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A independência estética no século XIX: o folhetim

Capítulo I – A Formação dos Modelos Pedagógico-Moral e Estético

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Corte nas Aldeias, renovando as saudades do passado [sic] com lembranças devidas àquela dourada idade dos Portugueses» (p. 71). Na dedicatória de Corte na Aldeia, o autor manifesta-se nostálgico do tempo em que Portugal tinha de facto uma corte própria92.

Essa manifestação tem a ver com as características do tempo histórico no qual se inscreve o maneirismo português. Este é marcado pelo sentimento de decadência, decorrente da perda da grandeza política e económica antes alcançada, culminando com os acontecimentos de Alcácer-Quibir e a perda da independência nacional. Tais acontecimentos marcam a cultura portuguesa, nomeadamente através da crença no messianismo, que originaria toda uma literatura nacionalista. É neste contexto que se destaca o mecenato da casa de Bragança, ao qual se refere Francisco Rodrigues Lobo na sua dedicatória. A casa de Bragança, durante o domínio filipino, patrocinara o estudo da literatura produzida em Portugal, desenvolvendo-se em torno dela uma intensa actividade cultural, que se caracteriza pelo surgimento de uma literatura de cunho nacionalista, empenhada na defesa da causa restauracionista, e expressa em textos de carácter historiográfico e memorialista.

De acordo com o exposto, o nacionalismo de Francisco Rodrigues Lobo deve também ser responsabilizado pela valorização do conto como género, através da qual ele expõe uma doutrina estética. Naturalmente relacionada com esse interesse está também a oposição entre a cidade e o campo destacada em Corte na Aldeia e Noites de

Inverno, a qual decorre da afinidade notada, desde os primórdios do conto oral, entre ele

e o espaço rústico, cuja autencidade é sobremaneira enaltecida. A consciência teórica deste autor, resultante da união destes elementos é inédita. Essa reflexão sobre um género que, até ao século XVIII, permaneceu enraizado na tradição oral, e a delimitação de fronteiras entre ele e a novela de procedência italiana expressamente vinculada à tradição escrita, e nessa altura ainda denominada história, nunca havia sido empreendida e constitui um marco importante na sua história.

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Maria Lucília Gonçalves Pires, «A Corte na Aldeia de Francisco Rodrigues Lobo e a Literatura de Comportamento Social em Portugal no Século XVII», in Carlos Reis (dir.), História Crítica da Literatura

Portuguesa – Volume III: Maneirismo e Barroco, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 2001, p. 121 e p.

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Na Idade Média, no Renascimento, e no Barroco, o conto não existe autonomamente, surgindo integrado em colectâneas ou conjuntos narrativos. Até ao século XIX, é assim que sobrevive. Nesta altura, porém, alcança a independência estética, que, nas demais nações europeias, viria a situar-se no século XIV. Na sequência do desenvolvimento da imprensa, é permitida a sua publicação isolada, e esta, tendo lugar num contexto heterogéneo, potencia uma diversificação decisiva, tornando- o um produto da época, ao aproximá-lo da actualidade, permitindo a respectiva ascensão como forma moderna. A história remota do conto evidencia a fidelização a propósitos primacialmente não estéticos, razão por que dificilmente ele se liberta da raiz tradicional, que, aliás, se inscreve em todo o seu percurso. Contudo, a história recente, iniciada neste contexto, denuncia que o mesmo é responsável por uma significativa renovação formal, subjacente à qual está a valorização da vertente estética93.

O romantismo desempenha um papel essencial na revalorização da cultura tradicional, mas caberia também aos folcloristas portugueses dos anos 70 e 80 do século XIX, como Teófilo Braga e Adolfo Coelho, inspirados pelo trabalho de investigação dos irmãos Grimm, a descoberta do valor intrínseco do conto nacional e estrangeiro de extracção popular. Despertando o interesse do público por ele, esses estudiosos desenvolveram em Portugal uma actividade semelhante à dos investigadores alemães, dando continuidade ao trabalho desenvolvido por Almeida Garrett e Alexandre Herculano, divulgando o género compilado nas colectâneas94.

Teófilo Braga publica Contos Populares do Arquipélago Açoriano em 1869 e

Contos Tradicionais do Povo Português em 1883, datando a segundo volume desta obra

dos anos de 1914/15. Para ele, a tradição do povo é uma «fonte estética da literatura» e um meio de alcançar o progresso literário95. Adolfo Coelho publica a sua colectânea de

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Allan H. Pasco defende que nenhuma diferença existe entre os contos de As Mil e Uma Noites, os de Boccaccio, ou os de Margarida de Navarra, ou seja, entre os relatos tradicionais e os modernos. Os recursos mudam, mas nenhum traço distintivo ou qualidade diferencia uns dos outros em termos concretos. Deste modo, há elementos-chave que permanecem no género e são combinados com traços específicos de época, reflectindo uma realidade actual. Numa perspectiva afim da de Norman Friedman, adiante mencionada, acredita que a brevidade seria afectada por condições culturais particulares («On Defining Short Stories», in Charles E. May, op. cit., p. 115 e p. 121).

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Maria Teresa Cortez-Mesquita estuda em pormenor a acção desses folcloristas, e considera que o empenhamento colocado na actividade de recolha e publicação dos contos populares foi favorável à receptividade do público leitor português relativamente a essa e outras tradições europeias (Os Contos de

Grimm em Portugal – Estudo da Recepção dos Kinder-und Hausmärchen entre 1837 e 1910, Dissertação

de Doutoramento Policopiada, Universidade de Aveiro, 1998, p. 306). 95

Cf. Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, volume 1, p. 15. Como estuda Enrique Baltanás, o interesse de Teófilo Braga pelo folclore é também de natureza sociopolítica, já que o mesmo é

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contos populares em 1879, saudando o facto de Portugal acompanhar os estudos que já haviam sido encetados na Alemanha pelos autores da colectânea Kinder–und–

Hausmärchen, e assim confirma que o trabalho dos dois investigadores alemães

desencadeou um interesse notório pelo conto de extracção folclórica.

A Geração de 70, por intermédio de Teófilo Braga e Adolfo Coelho, terá um papel pioneiro na valorização do património nacional em prosa, desenvolvendo e actualizando as preocupações sociais e nacionalistas do primeiro romantismo. O interesse por esse património não é exclusivamente de pendor estético-literário, como no primeiro romantismo se verificava relativamente aos romances populares e lendas, mas filológico, etnográfico e pedagógico96. A atenção à literatura folclórica não se cinge apenas a este momento da cultura oitocentista. No fim-de-século, ela readquire igualmente significativa projecção, nomeadamente no estilo epocal neo-romântico, que, não sendo datado de uniformidade, se divide em várias tendências. Estas, apesar das suas diferenciações nominais e circunstanciais, emparelham aí com os esteticismos decadentista e simbolista na oposição à modernidade científica oriunda do Iluminismo97.

José Carlos Seabra identifica três correntes entre as tendências neo-românticas finisseculares: a vitalista, a saudosista, a lusitanista. Elas convergem nas concepções sobre a criação poética, as funções da literatura, a axiologia crítica, a estrutura genérica da expressão imagística e estilística98, e vão defender o tradicionalismo e nacionalismo literários, não subestimando a reverência por modelos anteriores da literatura portuguesa, como sejam os cancioneiros, os nobiliários medievais, autores como Camões, Bernardim, Cristóvão Falcão, Frei Agostinho da Cruz, Garrett e Camilo, João tido como instrumento de regeneração nacional e até de união ibérica («Folklore, Política y Literatura Popular en el Siglo XIX (Cartas Inéditas de A. Machado Alvarez a Teófilo Braga), Estudos de Literatura

Oral, 7-8, 2001-2, pp. 29-30).

96

Maria Teresa Cortez-Mesquita, «Teófilo Braga e Adolfo Coelho – Duas Posições Face aos Irmãos Grimm e à Colecção Kinder-und-Hausmärchen», Estudos de Literatura Oral, 7-8, 2001-2, p. 80.

97

Como estuda José Carlos Seabra Pereira, O Neo-romantismo na Poesia Portuguesa: 1900-1925, volume 1, Dissertação de Doutoramento Policopiada, Coimbra, 1999, p. 42. José Carlos Seabra Pereira descreve o neo-romantismo como um estilo epocal que surge «a partir da viragem para os anos 90, já em consciente integração numa frente de reacção anti-positivista e anti-naturalista, anti-realista e anti- parnasiana, que sempre em conluio com os esteticismos decadista e simbolista, algumas vezes também em demarcação mais ou menos rigorosa perante eles – apesar de, no quadro geral do devir oitocentista dos sistemas estético-literários, os mesmos Decadentismo e Simbolismo metamorfoseiam cada um a seu modo, importantes legados do Romantismo matricial.» (ibidem, p. 38)

98

José Carlos Seabra Pereira, «Tempo Neo-Romântico (Contributo para o Estudo das Relações entre Literatura e Sociedade no Primeiro Quartel do Século XX», Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 1983, p. 849.

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de Deus e Antero, Ramalho e Alberto d’Oliveira, António Nobre e Junqueiro. Todas elas, apesar da sua não uniformidade, pretendem «reatar o fio da genuína tradição e para reavivar a personalidade inalterável da Nação, da sua cultura e da sua literatura»99.

A única corrente do neo-romantismo que tem antecedentes no século XIX é a lusitanista, tendo precisamente uma gestação paralela ao avanço no domínio da pesquisa filológica, etnográfica e histórica, e ao crescente antagonismo entre a vida moderna e a provincial100. O neo-romantismo lusitanista privilegia a exaltação conservadora das virtudes e grandezas patrióticas. Não é totalmente alheio às questões sociais, mas estas são abordadas com resignação, não com revolta, de acordo com o seu moralismo religioso. À intervenção social a corrente lusitanista interpõe o culto da tradição, o historicismo e o ruralismo, dos quais ressalta o seu interesse etnográfico. Nela, o pitoresco insere-se na preocupação com o casticismo, ou com a língua, a história, o folclore, e aceita o povo como «museu natural». Na corrente lusitanista, o etnografismo (lendas, superstições, costumes, festividades, etc.) serve de inspiração temática, mas também surge como valorização do irracional, de certo passadismo e evasão pelo pitoresco, relacionando-se com a doutrina do popularismo estético. Motivados pelo valor do poder criativo da espontaneidade popular, os lusitanistas enaltecem a literatura produzida por tal camada da população, procedendo à sua recolha e aproveitamento101.

O interesse etnográfico destas correntes nacionalistas finisseculares apresenta-se como prolongamento daquele que foi manifestado pelos primeiros etnógrafos portugueses, estando a ele subjacente o desejo de superação da crise. Trindade Coelho, neste contexto, teria mesmo planeado uma versão portuguesa dos contos de Grimm, que nunca foi concretizada. O autor menciona esse desejo em carta a J. Monteiro Aillaud, datada de 12 de Dezembro de 1901, na qual salienta a necessidade de, numa eventual

99

José Carlos Seabra Pereira, op. cit., volume 2, p. 505. 100

José Carlos Seabra Pereira, «Tempo Neo-Romântico (Contributo para o Estudo das Relações entre Literatura e Sociedade no Primeiro Quartel do Século XX», ibidem, p. 853.

101

José Carlos Seabra Pereira, «Tempo Neo-Romântico (Contributo para o Estudo das Relações entre Literatura e Sociedade no Primeiro Quartel do Século XX», op. cit., pp. 866-867. Sobre isso, escreve o autor: «Se, enquanto fonte de inspiração temática (lendas e superstições, tradições e costumes, devoções e, festejos, trajos e artefactos, utensílios e processos os mesteres e da lavoura, etc), o etnografismo se liga à valorização do irracional, ao ruralismo, ao passadismo e à evasão pelo pitoresco, pelo menos enquanto fonte de inspiração estilístico-formal, essa componente etnográfica do neo-romantismo lusitanista liga-se à doutrina do popularismo estético. Na dependência ou não da defesa explícita do princípio do inigualável poder criativo da espontaneidade popular (ao nível individual ou colectivo), os lusitanistas lançam-se no enaltecimento da poesia e demais literatura popular, procedem à sua recolha, legitimam a sua “afinação” (termo usado por Trindade Coelho).» O popularismo envolve o aproveitamento de elementos e textos da poesia popular cujo estilo é assimilado (ibidem, p. 867).

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compilação portuguesa de tais contos, lhes restituir a simplicidade característica da sua forma popular, escrevendo ao seu correspondente: «[…] Os Contos de Grimm em francês são muito literários, têm muitas cascas, muito artifício, quase retórica! Mas nós vamos […] restituí-los, quanto possível, ao que suponho deverá ter sido a sua forma popular e primitiva.»102

A par da revitalização do interesse pelo património de origem popular, na década de 70 do século XIX, o conto, que no romantismo pertence às raízes folclóricas, afasta- se mais da matriz oral. A sua maturidade decorre precisamente dessa separação, mas também da distância criada da subordinação ao propósito moral, a partir da qual o mesmo se assume como forma autonomizada de objectivos não estéticos. Esse desenvolvimento revela, portanto, um género paradoxal, porque, sendo o mais antigo, é também o que mais tardiamente conheceu uma configuração literária103.

A evolução histórica confirma de facto a origem recuada do género, mas é verdade que, no século XIX, a autonomia artística resulta da sua integração no mundo das publicações periódicas, cuja popularidade contribui para a sua transformação. O desenvolvimento deste novo mercado anuncia um tempo no qual se verifica a preferência pelo conto. Influenciado pelo folhetim e pela crónica jornalística, o conto literário moderno afasta-se (provisoriamente) da sua raiz folclórica. A emergência de um novo género, que está relacionado com o modelo desenvolvido na imprensa, não impede o reconhecimento de que ele sempre esteve mais próximo do folclórico, até porque no romantismo ele era já publicado nos periódicos e está muito dependente do universo tradicional, como, aliás, viria a estar um século mais tarde, nomeadamente através de Manuel da Fonseca104.

102

Trindade Coelho, in Carolina Michäelis, org., Autobiografia e Cartas, Lisboa, A Editora, 1910, p. 159. 103

Como bem salienta Mariano Baquero Goyanes: «Confundido inicialmente con el mito, con las viejas creencias y las seculares tradiciones, el cuento alcanza configuración literaria en el XIX, y se convierte así en el más paradójico e extraño de los géneros: aquel que, a la vez, era el más antiguo del mundo y que más tardó en adquirir forma literaria.» (Mariano, Qué es el cuento?, Buenos Aires, Editorial Columbia, 1967, pp. 22-23).

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O que João de Melo escreve no prólogo à sua antologia do conto português enquadra-se nesta perspectiva: «Mesmo quando, nos períodos mencionados [Idade Média, Renascimento, Barroco], circulava já sob forma escrita, o conto português não foi além de uma narrativa incipiente, umas vezes sobrecarregada pela moralidade religiosa ou social, outras pelas mitologias do maravilhoso pagão, e portanto sem um modelo formal que o aproximasse da sua verdadeira autonomia literária. Nem mesmo o Renascimento lhe trouxe aquela moldura de modernidade e renovação que tanto impacto causou nas literaturas ocidentais. Confundindo-se com as tradições populares da oralidade, esteve quase sempre mais perto do folclórico que do literário.» (cf. «Prólogo», in Antologia do Conto Português, 2ª edição, Lisboa, D. Quixote, 2002, p. 11).

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Essa emergência está relacionada com uma das principais transformações a que se assiste a partir dos anos 40 do século XIX: a evolução do mercado literário, por causa da alteração das condições de produção e de distribuição, dos meios de difusão, do estatuto dos produtores, da composição e número de público, cujo alargamento resulta na libertação do mecenato tradicional, pois ele não é agora recrutado do círculo restrito de relações pessoais, mas acompanha o próprio desenvolvimento desse mercado, que teve como consequência imediata e primacial a mudança na relação entre o produtor e o consumidor. Para isso, muito contribuiu a própria imprensa periódica, na qual os intelectuais de oitocentos, independentemente da classe, participavam assiduamente. Foi, portanto, principalmente através da imprensa que muitos deles se foram tornando profissionais das letras, não através do livro105.

Nesta primeira metade de oitocentos, surge um grande número de publicações periódicas, que estão relacionadas com um novo género de escrita: o folhetim. Trata-se de uma moda importada de França, onde já existia desde os anos 40, que foi implementada em Portugal por Almeida Garrett por volta de 1846. No jornal, havia dois tipos de folhetim: o folhetim literário ou folhetim crónica e o folhetim série. O primeiro tipo era uma crónica de actualidades, e tinha suporte definitivo naquele espaço de publicação; o segundo tinha no mesmo apenas um suporte de passagem, e estava reservado à publicação em série de romances, que só posteriormente sairiam em livro, contribuindo para o desenvolvimento de uma estrutura narrativa digressiva no primeiro e segundo romantismos. O folhetim literário congrega vários registos, desde o informativo ao poético (depoimentos, descrições de eventos, que têm pretensões de análise social, crítica literária, biografia, poema, poema em prosa, conto, crónica), matérias que vieram a desenvolver-se de forma especializada nas secções do jornal moderno106.

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Maria de Lourdes Costa Lima dos Santos explica que, tendo a condição do livro como mercadoria sido estabelecida entre 1820 e 1870 coincidiu com o crescente domínio dos editores franceses (Rolland, Betrand, Maré, Chardron, Orcel) sobre o mercado livreiro português, o que limitou as obras dos nacionais ao consumo interno, impossibilitando a sua divulgação no estrangeiro. Esta seria razão mais do que suficiente para justificar a importância que a imprensa periódica teria nas suas vidas, como único modo de exercer a sua actividade e proceder à divulgação das suas criações (Maria de Lourdes Costa Lima dos Santos, Intelectuais Portugueses na Primeira Metade de Oitocentos, Lisboa, Editorial Presença, 1988, p. 248). O escritor, em vez de depender do Estado, depende agora das regras do mercado. Porque dificilmente a suficiência económica do profissional das letras estaria garantida, ele recorre às funções de tradutor e folhetinista, de modo a garantir a sua sobrevivência (ibidem, p. 149). É por isso que a imprensa se torna tão relevante nesta altura.

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Maria de Lourdes Costa Lima dos Santos, «Folhetim», in Helena Carvalhão Buescu, coord.,

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A publicação em série contribuiu para suscitar o interesse dos leitores pelo romance-folhetim. Trata-se de uma forma narrativa que, tirando partido dos êxitos franceses, divulgados em Portugal através de traduções duvidosas, muito contribuiu para o sucesso da imprensa periódica, aumentando o número dos seus subscritores107. Neste contexto, ele surgiria como alternativa aos textos didácticos, constituindo uma forma mais acessível para a maioria do público. O romance-folhetim é um género narrativo com traços próprios, alguns deles derivados da periodicidade com que era publicado108.

Da forma de publicação, decorre a sua específica construção apelativa e a respectiva estratégia retórica assente no diálogo constante entre o narrador e o narratário, através do qual aquele guia a leitura. Certa convencionalidade é característica desse romance, nomeadamente em termos de temática. Os temas sociais são nele uma constante: o tema do adultério está quase sempre presente, sendo utilizado para destacar a luta entre a paixão e o dever, bem como a problemática da injustiça entre classes, comprovada com o recurso ao casamento contrariado, os temas da orfandade, da pobreza, da honra e da traição são igualmente uma presença fixa, utilizada para destacar a figura do herói que luta por uma causa justa.

O género seria muito influenciado pelo melodrama, bastante popular no século XIX, e marcado pelo sentimento, pelo exótico, e pela sobrenaturalidade109. Ele é ainda caracterizado por uma estrutura digressiva, a qual resulta no destaque dado a peripécias marginais ao acontecimento central (através da introdução do mistério, do enigma, do terror, do sobrenatural, do macabro, e do crime, associados a golpes teatrais de aparições de personagens, e ao ambiente gótico medieval, presente nos espaços em ruínas), inerente às quais está o maniqueísmo da acção, patente no desenlace moralizador. A sua acção é frequentemente interrompida, mesmo em pontos essenciais,

107

Para os livreiros, esse modelo, representado pela produção de Alexandre Dumas, Eugène Sue, Paul Féval, Paul de Kock, Xavier de Montépin e Arlincourt, constituía um investimento de retorno garantido. A própria evolução dos hábitos de leitura da população portuguesa demonstra que a sua preferência vai para este tipo de literatura, associada ao prazer e à diversão, que permitiria escapar à banalidade quotidiana (cf. Maria do Rosário Cunha, A Inscrição do Livro e da Leitura na Ficção de Eça de Queirós, Coimbra, Almedina, 2004, p. 64).

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Carlos Reis considera mesmo que o tipo de narrador caracteristicamente nele representado é uma projecção discursiva dos condicionamentos criados pelo tipo de comunicação instituída, a qual origina «um relato que há que controlar, prolongar, encurtar ou interromper de acordo com imposições extra- literárias (problemas financeiros, reacções do público, etc.), [e] exige uma manipulação do tipo “totalitário”» («Romance-folhetim», Dicionário de Narratologia, p. 370).

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Cf. José Édil de Lima Alves, in A Paródia em Novelas-Folhetins Camilianas, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990, p. 19 e pp. 24-25.

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para introdução da digressão propositadamente destinada a dilatar a narrativa, mantendo as expectativas do leitor, cujo interesse é necessário assegurar.

Todavia, este sub-género está normalmente associado à industrialização da literatura, e nem sempre foi visto de forma positiva. O seu sensacionalismo não agrada aos críticos, mas por vezes estes também cultivam esta forma narrativa. É o caso de Camilo Castelo Branco, que através dela procura alcançar um público mais alargado. Como adiante se verá, fá-lo sempre a partir de uma consciência crítica praticada na