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POLISSISTEMA AUDIOVISUAL

No documento Legendagem para streaming: novas práticas? (páginas 54-61)

CAPÍTULO 2 – TRADUÇÃO AUDIOVISUAL

2.1. POLISSISTEMA AUDIOVISUAL

A partir do conceito estabelecido pelo teórico israelense Itamar Even-Zohar, discutido no capítulo anterior, Carolina Alfaro de Carvalho (2005), em sua dissertação de mestrado, identifica e mapeia a existência de um polissistema audiovisual, do qual o polissistema da tradução audiovisual faz parte.

39 Texto em inglês: “Translation is not, and never has been, an innocent activity and the manipulation of

(audiovisual) texts has taken place over time and continues to be rife, irrespective of the political regimes that happen to be in power”.

Carvalho (2005) parte do princípio de que o polissistema audiovisual faz parte do polissistema cultural, assim como os diversos outros sistemas que compõem a cultura. Para isso, Carvalho compreende o conceito de Even-Zohar da seguinte maneira:

[...] os sistemas são redes de relações estabelecidas entre ocorrências ou fenômenos observáveis, configurados tanto pelas inter-relações de seus subsistemas quanto pela interação com sistemas adjacentes. Na busca por permanência e centralidade num polissistema, os sistemas que o compõem fazem contato, se movimentam, alternam posições, enfim, negociam continuamente seus limites, seu papel e seu poder no polissistema. Além disso, há sobreposições entre sistemas e existem componentes — pessoas, instituições, subsistemas — que transitam em mais de um sistema. (p. 68) Nesse sentido, Carvalho salienta que, no lado externo, o polissistema audiovisual está em contato com os demais que integram o polissistema cultural, como o polissistema literário e o sistema da literatura traduzida. E, no lado interno, é formado por diversos outros subsistemas que se relacionam constantemente, e cujas relações de poder são assimétricas. Esses subsistemas, por sua vez, são formados por pessoas e instituições que atuam diretamente sobre seu funcionamento, como diretores, roteiristas, profissionais técnicos, além de empresas de distribuição, laboratórios cinematográficos, salas de cinema e muitos outros. Além disso, há outros elementos que não fazem parte do polissistema audiovisual, mas que interferem em seu funcionamento ou que com ele se relacionam de algum modo, como críticos de cinema, instituições e profissionais relacionados à importação e exportação de filmes. Esses agentes, portanto, interferem no funcionamento do polissistema e no modo como as reescritas que o compõem serão realizadas.

Com base na relação entre o polissistema cultural e o polissistema literário, Carvalho identifica o polissistema da tradução audiovisual, que integra o polissistema audiovisual, e o define da seguinte maneira:

Possuindo uma relação de isomorfismo com o polissistema audiovisual, o polissistema de tradução audiovisual reflete sua hierarquia e submete-se a esta em diversos aspectos, porém também possui componentes e leis que lhe são próprios. Entremeando-se às inúmeras atividades relacionadas à concepção, produção e distribuição de produtos audiovisuais, as várias modalidades de tradução e interpretação realizadas nesse campo são fundamentais para que seus produtos e subprodutos possam circular em diferentes sistemas e culturas — o que, cada vez mais, é um aspecto crucial para o sucesso dos empreendimentos. Uma grande gama de profissionais e instituições especializados é responsável por essas traduções. (p. 70)

O polissistema da tradução audiovisual, portanto, integra o polissistema audiovisual, pois com ele compartilha determinadas características gerais. Porém também possui

especificidades próprias, em especial aquelas concernentes às questões que relacionam tradução e cultura bem como tradução e mercado.

Após identificar e definir o polissistema da tradução audiovisual e sua ligação profunda com o polissistema audiovisual, Carvalho relaciona o polissistema audiovisual ao polissistema literário. De fato, a relação entre ambos tem ficado cada vez mais explícita na cultura de massa, particularmente nas grandes produções audiovisuais baseadas em produtos literários. Com frequência, best-sellers são transformados em produções cinematográficas que, em geral, alcançam popularidade similar à obra literária que as gerou. No segmento jovem adulto, é comum que livros de sucesso se tornem trilogias cinematográficas ou, ainda, séries de TV. Embora, em 2005, Carvalho tenha tratado especificamente da produção de filmes para cinema baseados em livros, já é possível apontar uma diversidade maior e mais frequente de produções audiovisuais dessa natureza. Séries feitas para TV, filmes e séries produzidos especificamente para streaming, e não para uma primeira exibição em TV (aberta ou fechada) e, em seguida, nas plataformas, e até videogames40 (cuja tradução, em geral, não é considerada uma modalidade de TAV conforme visto na seção anterior) inspirados em livros.

De todo modo, a ligação entre o polissistema literário e o audiovisual é explicitada por Carvalho a partir da influência que um exerce sobre o outro. Para a tradutora e pesquisadora, certas produções audiovisuais não existiriam se não tivessem por base um produto literário. Da mesma maneira, diversos livros têm suas vendas alavancadas pelo lançamento e sucesso de uma produção audiovisual, tanto que muitos são reeditados e recebem novas capas com imagens e personagens do filme. Nitidamente, a influência de um sistema vai muito além das questões literárias ou criativas. Talvez o fator extraliterário mais forte seja a motivação econômica: um livro (ou série de livros) de sucesso, com seus muitos fãs, pode garantir igual sucesso de uma produção audiovisual baseada nele, além de vender ainda mais livros. Reedições com novas capas baseadas nas produções para tela têm o objetivo de captar o novo público alcançado por essas produções, além de atingir fãs antigos que podem ter interesse em possuir as diferentes edições disponíveis. Por outro lado, a adaptação para telas atrai o público fiel das produções literárias, ampliando-o.

Um bom exemplo da relação de impulso entre a produção audiovisual e a literária é O conto da Aia (The Handmaid’s Tale). O romance da autora canadense Margaret Atwood, lançado em 1987, foi adaptado para as telas em 2017. A série exibida pelo serviço de streaming

40 Sobre esse mesmo processo no streaming, podemos destacar uma das séries mais recentes, e de grande sucesso,

da Netflix, The Witcher, que é inspirada tanto na série literária homônima do autor polonês Andrzej Sapkowski quanto no videogame baseado também na mesma obra em questão.

Hulu obteve grande sucesso e recebeu diversos prêmios como o Emmy e o Globo de Ouro. Com a terceira temporada já finalizada, a série avança para a quarta temporada em 2020. Alavancada pelo sucesso da primeira temporada da série, a Editora Rocco, que publica as obras de Atwood no Brasil, lançou uma nova edição do romance, com nova capa, também em 2017. Todavia, é válido mencionar que toda a repercussão recente em torno dessa obra de Margaret Atwood e da série não se restringe apenas a uma questão comercial entre série e obra literária. A obra de Atwood e sua temática foram retomadas na história recente com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a onda de protestos, especialmente feministas, contra ele. Dessa maneira, além das questões expostas anteriormente sobre a relação entre a produção audiovisual e a literária, nesse caso, há também um elemento social relevante: a ascensão de líderes populistas no mundo, o que fez com que a discussão sobre a temática da obra se tornasse altamente relevante e aumentasse o interesse sobre ela.

Esse fenômeno também se relaciona ao conceito de reescrita cunhado por André Lefevere (1992). O teórico reflete sobre como inúmeros leitores terão acesso a uma obra literária por meio de uma de suas reescritas, sejam elas traduções, resenhas, artigos em revistas especializadas etc. e a partir delas julgarão ter lido ou tido acesso ao texto “original”. Do mesmo modo, com a adaptação para tela das obras literárias e, portanto, uma nova reescrita dessas obras, diversos espectadores poderão ter contato com elas. Nesse sentido, a adaptação para telas, ou nos termos de Jakobson (1970 [1959]) e outros autores, a tradução intersemiótica, poderia ser considerada uma reescrita dessas obras literárias, enquanto a legendagem seria outra reescrita — uma reescrita da reescrita, por assim dizer — da obra, a qual amplia ainda mais o escopo de sua recepção.

Para além das restrições técnicas, a reescrita do texto oral nas legendas atualmente obedece aos manuais e às orientações do cliente expostas neles e em outros meios. Os manuais de legendagem/tradução audiovisual regem a reescrita nesse meio, atuando como elemento regulador do patrocinador tanto sobre o texto traduzido quanto sobre o próprio trabalho do tradutor/legendador. Nesse sentido, essa reescrita não é “livre” para expressar a interpretação e visão do tradutor/legendador, mas submete-se às normatizações conferidas pelo patrocinador. Logo, um manual não só expressa preferências de uso linguístico como revela a própria ideologia do patrocinador, assim como sua visão sobre o que é processo tradutório em si. Se a legendagem envolve reescrever o texto oral na forma escrita, como discutimos no capítulo anterior, os manuais regem a própria reescrita, atuando como ferramenta de normatização e explicitando o poder exercido por parte do patrocinador sobre o tradutor/legendador. O

patrocinador detém o poder, inclusive e principalmente econômico, assim, de alguma forma, o tradutor/ legendador se vê assujeitado à ideologia do patrocinador, já que deixar seguir certos tipos de normatizações e instruções do patrocinador pode acarretar sérias consequências.

Além de inserir o polissistema da tradução audiovisual dentro do polissistema audiovisual, Carvalho (2005), baseando-se nas reflexões de Gambier (2002) e Díaz Cintas (1997), define quais modalidades de tradução são, para ela, modalidades de TAV, e que, portanto, devem ser abordadas de forma integrada. As modalidades de tradução audiovisual, segundo Carvalho, são: a tradução de roteiros, a dublagem, o audio vision (atualmente, audiodescrição, termo usado daqui em diante ao fazer referência ao que é chamado por Carvalho de audio vision), a narração, o voice-over, a interpretação simultânea e consecutiva de eventos ao vivo, a legendagem simultânea, a legendagem, o surtitling e o closed-captions.

Inicialmente, Carvalho (2005) aponta que a tradução de roteiros se aproxima das modalidades de tradução escrita já que não está sujeita à maioria das coerções das modalidades tradicionais de TAV. Já entre dublagem, audiodescrição, narração, voice over e interpretação, Carvalho identifica uma relação: todas essas modalidades trabalham com o registro oral e, portanto, compartilham a mesma coerção: a adequação de tempo entre a transmissão do áudio e as imagens exibidas. A diferença entre elas, por outro lado, corresponde aos objetivos de cada modalidade. As outras quatro modalidades (legendagem simultânea, legendagem, surtitling e closed-captions), por outro lado, tomam as características dos dois grupos anteriores, já que transformam o que é transmitido por meio do código oral em código escrito, adicionando um elemento novo (a legenda, ou texto escrito) onde antes não havia. As coerções compartilhadas pelo último grupo, portanto, são de ordem: temporal, já que o texto deve se ajustar à duração do áudio correspondente; e espacial, pois serão exibidas em uma pequena parte determinada da tela. Novamente, Carvalho ressalta que as diferenças entre as modalidades do grupo são causadas pelos objetivos aos quais elas servem. Como as coerções que as modalidades de TAV estão sujeitas são distintas, Carvalho (2005) explica que:

Devido a todas essas coerções que afetam sensivelmente as soluções tradutórias e levam à produção de textos traduzidos muito diferentes entre si, embora a partir de um mesmo original, alguns teóricos da tradução questionam o fato de que essas práticas sejam realmente traduções e optam por referir-se a elas como adaptações. (p. 77)

Em seguida, Carvalho (2005), a partir das reflexões formuladas por Gambier e Gottlieb (2001), trata das características da tradução audiovisual que se relacionam, principalmente, com áreas mais associadas ao campo da informática, como a tradução de jogos e a localização.

Todavia, é interessante observar que as características explicitadas por Carvalho (2005) já se aplicam hoje especificamente ao campo da legendagem, em especial, da legendagem para streaming, conforme será visto mais adiante, neste mesmo capítulo e no capítulo seguinte. Carvalho (2005) ressalta, portanto, as seguintes características: o trabalho em equipe, já que diversos profissionais manipulam o texto nas diferentes etapas de produção, distribuição e divulgação dos produtos audiovisuais; a tradução de textos intermediários, já que os textos são constantemente alterados durante o processo; e a precedência da função da tradução sobre outros fatores, até mesmo sobre os parâmetros linguísticos.

As características expostas por Carvalho (2005) causam certo impacto sobre os conceitos tradicionalmente usados no âmbito dos Estudos da Tradução. Os primeiros a serem afetados são os conceitos de texto-fonte e texto-meta, que têm suas noções dessacralizadas. O texto-fonte (também chamado de texto de partida) deixa de ser uma entidade única e inequívoca e passa a ser uma unidade em constante modificação. Nesse sentido, tanto o conceito de texto- fonte quanto o de texto-meta passam a solicitar uma contextualização mais precisa em cada situação. Também o termo texto passa a se referir a um conjunto de sistemas semióticos além do sistema verbal, já que outros elementos além do texto escrito e do texto oral passam a ser levados em consideração na TAV. Do mesmo modo, a noção de significado é ampliada, já que o significado se constrói não somente a partir do texto, mas a partir de todos os sistemas semióticos envolvidos (e pelo sujeito). Carvalho (2005) ainda reforça que “consequentemente a recepção desse novo texto será diferente, de modo que o significado de leitura também não ficará restrito ao sistema verbal” (p. 80). Carvalho, então, defende que o impacto nos conceitos dos Estudos da Tradução indica que a TAV não pode ser considerada somente em vista do componente verbal:

Diversos autores concordam que, para se tentar minimizar esse problema, é preciso em primeiro lugar reconhecer a multidisciplinaridade desse campo e, em segundo lugar, buscar uma maior padronização e coordenação dos processos de desenvolvimento de produtos audiovisuais — estando a etapa da tradução incluída nesses processos. (p. 80)

No que diz respeito à legendagem para streaming, que será abordada adiante, as soluções propostas por Carvalho são ainda mais pertinentes.

Diversas áreas já se debruçam sobre o estudo das plataformas streaming e as implicações de seu desenvolvimento, como as áreas de Comunicação, Tecnologia da Informação e Direito. Contudo, pesquisas na área de Estudos da Tradução sobre o streaming especificamente ainda são raras. A padronização e a coordenação dos processos propostos por

Carvalho estão ainda mais distantes, afinal, o mercado de tradução para as plataformas de streaming tem reforçado a pulverização do trabalho41, já que diversos agentes manipulam a tradução e interferem diretamente na produção delas. Sobre o papel do tradutor nesse processo, Carvalho (2005) afirma que:

Quanto ao nível da produção de multimídia, lamentavelmente os tradutores não gozam de muito prestígio no polissistema audiovisual e freqüentemente sequer são lembrados nas etapas de planejamento e produção de materiais, sendo incluídos às pressas já no processo de distribuição dos produtos. (p. 81) Tomando por base a proposta de Carvalho (2005), que indica a existência de um polissistema da tradução audiovisual, propomos a existência de um sistema da tradução para streaming em formação, dentro do polissistema anterior. Acreditamos que a tradução para streaming (aqui contemplando tanto a tradução para dublagem quanto a legendagem) possui características que lhe são de alguma forma próprias, além de se apoiar nos elementos básicos da tradução audiovisual. Conforme veremos, a legendagem para streaming partilha normas e coerções com a legendagem para os meios já frequentemente tratados (cinema, TV aberta e fechada), contudo, outras questões podem ser levantadas. Grande parte delas diz respeito às condições de produção e trabalho, ao meio em que são produzidas e às relações entre clientes, tradutores e todos os agentes intermediários que vêm sendo alteradas. Esses outros agentes além do tradutor estão se tornando cada vez mais presentes com o avanço da tecnologia da informação e, por consequência, ocorre uma maior pulverização do trabalho de tradução desencadeada por esse processo. Essas questões serão retomadas e discutidas com mais profundidade no item 2.3 e no capítulo seguinte.

Por fim, Carvalho defende que a perspectiva polissistêmica e, por consequência, a observação de um polissistema audiovisual e de um polissistema da tradução audiovisual, são úteis por fornecerem uma visão ampla das complexas relações que formam os sistemas. De fato, é fundamental compreender as relações que formam o polissistema da tradução audiovisual para que se possa discutir as possíveis diferenças que a legendagem para streaming apresenta em relação à legendagem para outros meios (como TV aberta, TV fechada e cinema) e as potenciais implicações tanto para o trabalho do tradutor quanto para o produto audiovisual.

41 Em suas aulas na pós-graduação e nas orientações desta dissertação, Giovana Mello, orientadora deste trabalho,

tem abordado o que chamou de “pulverização” do ofício de tradutor no mercado de trabalho. Ver também o artigo “Tradução e Mercado: uma análise discursiva” nas referências bibliográficas.

No documento Legendagem para streaming: novas práticas? (páginas 54-61)