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A (in)visibilidade do tradutor/legendador

No documento Legendagem para streaming: novas práticas? (páginas 89-92)

CAPÍTULO 3 – OUTLANDER NO STREAMING

3.3 OUTLANDER NA NETFLIX

3.3.1 A (in)visibilidade do tradutor/legendador

Ao acompanharmos os 16 episódios da primeira temporada de Outlander exibidos na Netflix, a primeira característica a ser apontada é a falta de qualquer identificação do tradutor/legendador de cada episódio ou da série como um todo. Como já discutido no capítulo dois, sabemos que a Netflix tanto contrata tradutores próprios quanto terceiriza suas traduções. Uma vez que não há sinalização alguma da plataforma sobre a legendagem de Outlander, não é possível precisar se as legendas foram desenvolvidas pela Netflix, por uma ou várias empresas terceirizadas ou ambos. Além disso, como Outlander não é uma produção própria da Netflix, com as muitas mãos envolvidas desde a produção da série até sua exibição no streaming, também não fica claro em qual etapa as legendas são produzidas, ou quais empresas estariam responsáveis pela legendagem da série.

Lawrence Venuti, como abordado anteriormente, ao discutir sobre o que chamou de invisibilidade do tradutor não tinha como foco principal a presença ou não do nome do tradutor na tradução. Seu objetivo era pensar a intervenção crucial do tradutor em textos literários, defendendo estratégias tradutórias que tornassem o tradutor visível no texto de chegada. Para Venuti ([1986], 1995), a invisibilidade se manifesta como uma “auto-aniquilação” do tradutor, provocada pelo critério, em contextos hegemônicos, como os Estados Unidos da América, da produção de traduções fluentes, as quais, inclusive, apagam as marcas da cultura de partida em prol de um gosto “doméstico”. Embora Venuti não discuta especificamente a tradução audiovisual, podemos relacionar as questões levantadas pelo teórico a respeito da invisibilidade do tradutor ao campo da legendagem e supor que tais questões também sejam plausíveis a essa modalidade de tradução.

Trazendo a discussão para o campo da tradução audiovisual, cabe ponderar que na tradução para legendagem não há o apagamento da marca física da tradução no material audiovisual exibido. As legendas, de fato, colocam-se entre o material audiovisual e o espectador, tornando visível que aquela produção audiovisual é originária de outra cultura. Pode-se dizer que a tradução para legendagem é visível por sua própria natureza. No que tange

às estratégias de tradução, bem como ao status do tradutor/legendador, no entanto, a discussão se torna mais complexa.

Venuti defende que o apagamento da “intervenção crucial do tradutor” indica uma posição subalterna tradicionalmente ocupada pela tradução e, por consequência, o baixo status relegado ao tradutor. Mais além, o apagamento da tradução e do tradutor, para Venuti ([1986], 1996), frequentemente está relacionado às condições de trabalho inadequadas à produção intelectual que é a tradução, o que, por sua vez, sinalizam uma visão de que a tradução não é só um trabalho, mas um produto inferior.

Ainda que o contexto brasileiro seja distinto do contexto anglo-americano em vários aspectos, um dos focos de Venuti, a questão das condições de produção, continua pertinente no caso da tradução audiovisual no Brasil. Uma vez que não há indicação de quais pessoas e/ou empresas foram responsáveis pela legendagem da série sob análise, podemos intuir que essa informação não é considerada relevante no que tange à produção e a exibição do material audiovisual. Uma das razões possíveis para a falta de crédito ao(s) legendador(es) é o fato de o trabalho hoje ser extremamente fragmentado61, ou seja, vários tradutores são acionados para a produção dos episódios, até pela rapidez que o mercado e a sociedade contemporânea exigem, como já discutido anteriormente. Podemos especular que diversos profissionais ou empresas estejam envolvidos na legendagem da série, de maneira que não seria possível determinar efetivamente um único responsável pelas traduções. É possível supor, ainda, que cada episódio possa ter sido dividido entre um ou mais tradutores/legendadores, tornando assim não só complexa a sinalização do tradutor ou empresa responsável pela legendagem de toda a temporada da série, como também de cada episódio em específico.

A necessidade de legendar velozmente avança, conforme já discutido no capítulo anterior, e a solução encontrada por muitas empresas vem sendo subdividir a tradução em diversas mãos. As séries de modo geral são produzidas de maneira célere e, nos casos das séries de muito sucesso que são exibidas no exterior e em outros canais de TV aberta ou fechada, os fãs e espectadores costumam pressionar para que o lançamento em sua região também se dê quase que instantaneamente. A quarta temporada de Outlander lançada na TV pela Fox Premium, por exemplo, teve estreia simultânea no Brasil e no exterior. Ainda assim,

61 Em suas aulas na pós-graduação e nas orientações desta dissertação, Giovana Campos, orientadora deste

trabalho, aborda o que chamou de “pulverização” do ofício de tradutor no mercado de trabalho. No campo da tradução audiovisual, a professora Giovana Campos tem pesquisado essa questão, tendo sugerido a abordagem dessa fragmentação em termos da questão da autoria, o que implica a invisibilidade do tradutor/legendador, uma vez que não há autores para a legenda, pelo menos não nos créditos. A professora tem observado que também nas exibições dos cinemas nem sempre os tradutores/legendadores têm sido creditados, ficando nos créditos o nome da empresa de tradução para legendagem.

defendemos que a falta de créditos implica uma forma de invisibilidade do tradutor/legendador, o qual não é reconhecido como autor de seu trabalho. Assim, se por um lado a tradução para legendagem é visível por se tratar de um texto escrito que é acrescentado em tela, por outro, o agente do processo — o tradutor/legendador — é invisível, pelo menos no caso da obra aqui analisada, uma vez que não tem sua autoria reconhecida e creditada.62

No que tange às estratégias propostas por Venuti ao abordar a tradução literária — quais sejam, a domesticação e a estrangeirização, conceitos empregados no sentido lato nesta dissertação como já mencionado, consideramos interessante pensá-las a partir da tradução audiovisual. Um ponto a ser levantado é que a concepção de legendagem está atrelada, como discutido no capítulo dois, às noções de síntese e de simplificação. A nosso ver, sintetizar e simplificar representam formas de intervenção direta do tradutor, apontando para a “intervenção crucial do tradutor”, tal qual abordada por Venuti. A questão da fluência

c

omo parâmetro pode ser vista como uma das características principais da legendagem; há listas do que deve/pode ser simplificado (ver ÁLVAREZ, 2011, p. 3, por exemplo). O preceito da tradução para legendagem não costuma ser o da estranheza, mas o da reescrita do texto falado de modo a facilitar o entendimento do espectador que lerá o texto na forma escrita. Assim, no caso de Outlander (ou outras produções), não seria incorreto levantarmos a hipótese de que a domesticação seria, de forma geral, a estratégia de eleição, uma vez que é a que mais representa o objetivo da simplificação, e com ela, a da fluência. Se assim for, uma de nossas hipóteses pode ser a de que haverá um grau de invisibilidade do tradutor e da tradução na legenda em si, sobretudo nas produções que envolvem grandes audiências (como os chamados blockbusters). No caso de Outlander, em que já há diferenças culturais relevantes entre Escócia e Inglaterra (os dois países anglófonos retratados na primeira temporada) e entre eles e os demais países de língua inglesa que compõem o público original da série, na tradução para o português do Brasil outra camada de diferença cultural e linguística é acrescentada: a brasileira. Um dos objetivos deste trabalho é pensar como essas camadas de diferenças foram abordadas/traduzidas. Em outros termos, buscamos refletir se, em um contexto em que a simplificação e a fluência são relevantes, logo, um contexto que já traz em sua constituição um forte grau de domesticação (a tradução para legenda de uma série destinada ao grande público em geral bem como a fãs, disponibilizada em streaming) há espaço para o uso da estratégia da estrangeirização.

62 Outras séries da Netflix apresentam os créditos da tradução ao final de cada episódio, sejam todos os episódios

da temporada traduzidos pelo mesmo tradutor ou não, como Alias Grace, The Good Place e Sex Education, por exemplo.

Discutiremos especificamente sobre a possível presença de diversos legendadores ao longo da série a partir dos itens específicos que serão analisados a seguir, bem como sobre as estratégias de tradução eleitas. De toda maneira, já podemos apontar que algumas características entre os episódios sinalizam, ao menos, a presença de diferentes tradutores envolvidos na legendagem da série Outlander, com predomínio da domesticação.63 Ao mesmo tempo, alguns

elementos observados apontam para a exclusão de um dos passos por nós, e outros pesquisadores e estudiosos da tradução, considerados relevantes no processo tradutório: o da revisão.

No documento Legendagem para streaming: novas práticas? (páginas 89-92)