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O que faz certos artistas continuarem despertando interesse até

hoje? Por que alguns cantores têm direito a programas especiais de

televisão, reportagens, publicações e biografias, enquanto muitos sequer são lembrados, seja pelo público ou pela indústria cultural? Por que uma coletânea dos Beatles, com músicas prá lá de conhe-cidas, quando lançada, fica semanas como o álbum mais vendido? O que faz com que adolescentes nas grandes cidades brasileiras adorem desfilar com camisetas estampando o rosto de Renato Russo, se enquanto esse artista vivia o auge do seu sucesso estes mesmos adolescentes eram ainda embalados no colo por seus pais? (PINTO, 2006, p. 107; grifado no original)

Para responder às perguntas acima, Pinto (2006), num artigo que relaciona a construção da eternidade, do mito, com a indústria cultural, mostra como a história do blues e, posteriormente, do rock, está vinculada ao fenômeno de massa. Para ele:

Falar do surgimento do rock é falar também em blues. Mas se o

rock nasce como uma expressão da alegria juvenil nos anos do

pós-guerra, o blues tem origem na dor infligida ao corpo e à alma

de populações negras trazidas à força para as plantações do sul dos Estados Unidos. (PINTO, 2006, p. 191)

A história da música criou subdivisões, gêneros musicais como o

jazz, o blues e o rock and roll que, por sua vez, se subdivide em rock pro-gressivo, punk rock, rock pesado, entre outros. A origem do rock and roll

coincide com o período em que o consumo nos países capitalistas crescia. De acordo com Pinto (2006),os ídolos pop exercem grande influência sobre o seu legado de admiradores. Isso acontece pelo fato de a indústria cultural, que transforma a música em simples mercadoria, lançar ano a ano discos no mercado fonográfico, mesmo após a morte do autor. Os veículos de massa transformam os indivíduos em mitos, com o objetivo de lucrar em cima da sua obra. Muito desses nem ao menos estão vivos, mas alcançaram a imortalidade, sendo então lembrados por gerações e gerações. Então esses mitos só existem pelo fato de essa indústria querer construí-los, fazendo da arte uma mercadoria.

34 Iniciação Científica na Educação Profissional em Saúde: articulando trabalho, ciência e cultura - vol. 7 Pinto (2006) lembra que a noção de indústria cultural foi elaborada por Adorno e Horkheimer(2006) para falar de como o capitalismo se apropria da cultura para aperfeiçoar as mercadorias, dando uma atenção maior às manifestações musicais como o jazz e o blues. As massas movem-se de acordo com o interesse capitalista, isto é, o produto ajustado ao consumo de massa determina o consumo e faz com que as pessoas se identifiquem com as obras vendidas. Na sociedade democrática, a indústria cultural é uma forma de controle das classes dirigentes que, por um lado, mantém o povo entretido por valores que impossibilitam a transformação da realidade. Mas, por outro lado, a indústria cultural pode ampliar o acesso do povo às produções culturais e possibilitar outras formas de arte/cultura.

Ainda que a indústria cultural, no sentido de Adorno, continue a exercer um papel ativo na padronização das mentes da grande maioria dos grupos sociais, outros campos se abriram para a realização de produ-tos culturais. A possibilidade de um artista, hoje, ter o próprio estúdio em seu apartamento, produzir e comercializar seus CDs via internet, rompendo com uma antiga relação – produtor, empresário, contrato, gravadora etc. – seria algo impensável décadas atrás. O fenômeno da troca de músicas em formato de arquivos eletrônicos, também via in-ternet, é o atual fantasma a assombrar as grandes empresas do ramo. E, assim como Benjamin já previa em relação à reprodutibilidade das obras de arte, este também parece ser um fenômeno irreversível, de ca-ráter altamente democrático, que abre a um grande número de pessoas um universo de produções antes praticamente inacessíveis. No entanto, é importante frisar que estes fenômenos não representam uma diminui-ção do poder da indústria cultural, pois se tratam, sim, de desdobra-mentos de um modelo que ainda não deu sinais de dobrar os joelhos. E que continua atendendo, de maneira inequívoca, às necessidades dos grupos sociais, em seus múltiplos aspectos. (PINTO, 2006, p. 100)

Pinto defende que a indústria cultural atua na produção de mitos. quando criado um mito do rock, não é necessário saber se tudo que é dito sobre ele é verdade ou mentira. A grande maioria dos ídolos tem a sua

imagem relacionada a uma genialidade precoce, o sofrimento familiar, a luta para chegar a esse status. A indústria cultural faz questão de enfatizar o abuso das drogas, as orgias sexuais, o sucesso na vida pública e a der-rota na vida privada, pois ela produz e se alimenta da polêmica. Os fãs se identificam com o ídolo e o veneram pelo fato de eles geralmente suprirem os anseios dos seus seguidores. O mito é:

(...) o conjunto de condutas e situações imaginárias. Essas condutas e situações podem ter por protagonistas personagens sobre-humanas, heróis ou deuses; diz-se então o mito de Hércules, ou de Apolo. E com toda exatidão, Hércules é um herói, e Apolo, deus, de

seus mitos. (MORIN apud PINTO, 2006, p. 104)

Assim, a indústria cultural se aproveita da necessidade do homem de se projetar em mitos e transforma isso em mercadoria. O mito fica na lembrança das pessoas como um ser imortal, o sujeito morre para perma-necer vivendo. Depois da morte os produtos vendem desenfreadamente, enriquecendo a indústria por meio da construção do mito. O mito se forma na imagem que os seus seguidores têm dele, que faz com que se perpetue na história. Os fãs constroem uma narrativa e o mito, por sua vez, só existe por causa da “história narrada” (LÉVI-STRAUSS apud PINTO, 2006).

No Brasil, a indústria cultural agencia a produção e a venda de milhares de discos anualmente. A gravadora EMI-Odeon, por exemplo, continua colocando no mercado fonográfico pelo menos um disco da Legião Urbana por ano, fazendo desta uma banda ativa até hoje. No livro O Trovador Solitário, Dapieve (2006) relata que a EMI-Odeon não acreditava no sucesso da banda Legião Urbana. A gravadora vendia o álbum dos Paralamas do Sucesso e “empurrava” o álbum da Legião, po-rém, surpreendendo os empresários, a Legião vendeu de início mais de 50 mil cópias. Devido a esse fato, a gravadora percebeu que a banda seria uma fonte de rendimentos.

No contexto da indústria cultural, que transforma a música em pro-duto de consumo, a gravadora se apropriou da imagem do personagem mais forte da banda, o vocalista Renato Russo, e o tornou porta-voz da juventude, com o objetivo de fazer a obra vender cada vez mais. É válido lembrar que, nesse período, o Brasil estava passando por um processo

36 Iniciação Científica na Educação Profissional em Saúde: articulando trabalho, ciência e cultura - vol. 7 de democratização, pois tinha ficado um longo tempo sob o domínio dos militares. A imagem do Renato Russo foi referida nas coisas que os jovens queriam ouvir e falar:

Não somos nós que nos identificamos com a obra e sim a obra que se identifica com a gente. Renato Russo fez um sapato que cabe no pé de qualquer um, basta você calçá-lo. Só que, quando se calça esse sapato, nunca mais se tira, não por impossibilidade, e sim por opção. Ele respondeu todas as perguntas da juventude bem antes que elas fossem feitas.8

A construção do mito Renato Russo gera um fanatismo dos fãs, tanto que muitos deles se dizem seguidores da “Religião Urbana”, expressão que Renato Russo odiava, pois sabia a cobrança que era ser considerado um sacerdote, líder de uma juventude.

“Sou um jovem de vinte e poucos anos, não sei nada da vida”, reclamava. “As pessoas bebem as minhas palavras como água. E escrevo justamente porque não sei. Não quero que a minha opinião sobre temas controvertidos, drogas, por exemplo, influencie outra

pessoa.” (RENATO RUSSO apud DAPIEVE, 2006, p. 120)

Demarchi (2006) também lembra que os jovens fãs da Legião Urbana se autodenominam “legionários”, que para o autor são indivíduos que estabelecem contato com a produção artística da banda. Através desse contato, forjam para si uma identidade centrada nos princípios, signos e símbolos apresentados pela Legião Urbana em suas canções, entrevistas e performances em shows.

A questão não é julgar se a obra da banda é ou não merecedora de todo esse mercado, porém, se a indústria cultural não investisse na Legião Urbana, essa não teria tido todo o sucesso alcançado e, provavelmente, já estaria esquecida, bem como o Renato Russo. Os CDs da banda conti-nuam nas prateleiras das lojas porque se sabe que serão vendidos. É por causa dessa lógica que praticamente todo ano é lançado algo diferente sobre a Legião Urbana ou Renato Russo.

8 Discurso de um membro da comunidade Legião Urbana do Orkut, num fórum sobre o intelecto dos fãs, que discutia a diferença entre os fãs atuais e os antigos de Renato Russo, em 5 de julho de 2010.

Silveira (2005)defende que a obra de Renato Russo é basicamente poética. Renato fazia música inspirado em fatos corriqueiros, desamores, inquietações da juventude e no cotidiano, que registram os conflitos exis-tenciais; e tudo era feito com um extremo cuidado literário, o que acaba o diferenciando de uma série de artistas populares. Silveira (2005) considera que Renato Russo pode ser chamado de poeta pela forma que escreve e compõe ritmos, sons, aliterações e jogos de palavras. A música entra nos ouvidos sem pedir permissão, não é necessário pensar e sim senti-la. “Se Bandeira, a princípio, se valeu da poesia para dar sentido à vida, Renato Russo a usou, junto com o grande poder de comunicação da música, para que o público pensasse e refletisse sobre nossa existência e o momento histórico que nos envolve” (SILVEIRA, 2005, p. 7).