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LEGENDAGEM PARA STREAMING: A NETFLIX

No documento Legendagem para streaming: novas práticas? (páginas 79-85)

CAPÍTULO 2 – TRADUÇÃO AUDIOVISUAL

2.4. LEGENDAGEM PARA STREAMING: A NETFLIX

O rápido avanço do streaming impactou não somente o modo como produtos audiovisuais são consumidos, como também sua produção. A legendagem, por sua vez, também não passou incólume. Como mencionamos na seção anterior, nos últimos quarenta anos, o processo de legendagem se tornou cada vez mais tecnológico, indo da tradução em papel quadriculado até a tradução em programas específicos e altamente avançados, culminando nas plataformas das próprias agências. Segundo Díaz Cintas (2013), os avanços técnicos das últimas décadas tiveram grande impacto na área, alterando visivelmente a prática profissional e o perfil dos tradutores. Além disso, segundo o autor, a legendagem depende de tal forma da tecnologia, cujos avanços a afetam profundamente, tanto no que diz respeito ao processo quanto o seu entendimento como um produto. Por isso, Díaz Cintas (2013) afirma que:

Nesse sentido, antigas certezas históricas e parâmetros técnicos dominantes estão sendo cada vez mais desafiados por novas ideias e possibilidades, acompanhados de avanços que questionam de maneiras muito distintas o sentido de legendagem, examinando como códigos enraizados de comportamento e conjuntos de pressupostos moldam as práticas de tradução neste campo.54 (p. 283)

Os parâmetros técnicos, de fato, são diferentes entre uma e outra modalidade, ainda que haja semelhanças. A legendagem para cinema, TV (aberta ou fechada) e DVD, por exemplo, seguem critérios e especificações ligeiramente diferentes. Do mesmo modo, a legendagem online também tem suas especificidades. Uma delas pode ser o fato e o espectador poder pausar a exibição, voltar o filme e continuar a vê-lo, e tudo isso ao toque de um botão. Essa “pequena” diferença colaborou para o aumento de caracteres em cada linha de legenda, por exemplo. No cinema, a possibilidade de pausar inexiste, e tal característica é levada em conta nos parâmetros estabelecidos. A legendagem para streaming tem como principal característica uma diferença importante com relação às séries no que tange à recepção: a possibilidade de ver os episódios,

54 Texto em inglês: “In this sense, old historical certainties and dominant technical parameters are being

increasingly challenged as new ideas and possibilities, hand in hand with advances interrogating in very different ways the meaning of subtitling, examining how ingrained codes of behaviour and sets of assumptions shape translation practices in this field”.

até mesmo inéditos, seguidamente. Isso gerou, inclusive, uma terminologia própria: o binge- watching (estudado até no campo da saúde, como uma compulsão). O ato de ver os episódios continuamente resulta, a nosso ver, em uma necessidade maior de consistência na tradução, uma vez que o espectador poderá comparar, de forma quase que imediata, traduções diferentes para os mesmos objetos, funções, personagens, músicas, expressões, produtos, elementos da fauna e flora, etc., sobretudo aqueles que não fizerem parte de seu contexto linguístico-cultural. As questões que pretendemos investigar, portanto, tomam forma.

Como a legendagem segue critérios distintos de acordo com o meio ao qual se destina, é valido considerarmos, como é comum aos outros meios, que as plataformas de streaming também estabeleçam os parâmetros a serem seguidos pelo legendador. Conforme aponta Carvalho (2005), seguir as especificações dos clientes, além de adotar os procedimentos técnicos necessários no processo de produção de legendas, é fundamental. Portanto, para o tradutor/legendador que trabalha com essas plataformas é imprescindível observar os parâmetros específicos de cada uma delas. Entre as plataformas de streaming mais conhecidas, somente a Netflix disponibiliza online seu manual para produção de legendas em língua portuguesa55. Na verdade, a empresa disponibiliza não somente o manual de produção de legendas como manuais para outras etapas do processo de produção audiovisual como pós- produção, licenciamento e masterização.

O manual está disponível em uma página direcionada a parceiros, o que sugere que as legendas sejam produzidas, portanto, também por empresas terceirizadas. Em 2017, a Netflix anunciou a contratação de legendadores para diversas línguas, tendo até mesmo lançando uma plataforma para que os candidatos fizessem testes qualificatórios. Atualmente56, a plataforma está fechada, e, em sua página inicial, há o esclarecimento da Netflix de que a plataforma atingiu sua capacidade máxima e permanecerá fechada até que sejam necessários novos testes. Portanto, é possível supor que a Netflix possua legendadores próprios e/ou freelancers cadastrados, que trabalhem diretamente para a empresa, bem como que também terceirize a produção de legendas.

O manual da Netflix possui vinte sessões que especificam a preferência da empresa para o uso de determinadas construções linguísticas. O primeiro item trata do uso de abreviações de pronomes de tratamento, profissões, unidades métricas assim como do uso de números ordinais.

55 Manual disponível em: https://partnerhelp.netflixstudios.com/hc/en-us/articles/215600497-Brazilian-

Portuguese-Timed-Text-Style-Guide. O manual possui um histórico de revisões, a versão disponível e mais recente é datada de 06 de junho de 2018.

No item nº 13, o manual trata especificamente do uso de números: de um a dez devem ser escritos por extenso, enquanto de dez em diante devem ser representados numericamente. Quando no início de uma legenda, os números devem sempre ser escritos por extenso. Além disso, o primeiro item trata da grafia de moedas e indica o manual de redação do Estadão para consultas em caso de dúvidas sobre o tópico. No segundo item, sobre acrônimos, há somente a recomendação de não usar pontos entre as letras que o formam.

O terceiro item apresenta um parâmetro importante e que costuma variar bastante de acordo com o meio no qual a legenda será exibida: a quantidade de caracteres por linha. Excedendo todos os meios que já foram citados neste trabalho, a Netflix estabelece o máximo de 42 caracteres por linha. O oitavo item especifica que as legendas devem ser feitas em Arial e em tamanho proporcional ao vídeo, bem como que permita que os 42 caracteres apareçam totalmente em tela, sendo que a cor da fonte deve ser branca. No item nº 12, o manual estabelece que as legendas devem conter até duas linhas. O item nº 15 define a velocidade de leitura de 17cps (caracteres por segundo) para produções para o público em geral e de 13cps para produções direcionadas ao público infantil.

No quarto item, o manual trata da tradução de nomes próprios, de nomes de personagens históricos e míticos e de apelidos. Os nomes próprios devem permanecer com a grafia original, a menos que a própria Netflix apresente uma tradução para o nome, enquanto nomes de personagens históricos e míticos devem seguir o nome usado na cultura de chegada. Apelidos devem ser traduzidos somente quando possuírem algum significado específico. O quinto item apresenta o uso de reticências, as quais só devem ser usadas no início de uma legenda caso esta comece no meio da fala de determinado personagem. Ao fim de uma legenda ou linha, as reticências indicam uma pausa ou interrupção abrupta.

O sexto item trata das preferências para legendas em documentários: quando usar itálicos em narradores/personagens em cena ou fora de cena, interrupções de diálogos por narrações, a tradução dos títulos dos falantes e outros aspectos relevantes nesse contexto. O sétimo item pede que seja usado hífen (-) sem espaço para indicar dois falantes em uma única legenda (a chamada “troca de turno”), com um falante em cada linha. O nono item aborda a questão dos textos que aparecem em tela ou em cena, chamados de “narrativas forçadas”. Segundo o manual, elas devem ser incluídas na legenda, em caixa alta, se forem informações necessárias, e a legenda deve permanecer em tela pelo mesmo período em que o texto aparece.

O décimo item traz as recomendações sobre diálogos em língua estrangeira. Eles só devem ser traduzidos se já estiverem legendados na produção em língua original, além disso,

palavras específicas em língua estrangeira devem ser marcadas em itálico, a menos que o uso delas em língua portuguesa já seja corrente. Continuando com as especificações sobre o uso do itálico, no décimo primeiro item, o manual menciona os termos que assim devem ser marcados: livros, filmes, títulos de programas e álbuns, diálogo transmitido por meio de aparelho eletrônico em cena, falas de personagens que não estiverem em cena e letras de músicas. Além disso, o manual deixa claro que não se deve usar itálico como modo de expressar ênfase.

No item nº 14, o manual aborda o uso de aspas simples e duplas. Aspas duplas devem ser usadas em citações enquanto aspas simples devem ser usadas quando há uma citação dentro de outra. A pontuação deve ser incluída dentro das aspas a menos que a citação seja dependente da oração que é base da legenda. No item nº 16, o manual especifica que, ainda que haja repetições no áudio, elas não devem ser incluídas na legenda, assim, palavras ditas seguidamente devem aparecer apenas uma vez e permanecer em tela durante o tempo integral da repetição.

No item nº 17, o manual trata da questão das músicas. Letras de música devem ser italicizadas, porém nomes de canções devem ser marcados em negrito. Todavia, as letras, quando necessárias ao enredo, só devem ser traduzidas caso seus direitos tenham sido adquiridos pela Netflix. Letras de canções de abertura e fim só devem ser legendadas se relevantes ao enredo. Além disso, o manual sinaliza que, em geral, letras de canções de abertura de produções para adultos não são legendadas. Sobre pontuação, não se deve usar ponto final nas legendas de canções ou vírgulas ao fim das legendas, somente pontos de exclamação, interrogação e vírgulas internas. No item nº 18, que aborda a tradução dos títulos de episódios, a recomendação é que se verifique a tradução oficial da Netflix para cada um deles. Sobre títulos de outros trabalhos artísticos mencionados, se recomenda seguir a tradução oficial deles no país e, se não disponível, se deve mantê-los na língua original.

O item nº 19 possui o título ‘instruções especiais’ e trata de assuntos diversos que não foram incluídos nos itens anteriores. Palavras de baixo-calão devem ser mantidas, o diálogo principal deve ter precedência sobre o diálogo em segundo plano, erros de pronúncia e ortográficos não devem ser mantidos nas legendas a menos que relevantes ao enredo. Podem ser usadas as variantes formal ou coloquial da língua de acordo com a temática da produção audiovisual. Pode-se usar as duas formas de segunda pessoa presentes na língua portuguesa (tu e você) igualmente. Deve ser usada a grafia da norma padrão da língua portuguesa. Todavia, num, na e pra podem ser utilizados, ao passo que cadê, né e tá devem ter seu uso evitado. Em seguida, há um outro item, o de nº 19, que trata de orientações para elaboração de legendas para

surdos e ensurdecidos. Não abordaremos este item, pois a legendagem para surdos e ensurdecidos não será tratada especificamente neste trabalho. Por fim, o item de nº 20 aponta para os sites que devem ser usados como referência: são eles os sites do Dicionário Houaiss, do Dicionário Michaelis e da Academia Brasileira de Letras.

Destacamos como uma das principais características do manual da Netflix: a quantidade de caracteres por linha bastante acima da média dos outros meios. Podemos assumir que tal quantidade se deve à possibilidade de pausar e voltar trechos e cenas, já comentada. Sobre a questão da quantidade de caracteres superior do cinema em relação à TV aberta, Carvalho (2005) argumenta que essa se deve ao fato de as produtoras e agências, em geral, entenderem que o público do cinema é mais especializado ou escolarizado e, por isso, teria maior facilidade de acompanhar legendas mais longas. Quanto ao streaming, todavia, pensamos diferentemente. Afinal, o acesso à internet e, consequentemente, a essas plataformas tem avançado a cada dia. Em comparação ao cinema, a assinatura das plataformas de streaming, que permitem acesso a um catálogo amplo e diverso, apresenta um valor monetário próximo ou até mais baixo do que ingressos de cinema, logo, mais acessíveis do ponto de vista econômico. Se pensarmos que níveis mais altos de escolarização estão relacionados principalmente às classes mais favorecidas economicamente, o streaming poderia ser uma alternativa para facilitar o acesso às produções audiovisuais com valores relativamente mais baixos. Assim, a razão de uma quantidade maior de caracteres por linha, e consequentemente velocidade de leitura mais rápida, no streaming não se confirma pelo ponto de vista econômico dessa forma.

Retomando Díaz Cintas, já abordado, as letras diminuíram e o número de caracteres aumentou para um suposto “melhor aproveitamento” do espaço. Esse parece ser o caso da Netflix, cujas legendas de filmes comumente apresentam mais de quarenta caracteres por linha, com uma fonte menor do que a encontrada em fitas de VHS antigas. Questionamos essas escolhas, pois parecem se apoiar na antiga visão tradicional de tradução, que busca traduzir “tudo”, sendo que, na legendagem, é importante que o espectador tenha tempo suficiente para ler, ouvir e ver o filme. Sem falar na questão da inclusão e acessibilidade: hoje é comum o acesso, por exemplo, de idosos, à internet, a smartphones e ao streaming. Um dos problemas enfrentados pela população de mais idade é a dificuldade de visão, causada por problemas como a presbiopia e a catarata. Parece-nos, por conclusão, que uma importante parcela da população está sendo deixada de lado na definição desses parâmetros, e isso tem impacto sobre o efeito causado pelas traduções no espectador.

Voltaremos às normas de legendagem do manual da Netflix por ocasião das análises. No entanto, cabe ser colocado que nossa investigação visa, também, observar se o que é apresentado nos manuais é efetivamente seguido pelo tradutor/legendador, bem como quais os efeitos de tais escolhas.

No documento Legendagem para streaming: novas práticas? (páginas 79-85)