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Jacques Copeau foi um artista de teatro francês que influenciou uma vasta quantidade de artistas, através do primeiro teatro-escola na França. Segundo Maria Lúcia Pupo (2005), Copeau ‘considera o ator um elemento indispensável para a renovação do teatro de seu tempo e passa a sistematizar diretrizes para sua formação global e progressiva, dando origem a uma verdadeira pedagogia do ator’ (p.224).

Em seu livro “O Corpo Poético”, Lecoq identifica sua pesquisa como uma espécie de retomada do trabalho de Copeau e reconhece como seu mestre, Jean Dastè, já que foi nas apresentações com o grupo de Grenoble que descobriu o "espírito ‘Copiaux’, ou seja, essa vontade de dirigir-se a um público popular, com um espetáculo simples e direto.

Jacques Lecoq chega ao teatro a partir da prática do esporte. Cursando Educação Física, descobre o teatro por influência de Jean-Marie Conty, que nessa época era o responsável pelo esporte na França e um interessado pelas relações entre esporte e teatro, sendo, ainda, colaborador da escola de Educação pelo Jogo Dramático (EPJD), fundada por Jean-Luis Barrault e na qual, anos mais tarde, Lecoq ensinaria expressão corporal. Suas primeiras experiências, como aluno de teatro, são as aulas de improvisações mimadas com Claude Martin, aluno de Charles Dullin que, por sua vez, havia sido colaborador

de Jacques Copeau. Mas é na companhia Comediens, de Grenoble, onde debuta como profissional com Jean Dasté, que Lecoq conhece duas fontes que deixam profunda influência em seu trabalho: a atuação com máscaras teatrais e o teatro Nô japonês. (LINARES, 2011, p.40)

Ao escrever sobre o trabalho com a Cia. des Comédiens de Grenoble, dirigida por Jean Dastè, Lecoq considera tais experiências como as primeiras propostas de descentralização teatral na França. O espetáculo “O Êxodo”, uma figuração mímica, da qual participou Lecoq, foi encenada logo após o fim da Segunda Guerra mundial e “reevocava o drama dos camponeses obrigados a abandonarem suas aldeias e escapar pela estrada, na tentativa de fugir do invasor” (SARTORI et al, 2012, p.155). Segundo ele, o grupo levava apresentações às aldeias localizadas nas montanhas “onde o público jamais havia visto uma representação teatral” (Idem).

É importante lembrar que não havia, naquele momento, nenhuma política pública cultural estabelecida no país, uma vez que o Ministério da Cultura francês seria criado apenas uma década depois, em 1959, período em que a França começa a propor estratégias de descentralização, visando a democratização cultural em seu território. Dessa forma, experiências como as do Vieux Colombier (Velho Pombal), fundado em 1913, e de grupos, como a Cia des Comédiens de Grenoble, apresentavam-se como tentativas de renovação da arte teatral sustentadas por ideais simbolistas, e eram precursoras do desejo de que o teatro voltasse a ser uma arte popular. Do mesmo modo, quando Chancerel passa a ensinar teatro para não-atores, e em locais periféricos, influenciam Lecoq, anos depois, na opção, uma clara escolha política, de trabalhar com formas populares.

Uma outra característica a ser considerada é que nos trabalhos do Vieux Colombier, Copeau defendia a ideia de que apenas o jogo e o improviso poderiam trazer de volta à/ao atriz/ator a vivacidade e a presença necessárias para a expressão teatral. “Ao conceber sua trupe, desde o início da sua primeira temporada, como um laboratório para se investigar o novo teatro, fica claro que para o diretor a ideia de uma Escola e a ideia de teatro sempre estiveram unidas” (MACHADO, 2009, p.70).

A École du Viex Colombier foi criada por Copeau em 1920 e, a partir do ano seguinte, já possuía um rigoroso Programa de formação escolar com duração de três anos, cujas disciplinas priorizavam os exercícios físicos, voltados para o desenvolvimento do trabalho corporal e do jogo de máscaras, passando por outros conteúdos - como dicção, música e dança clássica.

Encontramos nos escritos de Copeau uma inspiração criativa que vislumbrava novos caminhos para a atuação teatral a partir das formas populares:

O pai de Fratellini era acrobata no antigo Hippodrome [Hipódromo] de Paris. Ele próprio tem quatro filhos pequenos que se agitam pelas pernas dele e que ele me apresenta. Ele e seus dois irmãos inventam em comum. Não preparam muito longamente os números deles. O hábito de trabalhar em conjunto é o segredo de sua inspiração. “Inventamos continuamente” — diz ele. “Basta um piscar de olhos entre nós. Imediatamente nos compreendemos.” Ele repete várias vezes: “Somos artistas”. E ele me fala com convicção, mas muito simplesmente, dos próprios princípios da sua arte: o movimento, o ritmo e a precisão” (COPEAU, 1979)

Assim como relata com detalhes o trabalho dos acrobatas Fratellini, Copeau expressava a sua admiração pela atuação dos palhaços, considerando ser esta uma arte superior à dos atores daquele tempo, destacando o trabalho coletivo que, em suas palavras, se organizava como uma confraria, uma corporação, com pessoas que trabalhavam juntas e não poderiam passar umas sem as outras; são homens de um ofício difícil, artesãos de uma tradição viva. Sobre o circo anota em seu diário, no dia 14 de setembro de 1916:

O circo, pela disposição e pelas proporções da sua arquitetura, realiza, em certa medida, essa área vazia do teatro sobre a qual a minha imaginação atua à vontade. Pequena proporção das personagens e sua completa liberdade de estilo, com o vazio em torno deles. (COPEAU, 1979 ).

Copeau buscava nas formas populares uma certa qualidade de expressão física que, se dominada, seria capaz de conceder a liberdade para um jogo vivo. A mesma busca pela qualidade de expressão levou Lecoq, anos mais tarde, a fundar uma escola de formação para atores e sua pesquisa tinha como foco a investigação do movimento.

O seu projeto pedagógico considera a mímica como um saber essencial para o aprendizado do ator e, nos anos iniciais, antes de se fixar como Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, as primeiras nomeações da sua escola levavam o termo "mímica" no nome90, o que demostra o uso do procedimento como linha de frente da

sua pedagogia. Posteriormente, Lecoq abandona a palavra por identificar que o termo

90 Os primeiros nomes da escola passaram por "Mímica, educação do ator", "Mímica e teatro", ou

já estava desgastado e havia se tornado vazio, nulo, sendo, inclusive, rejeitado pelo teatro francês da época.

Um exemplo da rejeição ao termo é a sua participação, no final da década de 50, no Théatre National Populaire, como convidado de Jean Villar, com a tarefa de criar as cenas de movimento. Ainda que Vilar tenha lhe concedido a liberdade para fazer o que desejasse no trabalho, havia uma exceção: a expressa proibição de uso da “mímica”. Era claro que, naquele momento, a ideia de mímica estava relacionada a uma forma cristalizada do gesto, distanciando-se do entendimento o qual Lecoq possuía pelo mesmo termo:

É por isso que algumas vezes uso o termo mimismo (tão bem esclarecido por Marcel Jousse em seu Antropologie du gest), que não se confundirá com mimetismo. O mimetismo é uma representação da forma; o mimismo é a busca da dinâmica interna do sentido. (2010, p.51)

Marcel Jousse (1886-1961), citado por Lecoq, no trecho acima, foi um antropólogo e linguista francês que, tendo considerado a ideia aristotélica de que o ser humano era o mais mimético dentre os seres, desenvolveu o que chamou de “Antropologia do Gesto”, cujo termo “mimismo” Lecoq utiliza como referência para seu trabalho. Nele, o antropólogo apresenta o corpo como totalidade humana –sem a usual distinção entre corpo e mente – e descreve a relação entre o ser humano e o mundo como algo peculiar. Para ele "As impressões do mundo, captadas como interações, são transformadas, modeladas e expressadas como gestos antropológicos” (BOURDIN, 2016, p.75).

É por esse motivo que, no trecho acima, Lecoq (2010) associa o termo “mimismo” ao que nomeia como uma busca da dinâmica interna de sentido. Pela perspectiva de Jousse, só entendemos o que está fora de nós através da expressão preenchida do sentido que isto nos provocou. O termo em francês seria "rejoue", um termo sem tradução imediata para o português, mas que carrega o sentido de re-jogar.

Numa conferência de Ritmo-Pedagogia, em dezembro de 1937, Jousse explicita o que compreende como uma expressão gestual plena do sentido que ela seja capaz de provocar. Ele parte da pergunta: “‘O que é a fumaça?" O menino que eu trouxe aqui há alguns anos atrás para fazer uma experiência me disse: ‘A fumaça

é algo que faz isso (gesto).’ E, efetivamente, falamos das nuvens de fumaça”.

(JOUSSE apud BOURDIN, 2016, pp.75-76)91.

Segundo Lecoq, a utilização da máscara põe em destaque a ação do ator, e a Commedia Dell´Arte, com seu amplo repertório, demonstra os caminhos necessários para alcançar uma refinada improvisação, tão almejada por estes artistas, se contrapondo a uma noção simplista de improvisação difundida, equivocadamente, como algo livre e sem forma. Para ele, o princípio da máscara é coreográfico e está associado ao jogo constante com o público.

Podemos encontrar nas práticas do “jeu dramatique” (jogo dramático francês), frequentemente estudado no Brasil em pesquisas da área de Teatro e Educação, possíveis semelhanças no que diz respeito à importância dada ao jogo nas práticas desenvolvidas para não-atores com as práticas de estudo das máscaras que foram se desenvolvendo ao longo do século XX por estes artistas na França.

De acordo com Pupo (Idem), o “jeu dramatique”, tem em sua origem uma modalidade de improvisação com regras, sofrendo transformações depois da segunda guerra mundial, ampliando e se diversificando no “âmago de organizações de educação popular” (p.224). O termo é proferido pela primeira vez na França, nos anos 30, por Léon Chancerel (1886-1965), diretor teatral que, ao longo de sua trajetória artística, recebeu a influência de Copeau e Charles Dullin e “preconiza a improvisação teatral como o caminho por excelência para que o aluno descubra seus próprios meios expressivos” (PUPO, 2005, p.224).

Podemos reconhecer em Copeau o ponto de convergência, do qual se originam as ideias que serão trabalhadas posteriormente no “jeu dramatique” e, principalmente, na ênfase do trabalho com as linguagens populares. Além disso, um traço evidente nas propostas de Copeau é o prazer da diversão, não apenas entre atriz/ator e público, mas entre todos que integravam o processo criativo e o espetáculo, “dando grande importância à coletividade e à irmandade no trabalho teatral” (MACHADO, 2009, p. 69). Sobre isso, discorre Pupo (2005):

É em meio a esse panorama que a prática do jeu dramatique deve ser analisada. Ela privilegia a relação entre o trabalho em grupo e a expressão pessoal dos participantes, mediante uma atuação

91 "¿Qué es el humo? El niño que traje aquí hace pocos años para hacer una experiencia me dijo: “El

humo es algo que hace esto (gesto)”. Y efectivamente, hablamos de las volutas de humo. Tradução nossa.

improvisada que se contrapõe à simples reprodução de formas teatrais consagradas. (p.10)

Tais semelhanças, entre as idéias de Copeau e o jeu dramatique, são consequências dos anos de trabalho de Chancerel ao lado de Copeau, no Vieux Colombier. Chancerel manteve um contato muito estreito e, durante alguns anos, com o mestre, presenciando a abertura de sua escola e “sendo uma testemunha imediata de uma pesquisa sobre a formação metódica do ator” (FALEIRO, 2008, p.2).

Jean-Pierre Ryngaert, em seu livro “Jogar Representar” (2009), uma obra que se tornou referência para o estudo da prática do “jeu dramatique”, no Brasil, expressa o desejo de “centrar a reflexão em torno da dimensão de jogo” (op. cit., p.29) e diz que neste trabalho sua preocupação estaria voltada à “relação do indivíduo com o jogo e com o mundo” (Idem). Durante toda a obra, refere-se aos integrantes de uma oficina teatral como jogadores e não apenas participantes ou alunos. Essa noção de que quem está em cena é um jogador faz bastante sentido com a forma como os autores que estudaram o palhaço se relacionam com a atuação na linguagem, como já foi explicitado no início deste capítulo.

A capacidade de jogo de um indivíduo se define por sua aptidão de levar em conta o movimento em curso, de assumir totalmente sua presença real a cada instante da representação, sem memória aparente daquilo que se passou antes e sem antecipação visível do que irá ocorrer no instante seguinte. Essa capacidade se apoia na disponibilidade e no potencial de reação a qualquer modificação, ainda que ligeira, da situação. Ela não abrange a totalidade da arte do ator, mas é seu componente fundamental, interessante de ser desenvolvido no não-ator. (RYNGAERT, 2009, pp.54-55)

É essa inteligência viva e presente corporificada na fisicalidade das reações sagazes constantes que chamamos de jogo, estava presente no centro do estudo da linguagem das máscaras em Copeau, e, posteriormente, em Lecoq, apresentando-se também como eixo da aprendizagem na formação do palhaço em práticas observadas desde os anos 80 em São Paulo.