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Capítulo III – A Constituição do Modelo Estético: de Camilo Castelo

2 O conto fantástico no século XIX

2.2 Álvaro do Carvalhal: romantismo, ultra-romantismo, realismo

2.2.1 Sobre o romance

Nos seus Contos, Álvaro do Carvalhal critica também os elementos característicos do «romance de armar ao efeito», termos com os quais o narrador de «Os Canibais» descreve o romance-folhetim (p. 217). Quando ao seu estilo, ele é descrito com recurso a expressões depreciativas. As suas frases são «grandes e vazias com aspirações a graciosas», o seu discurso «patético» («A Febre do Jogo», p. 11 e p. 17), e o seu estilo «sécio» («Honra Antiga», p. 113). O narrador comenta o discurso travado entre Mariano e Lúcio, considerando a imprecação do primeiro – «Perdoas e não te recusarás a atirar-me, com um nada de sacrifício, deste leito de urtigas!» – como declaração imbuída de novidade. Trata-se de uma apreciação irónica, na qual a crítica está dissimulada de elogio. Na verdade, portanto, ao realçar a novidade da expressão, pretende sublinhar que está gasta pelo uso:

Por que não? Quem nesta era elegante, de modas sécias, de finos atavios, de primores sem conta consentiria uma câmara, já não digo senão modesta, o tosco leito de um bárbaro […], sem colchão de mole plumagem […]? Um leito de urtigas, se lhe falta o sainete das antigas histórias, abunda em frescura; rescende a novidade […]. («A Febre do Jogo», p. 17)

O narrador de «O Punhal de Rosaura» identifica o estilo em causa como «enfeite», não lhe atribuindo nenhuma função para além da ornamental: «Viram-se e amaram-se. Aí está a verdade nua e crua sem o luxo das lampejantes frases do ritual, que apenas serão de primor para enfeitar ficções, e aplanar frias gibosidades.» (p. 63) O estilo constitui um reflexo do exagero sentimental ao qual está vinculado o romance, e, estando associado ao seu pretensiosismo, origina no mesmo a digressão, cujo objectivo primacial era influenciar o leitor. Quando, por isso, em «Os Canibais» se propugna o seu abandono é com o propósito de criticar esta opção do romance contemporâneo: «Enfim, quebro o fio às divagações para me devotar à história, que o merece. Escolha o leitor a capricho o local da acção, que daí lavo eu as minhas mãos, contanto que se não ausente do país em que sejam lidos Dumas e Kock, e onde abundem seminários, escândalos e sotainas.» (pp. 222-223) A proeminência adquirida por este estilo faz dele retira seriedade à sua figura: «- Meu pai! – brada estupidificado o mancebo. // Oscila o corpo. // Que seria? A sombra de Banquo? O sombrio espectro de Hamlet? Alguma das ensanguentadas vítimas de Ricardo III? // Não. Era o cozinheiro. // Era o cozinheiro, que, cabendo-lhe em sorte velar sobre o enfermo, cedera ao sono e acabara por se estirar no pavimento.» (p. 81)

160 uma das características mais reconhecidas do género tratado, que o autor associa a repetição imitativa e ausência de originalidade242. Expressões como «termos gastos da circulação», «velha costumeira», ou frases como «nisto de descrições não há sair do mesmo terreno» e ainda «reticências do costume» («Os Canibais», p. 218 e p. 154), referem-se à falta de inovação patente no estilo do romance parodiado. Apesar de a repetição sugerir que o autor incorre no mesmo tipo de falta de originalidade, o facto é que ela é motivada pela necessidade de remeter para o conhecido, mas recusando a conformidade com ele, através da adopção de uma atitude crítica.

De facto, esta recusa é visível na opção de omitir a descrição / digressão associada no romance à veiculação de um propósito de natureza moral243. Por exemplo, em «O Punhal de Rosaura» e «Os Canibais», é recomendado ao leitor que consulte qualquer romance dos que estão em circulação para que obtenha a descrição dos bailes, omitida em ambos. A história e o discurso, no fantástico, são fruto de uma criteriosa contenção de recursos. Para além disso, e através desta escolha, Álvaro do Carvalhal manifesta uma certa consciência da contenção característica do conto, cujo valor acaba por enaltecer. Em «O Punhal de Rosaura», é referido: «Faz um ano [desde a morte de Rosaura]. Era, como hoje, a última noite de carnaval. Se quiser saber do carnaval em Veneza, perguntai-o às crónicas ou aprendei-o nos romances.» (p. 199)244 A descrição característica do romance estrangeiro é identificada como chavão que visa agradar ao leitor impressionável, pois é imitada servilmente em Portugal. Na perspectiva do autor, esta modalidade textual comprova que a imitação se sobrepõe à originalidade.

Uma vez mais, através da metalepse, que permite a interpenetração do nível extradiegético no diegético, por intermédio da presença do leitor empírico neste, é solicitado a esta instância que ajuíze com outro olhar o valor artístico do alvo escolhido. O romance criticado caracteriza-se por prestar vassalagem ao leitor, muitas vezes

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Na seguinte passagem e «J. Moreno»: «J. Moreno não foi mais forte [do que Petra]. E, para encurtar razões, poderíamos inspirar-nos nos termos gastos da circulação, em que começam os ordinários bilhetes de amor campesino, ou de meia-tigela: “Vi-te e amei-te”.» (Contos, pp. 62-63).

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Como está patente em «Os Canibais», conto no qual este tipo de digressão é considerada fastidiosa: «Era um excelente rapaz este D. João. […] Tisnara-lhe porém o hálito quente da sociedade as mais belas flores da sua leal natureza. // E não se tome isto como fastidioso monólogo de maçudo moralizador.» (Contos, p. 229).

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Em «Os Canibais», o narrador insiste na falta de originalidade da descrição, e recomenda ao leitor que procure ver como a mesma é apresentada num dos romances da moda: «Mil poetas, no exagero de aprimorados versos, têm sabido pintá-lo [ao baile], sem omissão de alguns dos matizes, que o abrilhantam. Melhor será, portanto, que o leitor veja a descrição do meu baile em qualquer poema artisticamente fantasioso, porque nisto de descrições não há sair do mesmo terreno.» (Contos, p. 218)

161 identificado com um mecenas, a cujos caprichos o autor se submete, sacrificando aos mesmos a sua liberdade. Em «J. Moreno», pode ler-se que as recordações do herói «em letra redonda dariam matéria para um volume de oitocentas páginas com retrato do autor, dedicatória a uma celebridade da época, que usa do democrático “Tu” com os amigos, e não sei que mais» (p. 61), uma referência que diz respeito ao sistema cultural do mecenato.

No documento O conto literário: a memória da tradição (páginas 177-179)