: o machismo. A reprodução destes valores e destas condutas conservadoras nos assentamentos ocorre com muita freqüência.165

Sobre isso, observamos que, apesar do histórico de participação das mulheres, desde o processo de luta pela terra, nas ações coletivas da Lagoa do Mineiro, as instâncias de decisão são formadas, em sua maioria por homens “cadastrados”. O MST, na esfera estadual, por exemplo, segundo a Dirigente do Setor de Produção do MST no Ceará, tem uma particularidade “que é a estória das mulheres nas instâncias (...) nos outros estados não têm mulher coordenando setor de produção. O estado do Ceará foi o primeiro estado a ter mulher dirigente nacional. Então, a participação das mulheres aqui é uma coisa bem importante”, nos diz a dirigente.

A condição de “cadastrado” acaba implicando sobre aqueles que fazem parte diretamente da organização, mas que não estão sob essa mesma condição, impedindo um maior envolvimento, identidade política e sentimento de pertença para com a luta.

Outra condição que tem agravado a situação de desestímulo, como já caracterizamos, é o desenvolvimento da política de contra-reforma agrária e suas implicações sob a vida dos produtores. Condizente com a organização familiar por lotes individuais, as ações que compõem essa política tendem a fortalecer a dependência, endividar e inviabilizar o processo de organização coletiva em torno da cooperação. Daí a relação

165 Documento Os assentamentos no centro de nossas ações. MST, Setor de Produção, Cooperação e Meio

geralmente feita pelos próprios trabalhadores entre a vinda de recursos e a desorganização na Lagoa do Mineiro.

A organização aqui antes de se desapropriar é uma coisa. Depois que desapropriou é outra coisa. Passou a ser muito boa. Ela arruinou um pouco desde o primeiro recurso que veio pra cá. Porque recurso é recurso, né. Nem todo mundo se satisfaz quando vem um recurso que tu organiza. Tá entendendo como é que é? (...). E recurso, quando entrou aqui, deu uma certa doença na organização (...). Nós tivemos esses tipos de organização aqui: a organização antes do assentamento; depois do assentamento; antes de ter recurso e depois de vir o recurso (...) (Entrevistado 02 /Representante da COOPAGLAM).

No começo tinha os projetos aí que saíram (...) nada foi feito como foi acordado e aí desmotivou o pessoal (...). As decisões são tomadas no coletivo e elas não são cumpridas (Entrevistado 17/Representante da localidade Córrego das Moças).

Observamos que, contraditoriamente, o financiamento público das atividades desenvolvidas pelos trabalhadores na área é, por um lado, necessário para o avanço no desenvolvimento da produção coletiva tendo em vista que demanda maior complexidade e, portanto, mais “capital de giro” e, por outro, é partícipe de uma lógica financeira que endivida os produtores, inviabilizando os projetos coletivos.

Cria-se, na perspectiva da contra-reforma, um fosso cada vez maior entre direção e base. Desta forma,

a contradição (...) deu-se (e dá-se, ainda) entre o desejo dos dirigentes e lideranças de construírem uma organização (...) socialista (...) e o desejo da base popular de reafirmar nos assentamentos a propriedade privada dos meios de produção e o individualismo como forma de conduta social perante seus pares e o mercado166.

Vejamos a consideração abaixo:

Uma vez eu fui trabalhar sobre assentamentos, eu disse: „quem é contra a propriedade privada?‟. Todo mundo da coordenação levantou a mão. „Quem vai nos assentamentos discutir a coletivização?‟. Ninguém levantou mais, porque tá no sangue das pessoas e, aqui pra nós, é muito mais fácil você tá lá no seu lote individual e tal, mas pra organização isso é mais difícil (...) (Dirigente do Setor de Produção do MST no Ceará).

166 Texto Perspectivas da cooperação agrícola nos assentamentos de reforma agrária sob a hegemonia do MST,