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Segurança jurídica: o prazo de caducidade

4. Direito Moderno: A Ideologia Liberal

4.4. Segurança jurídica: o prazo de caducidade

O sistema de mercado reclamava a eliminação de qualquer obstáculo à livre e segura circulação de bens. No processo de alocação de riscos subjacente à disciplina da garantia, indispensável que a responsabilidade do vendedor tivesse um limite temporal.

4.4.1. Brevidade

O jurista italiano Isidoro Módica, em clássica obra também do início do século XX, lecionava que a decadência encontra-se associada a um direito cujo exercício pelo titular tem por efeito a extinção da relação jurídica.71

71 Modica, Isidoro. Teoria della decadenza : nel diritto civile italiano; studio critico-ricostruttivo-esegetilo della decadenza nel sud. Torino : Ute, 1906.

A existência desse direito, denominado potestativo ou formativo- extintivo, configura, devido aos seus efeitos, uma ameaça à estabilidade das relações jurídicas. Daí porque a lei fixa um prazo para o seu exercício, e breve, para eliminar o estado de incerteza que ameaça o destino das relações de natureza, principalmente, contratual.

E por tais motivos seria contraditório, acrescentava o citado jurista italiano, a previsão legal de causas suspensivas ou interruptivas da fluência do prazo de caducidade porque prolongaria excessivamente o seu término, frustrando assim a finalidade pretendida pela caducidade: a extinção do direito subjetivo e, conseqüentemente, da pretensão, ação e exceção que dele decorriam, expondo à risco a segurança jurídica das relações econômicas.

No caso do instituto dos vícios redibitórios, o prazo estabelecido pelo legislador para que o adquirente da coisa portadora de vício oculto pudesse redibir a coisa ou reduzir o preço foram reconhecidos como de natureza decadencial.

A justificativa: a exigência social de estabilidade dos contratos de compra e venda. Módica, na obra citada, a propósito sublinha: “(...) se os vícios

redibitórios pudessem valer depois de dez, quinze, vinte anos, sobre cada vendedor penderia a espada de dâmocle, um risco de um juízo de êxito incerto,

sendo difícil precisar depois de um longo lapso de tempo se os vícios ocultos existiam no momento da venda ou se manifestaram depois”.72

Em realidade, privilegiava-se a posição do vendedor, limitando a sua responsabilidade com a extinção dos direitos do comprador, efeito contundente operado pela decadência.

É sofismático o argumento de que a eliminação do estado de incerteza mostrava-se como sendo de interesse das partes, em especial no tocante à dificuldade da prova e contraprova dos vícios da coisa.

A prova da anterioridade do vício, não há dúvida, é mais difícil com o transcurso do tempo, mas como notado pelo jurista Francês Gerard Jerome Nona, este era um problema do comprador a quem cabia o referido ônus.73

A brevidade do prazo, aliás, também proporcionava certeza à cadeia contratual antecedente na qual operara-se a transmissão da coisa, em vendas sucessivas. O vendedor final, contra quem fora proposta à ação edilícia, em princípio, poderia agir regressivamente contra o vendedor anterior. E assim sucessivamente, até o produtor da coisa, sob a mesma alegação da existência de vício.74

72 MODICA, Isidoro. Teoria della decadenza : nel diritto civile italiano; studio critico-ricostruttivo-esegetilo della decadenza nel sud. Torino : Ute, 1906, p. 246.

73NONA, Gerard-Jérôme. La reparation dês dommages causes par lês vices dúne chose. Paris: LGDJ, 1982, p. 164

74 João Calvão afima: (...) no tocante à venda de coisas móveis viciadas, sente-se a excessiva brevidade dos prazos fixados pelo Código (Civil Português). Continua a justificar-se, porem, a previsão de prazo breve razoável para as clássicas ações redibitória – hoje melhor dita acção de resolução, e não acção de anulação como a concebeu o legislador português – e acção estimatória, bem como para as ações de reparação ou substituição da coisa e indemnização, no interesse do vendedor e do comercio jurídico em cadeia, dados os efeitos de insegurança, de incerteza e de entorpecimento para o giro dos negócios decorrentes de prolongada garantia edilícia.” In Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e

Essa transferência de responsabilidade entre os agentes da cadeia comercial seria possível, anota Cunha Gonçalves, não fosse curto o prazo estabelecido para a propositura das ações. Decorrido o lapso não teria lugar à ação de regresso; o comprador-comerciante deveria queixar de si próprio ou computar o prejuízo como resultado de um caso fortuito.75

4.4.2. Termo inicial: as opções legislativas

Paralelamente à determinação do prazo, necessário ainda que fosse estabelecido o termo inicial da sua fluência.

Riccardo Fubini versou sobre os três sistemas existentes à disposição do legislador para a fixação do início da contagem do prazo: a data da celebração do contrato, da descoberta do vício e da entrega da coisa.76

O primeiro sistema não seria suscetível de aplicação prática quando não houvesse coincidência entre a data da celebração do contrato e a da entrega da coisa, afirmou o referido jurista. O prazo, se contado do momento da venda, poderia escoar por completo até o da entrega. O comprador, nessa circunstância, não disporia de meios para constatar o vício e invocar a garantia, pois a coisa lhe teria sido entregue depois de esgotado o prazo estabelecido para opor a sua reclamação.77

75 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Da Compra e Venda no Direito Comercial Brasileiro. 2º ed. São Paulo : Max

Limonad, 1950, p. 467.

76 FUBINI, Riccardo. Teoria dei vizi redibitori. Torino : Fratelli Bocca, 1906, p. 465. 77 FUBINI, Riccardo. Teoria dei vizi redibitori. Torino : Fratelli Bocca, 1906, p. 466.

Em relação ao segundo, momento da descoberta do vício, concluiu que aparentemente estaria fundado na eqüidade, porque o comprador não poderia reclamar de um vício oculto antes de tê-lo descoberto.

Advertiu, no entanto, a necessidade do não agravamento da responsabilidade do vendedor, que estaria perpetuamente exposto à redibição caso se deixasse ao comprador o arbítrio de examinar a coisa quando reputasse oportuno ou numa época em que seria difícil para o vendedor realizar a contra- prova da existência do vício.78 Não se poderia manter o vendedor, por tanto tempo, sob o encargo de uma responsabilidade que sequer tinha como fundamento a sua culpa.

A responsabilidade do vendedor deveria ter um limite, dentro do qual o comprador estaria premido a levar a efeito o contrato estipulado. As ações edilícias, afirmava, nasciam com a formação do contrato, e competia ao adquirente provar a pré-existência do vício desse momento; ter ou não descoberto o vício não teria o poder de influir no tempo necessário para o exercício da garantia.79

Descartando os dois primeiros sistemas, pelas razões apontadas, reputou mais adequado como medida de política legislativa, considerar a data da entrega da coisa como termo inicial do prazo.

De um lado, a recepção física da coisa pelo comprador lhe proporcionaria as condições materiais para que pudesse constatar eventuais

78 Ibid., p. 467. 79 Ibid., p. 468.

vícios de que fosse portadora, determinando o ônus de inspecioná-la e aprazando o seu direito de reclamar. De outro, submeteria o vendedor a uma responsabilidade com prazo certo, circunscrevendo o poder de agir do comprador.80