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A inadequação da garantia legal por vícios ocultos da coisa

O regime jurídico de responsabilidade por vício da coisa modelado pelo Código Civil de 1916 revelou-se inadequado para a nova realidade e ineficaz para proteger os consumidores de produtos e serviços.

Em primeiro lugar, denota-se que no direito comum a garantia volta-se para a relação jurídica de natureza contratual estabelecida entre alienante da coisa e o adquirente. Todavia, os alienantes, os comerciantes, especialmente nos contratos de compra e venda, tiveram a sua importância econômica reduzida, pois assumiram o mero papel de distribuidores dos produtos fabricados pela indústria de massa.

Os fabricantes, muitas vezes os principais responsáveis pelos vícios manifestados nos produtos (se levarmos em conta a impropriedade resultante de um vício de concepção ou fabricação), não estão contemplados no modelo de responsabilidade, e diante do contrato de compra e venda são

considerados terceiros, ficando fora do alcance da garantia legal e das pretensões edilícias concedidas ao consumidor que adquiriu o produto.

Um segundo aspecto diz respeito à concepção estrita de vício, limitado à imperfeição material da coisa. Embora a melhor doutrina sustentasse a teoria subjetiva ou do uso negocial assente para a caracterização do vício, ainda assim tais concepções não asseguravam a proteção suficiente do consumidor.

A garantia trata da falta de aptidão de coisa específica, certa e determinada. Na sociedade de massa, os produtos são fabricados em série. Os consumidores adquirem produtos por conta das suas qualidades típicas e para funções habituais da coisa do mesmo tipo, e não em razão de qualidades especificas para funções especialmente asseguradas.

As qualidades dos produtos, ademais, são destacadas em mensagens publicitárias, utilizadas intencionalmente para estimular o consumo. Para o direito comum, a publicidade é destituída de efeitos jurídicos, considerada mero convite para contratar. E mesmo que qualificassem os produtos para fins específicos, as mensagens eram promovidas pelo fabricante e não pelo alienante direto. Caso gerassem algum efeito jurídico, vinculariam um terceiro que não estava compreendido no regime de garantia estatuído pela lei.

Um terceiro ponto desfavorável, diz respeito à exigência de que o vício fosse oculto, acarretando ao consumidor o dever de examinar o produto, partindo-se do pressuposto de que a simples inspeção material seria apta para a

sua descoberta, e que uma vez constatado ele deixaria de realizar a aquisição do bem ou proporia novas bases para o contrato.

A inadequação dessa concepção já tinha sido notada quando os contratos passaram a ter como objeto máquinas e aparelhos. Os bens produzidos para consumo também são fabricados mediante a aplicação de sofisticada tecnologia. O consumidor é incapaz de constatar qualquer imperfeição ou falta de qualidade no produto, a não ser utilizando-o de forma reiterada. O vício acaba por se manifestar somente após um determinado período de uso do produto. A sua descoberta, portanto, não depende mais do arbítrio do adquirente como se pensava antigamente, mas da própria complexidade do bem e da própria natureza do vício.

Além disso, a dinâmica das contratações massificadas impede que o consumidor tenha condições de proceder a um exame minucioso do produto no estabelecimento do fornecedor, porque geralmente a venda é realizada à vista de amostra.

Ainda que haja essa possibilidade, como observou Silvio Venosa, não se permite um exame detalhado do produto “quando muito, e se tanto, fará

ligar o televisor na loja para saber se está funcionando; inspecionará externamente o veículo novo que adquire em uma concessionária (...)”.169

Um outro aspecto revelador da insuficiência do modelo responsabilidade, toca aos tradicionais remédios edilícios. Os direitos de obter a

redibição da coisa e a redução do preço orientam-se para o valor de troca da coisa em função do comércio. São, por isso, incompatíveis com o sistema em que a produção e venda de bens são destinadas ao consumo final. Para os consumidores é predominante o valor de uso dos produtos, pelo qual melhor realizam a satisfação das suas necessidades.

O principal fator de ineficácia da garantia legal foi, sem dúvida, o prazo de caducidade para o exercício das pretensões. Além da sua brevidade, este fluía a partir da entrega do produto e não do momento em que o vicio se manifestava. A conseqüência era a extinção do direito do consumidor, antes mesmo dele tomar conhecimento do vício no produto.

As justificativas de outrora que rejeitavam este sistema de contagem não mais se sustentava na moderna sociedade. Como resultado, aqueles vícios existentes de forma embrionária e que se manifestavam tardiamente quando já terminada a sua fluência, não davam margem à utilização da garantia.

Outro ponto desfavorável diz respeito ao ônus da prova. O consumidor deveria fazer a prova tanto do vício como da sua pré-existência. Prova extremamente difícil em razão da complexidade dos bens. A demonstração seria possível com a realização de prova pericial, que o consumidor deixava de requerer em razão dos elevados custos que ocasiona em comparação com valor do próprio produto.

A natureza dispositiva das regras que perfazem a garantia permitia a supressão ou restrição da responsabilidade. O vendedor liberta-se da responsabilidade, que a rigor nem sempre seria dele, mas do fabricante que produziu o bem.170 Considerando que as cláusulas restritivas ou exonerativa passaram a constar em contratos de adesão, foram de maior gravidade para os consumidores tais estipulações.171

O regime legal da garantia contra os vícios ocultos da coisa, então em vigor para a uma realidade de produção e consumo em massa, configurou o abandono do consumidor que passou a suportar os riscos da existência de eventuais vícios dos produtos.