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O perfil do contador

No documento O conto literário: a memória da tradição (páginas 96-101)

Capítulo II – O Modelo Pedagógico em Rodrigo Paganino

2 Rodrigo Paganino e Os Contos do Tio Joaquim

2.3 O perfil do contador

O contador é normalmente uma figura socialmente relevante, um homem paciente e ponderado, de certa idade, pormenor associado a determinada experiência de vida. Antes de contar, deixa normalmente que os frutos das longas observações apreendidas ao longo dessa vida sejam pacientemente decantados dentro de si próprio, para poder então prosseguir com o conto. Para isso, precisa da experiência dos quarenta ou cinquenta anos de idade. Inserido nas classes mais pobres da população, ele é muitas

82 vezes um indigente, que conta para receber esmola147. Esta condição também o identifica como um homem solitário, situação que favorece a capacidade de narrar. Este não é o caso de Tio Joaquim, mas será com efeito o do contador em Manuel da Fonseca148.

Tio Joaquim é um trabalhador rural, versátil e experiente, que guiava como ninguém uma junta de bois ou conduzia um arado, trabalhando na poda e na empoa como nenhum outro, fazendo com a mesma determinação e eficácia um pé de lagar ou uma meda de pão, aconselhando todos relativamente ao exercício de todas estas actividades tradicionais, situação que cria cumplicidade com a comunidade na qual se integra para cumprir a sua função, fundamentada nesse ofício tradicional, na sua sageza e memória. Qualquer dos factores permite o respeito, fundamenta afinidades e auxilia na familiaridade.

Por um lado, o exercício de um ofício tradicional permite que jante e conviva com os malteses, à lareira, por outro lado, justifica o seu conhecimento empírico do mundo natural, pois «ninguém como ele sabia […] falar do tempo, olhando para as estrelas» (p. 15). Esse conhecimento permite-lhe aprofundar a intimidade com os membros da comunidade. A par disso, a senectude do contador, associada à sageza, fortalece o vínculo entre o passado e o presente, que faz dele guardião da memória. A legitimação do seu papel decorre do seu retrato como alguém cuja experiência de vida, marcada pelo sofrimento, pelo erro, arrependimento e penitência, é autorizado como figura idónea que pode efectivamente moralizar pela narração. Contrariamente ao pároco de «O Sexto Mandamento», Tio Joaquim é, com efeito, descrito pelo narrador principal como contador de histórias exemplar, como um livro, que ultrapassava qualquer membro da comunidade local nessa função, e demonstra grande sabedoria:

O Tio Joaquim lembrava-me um desses livros antigos de bruxedos e encantamentos, que fechado poder-se-ia confundir aos olhos de um observador qualquer

147

Cf. Georges Jean, op. cit., p. 184. 148

Luciana Hartmann confirma precisamente estes elementos do perfil do contador tradicional de histórias, sobre o qual escreve: «[…] O contador é alguém que viaja. Ele é capaz de concentrar a atenção de seus ouvintes com o relato de suas andanças, ou seja, os conteúdos de suas narrativas são compostos de episódios extraídos de sua própria história de vida. A formação do contador […] está necessariamente ligada à capacidade que ele tem de lidar com os reveses que a vida lhe apresenta, e mais, de transformá- los em narrativas interessantes. O narrador é aquele que superou as dificuldades, venceu obstáculos, sobreviveu para contar a história – mesmo que no plano imaginário.» (op. cit., p. 45). A mesma autora sublinha que são, efectivamente, «as características particulares da experiência de vida desses contadores [os contadores tradicionais], e a sua habilidade em narrá-las, que fazem com que sejam legitimados perante a sua comunidade narrativa.» (ibidem, p. 175).

83 com um ripanço de semana santa; aberto, porém, espavoria a imaginação povoando-a com os quadros temerosos de castelos encantados, florestas mágicas, sortilégios infernais, feiticeiros, tragos, almas penadas e cemitérios.

Levava-me o desejo a folheá-lo; a dúvida afastava-me de lhe tocar. («A História do Narrador», pp. 189-190)

Nessa posição, age em consonância com as normas culturais e de grupo que legitimam a sua actuação, tal como antes fora sugerido. Neste caso, a sua imagem é afim da do contador de histórias orais, confirmando a sua autoridade. A forma de tratamento é o primeiro sinal de que se está perante uma figura de mais idade, respeitada em contexto rural. As personagens Tio André e Tio Joaquim de Matos, respectivamente de «A Galinha da Minha Vizinha...» e «Os Domingos de Fora da Terra», embora não sendo contadores, são figuras de mais idade, igualmente respeitadas, e tratadas do mesmo modo.

Tio Joaquim ora é descrito como «velho» ora como «velho narrador» («O Romance de um Céptico de Aldeia» e «A História do Narrador», p. 21 e 206), homem honrado e pessoa de reputação muito favorável perante a comunidade, que o respeita como um dos seus elementos mais velhos. Nessa sua posição de mais velho, o contador está bem familiarizado com a comunidade e conhece de forma mais ou menos aprofundada os seus membros. No conto «O Tomás dos Passarinhos», o protagonista vem bater à porta ao serão e é reconhecido por Tio Joaquim que, na sua amabilidade aldeã, de tudo faz para resguardar o pobre cheio de frio, mesmo sem conhecer ainda a sua identidade:

- Entre, patrão – bradou-lhe o Tio Joaquim –, não está tempo para cerimónias, se isto continua lá se vão todas as sementes com a cheia. […] Largue o capote e o chapéu que traz numa sopa, embrulhe-se aí numa manta, e chegue-se para o lume […].

- Deus lhe pague tanto incómodo, Tio Joaquim – exclamou o desconhecido, seguindo à risca as indicações do hospedeiro.

Este, admirado por ouvir o seu nome, atentou no recém-chegado, e como procurando avivar recordações:

- Espera, eu já ouvi esta voz, mas não me lembro aonde; olha bem para mim: eu conheço-te, já vi a tua cara, isso vi.

- Tão mudado estou que já se não lembra de mim, do Tomás… - Do Tomás da Tia Anica, se lembro! (p. 165)

O trabalho, em que é tão exímio o contador, é resultado das circunstâncias da sua vida passada, como conta o próprio na narrativa final. Tio Joaquim regressa aí aos primeiros tempos de uma juventude passada num convento. O destino religioso não fora decisão sua, mas do pai que escolhera Filipe, o filho varão, para assumir o seu lugar de

84 lavrador, deixando Joaquim, como mais novo, sob a protecção de Frei João da Soledade. A inclinação, mais do que a vocação, para uma vida de recolhimento num claustro, foi facilitada pela ausência de uma razão exterior, como um amor, que justificasse a sua oposição ao pai.

A sua solenidade é fruto dos acontecimentos do passado, que explicam a figura pensativa dos contos, cujo sentido prático da vida se deveu precisamente ao contacto que foi obrigado a ter com o mundo do trabalho, quando enfrentou a pobreza. Esse mundo, como o próprio reconhece, mitiga o idealismo e imaginação fantasiosa adquirida durante a experiência conventual. Seria, por conseguinte, o encontro fatal com a noiva do irmão, depois de professar, a alterar-lhe a vida e o espírito, aos vinte e dois anos de idade, quatro anos depois desse recolhimento149.

Os acontecimentos da vida passada obrigam Tio Joaquim a trabalhar arduamente. Para além de o ajudar a vencer a pobreza e a apaziguar a sua dor, o trabalho modifica-lhe o espírito romântico e sonhador, obrigando a um confronto directo com a realidade. Os mesmos acontecimentos decidem as circunstâncias futuras da sua vida e sobretudo determinam a presença, na sua mente, de que o castigo é a recompensa dos pecadores. Reconhecendo-se culpado da morte do irmão (embora não tivesse sido ele a empunhar a arma e a mesma morte tivesse acontecido durante as lutas entre liberais e absolutistas), o velho contador arrepende-se, adoptando uma atitude moral.

Sem dúvida que as circunstâncias da vida destinam-se a confirmar a sua verticalidade moral, legitimando a capacidade de repreender e moralizar a assembleia à qual se dirige. A sua melancolia confirma uma estatura moral superior, criando expectativa em redor, e encaminhando para a narrativa final, na qual é destacada esta tristeza. Aí, Tio Joaquim volta a revivê-la, como demonstra o seu rosto desalentado, o sorriso indisciplinado, que traem o seu esforço para continuar a ser o velho Tio Joaquim da casa da malta e do canto da lareira. O mesmo estado de espírito une a história pessoal à que narra, na medida em que esta se situa no mesmo passado que aquela, significando que contar é recordar. Aliás, Georges Jean explica que a implicação do contador na

149

Este acontecimento terá sido inspirado na vida real do escritor, que não teria sido capaz de resistir ao desgosto de ver a sua noiva casar com um primo que enriquecera repentinamente, circunstância que ainda mais contribui para a cumplicidade verificada entre autor/narrador nestes contos (Andrée Crabbé Rocha, «Rodrigo Paganino», in Jacinto do Prado Coelho, dir., Dicionário da Literatura Portuguesa, volume 4,4ª edição, Porto, Figueirinhas, 1994, p. 781).

85 história narrada tem por objectivo assegurar a eternização do conto na mente do seu ouvinte150.

Desta forma, a sua discordância das atitudes das personagens, motivando o conto, vem desse conhecimento baseado na experiência, responsável pelo desencadear da narrativa. O contador oral narra «casos», exercendo uma função testemunhal, porque terá presenciado algumas das histórias que conta, confirmando a existência «real» das personagens do segundo nível narrativo. Também neste caso em concreto, a sugestão de que as personagens existem ainda, visa responsabilizar o ouvinte pela manutenção da memória do conto. O valor moral é fortalecido pelo facto de se assegurar tratar-se de um caso verdadeiramente acontecido, uma herança da influência da veia exemplar sobre o conto.

A introdução de personagens conhecidas dos ouvintes decorre da necessidade de transformar a experiência relatada em experiência vivida pelos ouvintes e do facto de o narrado resultar da vida vivida do contador. O «caso», visto como mais instrutivo comparativamente às histórias ficcionais, assenta assim na memória do acontecido e convém à moral, circunstância que está relacionada com a classificação interna da narrativa. Tio Joaquim qualifica os contos de «casos» e associa-os à memória, da qual efectivamente resulta o conto, que o próprio assegura ser verdadeiro, dada a sua qualidade de testemunha:

- A morte do Manuel Simões fez-me lembrar um caso, a que assisti, há tempos, quem sabe se o Manuel padeceria tanto como o outro, que eu vi morrer.

Há-de haver dez anos a esta parte, que sucedeu o caso que lhes vou contar. («O Romance de um Céptico de Aldeia», p. 21)

André Pimenta [é] um dos trabalhadores mais falados dos sítios onde este caso aconteceu […]. («A Galinha da Minha Vizinha…», p. 93)

[Luís Tibúrcio] há vinte anos não tinha onde cair morto, nem esperanças de mudar de sorte. Um caso bem parecido com o que hoje ouviram ao senhor prior foi o começo da sua fortuna. («O Sexto Mandamento», p. 153. Sublinhados acrescentados.)

A familiaridade com o espaço estabelece entre o contador e os seus ouvintes uma cumplicidade que assenta no facto de pertencerem à mesma comunidade. A loja de João da Tenda, o cemitério onde jazem aqueles sobre os quais se ouviu contar, são

150

86 conhecidos da comunidade, a par dos espaços da sociabilidade e da vida privada do caso narrado, cuja existência pode ser verificada, sendo as personagens conhecidas do grupo:

[…] Morava eu lá então ao pé da freguesia, ouvi tocar a Nosso-Pai fora, levantei-me e fui acompanhar o sacramento […]. («O Guarda do Cemitério», p. 26)

Este António faz-me lembrar o João da Tenda, que vivia lá em baixo ao pé das casas do mestre Raimundo e que por dez réis de mel coado fazia juras e protestos às carradas. Em mal lhe deu o vício, coitado. («A Propósito da Missa do Dia», p. 41.)

- Todos, quantos aqui estão, conhecem ou têm ouvido nomear o Luís Tibúrcio, que tem arrendado ao Morgado dos Cachorros o olival grande do Brejo, no alto da

estrada da Carejosa. («O Sexto Mandamento», p. 153. Sublinhados acrescentados.)

A conivência sublinhada é suportada através da inclusão de elementos da vida do contador na narrativa. Em várias circunstâncias, Tio Joaquim assegura a sua co- presencialidade no mundo que a sua memória actualiza, reafirmando a sua vizinhança dos acontecimentos, quando não a própria intervenção directa nos mesmos. O facto de participar na história potencia a eficácia moral desta.

O que se verifica também, em todo o caso, é que a história dos outros naturalmente encaminha para a própria história de Tio Joaquim, que se vai esboçando de forma sugestiva através da expressividade própria da transmissão oral. Porque o contador exerce uma função testemunhal, pois conhece as personagens cuja história se presta a contar, faz uso da memória dos «factos» acontecidos. O valor moral é consolidado através dessa «verdade», ou circunstância de o contado assentar numa «realidade» confirmada, e a partir da estatura moral do próprio contador, que em primeira mão conhece as figuras centrais dos contos, tal como o narrador principal, em alguns casos, as conhece, herdando a legitimidade do contador.

No documento O conto literário: a memória da tradição (páginas 96-101)