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O ator se diverte sugerindo sentimentos, e o público se diverte recebendo-os. Nada é de verdade, tudo é de mentira, a não ser a nossa imaginação... tão frágil...ela nasce com o jogo e morre com a realidade.

(GAULIER, 2016, p.41)

A Escola Philippe Gaulier, dedicada à formação de atores, na França, é coordenada por um discípulo de Jacques Lecoq. O primeiro módulo do curso, no qual os participantes iniciam sua jornada, se chama “O jogo”. Apesar de comumente serem vistas como escolas voltadas apenas à linguagem do palhaço, por receberem artistas do mundo todo interessados em investigar tal linguagem, as escolas de Lecoq e Gaulier não se definem por essa especificidade e pretendem ser, ao contrário, escolas de formação teatral, nas quais o palhaço é um dos territórios investigados.

Na escola dos Doutores da Alegria, o Programa de Formação de Palhaço para Jovens considera o jogo um elemento base para o aprendizado do palhaço, constituindo-se como uma disciplina prática, que tem início no primeiro semestre da formação. O trabalho tem como ponto de partida a observação do cotidiano e, além dos jogos reformulados a partir de brincadeiras infantis, encontramos nos registros das aulas o relato de improvisações cênicas criadas a partir de roteiros variados.

Para o Programa os jogos estimulam o jogador a encontrar saídas criativas para qualquer situação, reagindo aos mais variados estímulos. Os formadores direcionam para um aprendizado, no qual o jogador deve abandonar os julgamentos, passando a perceber sua relação interna com a crítica de si mesmo, que pode ser negativamente exagerada – ao acreditar não ter tido êxito num jogo - ou que pode ser apenas a exaltação do próprio ego – ao acreditar ter realizado uma boa escolha. Qualquer tipo de julgamento, em jogo, tem como consequência o direcionamento do

foco da improvisação para outras preocupações, fazendo, com isso, que os jogadores já não estejam presencialmente entregues naquele momento.

Nas aulas de Ferrara era evidente a preocupação em encontrar o equilíbrio entre as percepções interna e externa dos jogadores. Do mesmo modo, essa ‘medida’ sempre esteve presente nas aulas de Cristiane Paoli Quito, com quem Ferrara estudou a linguagem do Palhaço. Burghi (2017), que analisou a prática pedagógica presente no trabalho de formação de palhaços realizado por Quito, afirma que:

Quito costuma instruir os aprendizes de que, matematicamente falando – se é que isso é possível quando se trata de corpo e arte –, devem tentar estar 50% fora e 50% dentro de si. O que isso significa? Significa que, ao mesmo tempo em que precisa estar consciente de seu próprio corpo e analisando sua postura e seus movimentos, o artista deve estar atento ao seu entorno, externo, disponível às relações e aos acasos, aberto, com o olhar brilhando para fora. (p.59)

Essa consciência provoca a diminuição do tempo de resposta entre ação e reação, e é um dos objetivos quando se está em busca do aprimoramento do jogo. Porém, sua efemeridade, torna o aprendizado difícil de ser repassado, a não ser pela própria experiência de vivenciar tal estado, pois, muitas vezes, em poucos segundos a ação justa escapa ao ator, no mesmo instante em que parece atingi-lo. Neste processo, se colocar na posição de observador das escolhas de outros atores, é também uma escola e, em muitos momentos das aulas, os jogadores apenas observavam outros jogadores em cena, em uma dinâmica que variava exercícios individuais, em duplas ou em grupos.

Como podemos observar no relato de um dos alunos da sexta turma o jogo foi como algo que mudou sua visão de mundo, que o fez perceber como está implicado, ao se deixar afetar pelas coisas que acontecem ao redor. Thaís Ferrara afirma que se estamos em jogo e não percebemos algo que está no jogo, a plateia acha algo estranho, porque é capaz de enxergar, o que a atriz ou o ator não viram. Para ela há detalhes que o ator não pode ignorar.

Nos registros consultados podemos observar que os alunos passam a perceber o jogo como algo que parte do silêncio, compreendendo a auto percepção como elemento essencial de sua prática:

Para Jéssica, o que mais ficou como memória corporal foi o silêncio, que algo acontece a partir do silêncio e da calma, de olhar e esperar,

deixar nascer o jogo. Para Diyo foi a questão de se divertir com o jogo e não apenas querer chegar no objetivo, ganhar o jogo. Marcos fala que a abordagem do jogo mudou seu olhar sobre as coisas. Nayara F. diz que fica a ideia de se divertir durante o jogo e relata quando ela fez a brincadeira do esconde-esconde com as crianças no trabalho. Lucas fala que é nítida a consciência com relação à calma depois das aulas de jogo. Celso disse que para ele o efeito do jogo transformou seu dia- a-dia, quando ao invés de ficar frustrado com algum fracasso, ele começa a se alimentar dele. (registro verbal)96

As considerações citadas pelos alunos tratam de percepções que ocorrem, internamente, no momento das tomadas de decisões dentro do jogo. A esse respeito, o campo da improvisação em dança pode nos fornecer algumas pistas sobre tais decisões, que não são aleatórias, exigindo um treinamento complexo para que se consiga fazer escolhas íntegras e atentas:

No ato de improvisar o que você está fazendo é uma escolha atrás da outra. Cada vez que se faz uma escolha, você não a esquece. Há consequências que conduzem você à próxima escolha. E você também vai criando limitações com essas escolhas, para fazer uma proposta de performance. Você não está fazendo tudo o que sabe, está coreografando, escolhendo uma gama de relações para explorar. (NELSON e PAXTON, 2001, p.28)

Podemos encontrar outros exemplos de estudos da prática de jogo na dança, como o trabalho de investigação em improvisação de João Fiadeiro chamado “Composição em tempo real”. Para ele o jogador deve desenvolver uma qualidade de escuta e estado de atenção que possibilite a revelação no lugar da criação. Dessa forma “a escuta não implica em uma atitude responsiva por meio de impulsos imediatos, mas a ativação de um estado de prontidão que requer observação e investigação dos processos de geração de hipóteses e tomada de decisão” (MEYER, MUNDIM e WEBER, 2012, p.7).

De acordo com Fiadeiro (apud MEYER; MUNDIM; WEBER, 2012) decisões não são tomadas por aquilo que o sujeito deseja expressar no mundo, mas em função da percepção de uma necessidade cênica coletiva, uma ética do compartilhamento, em que um estado de pausa torna-se a chave para a percepção do que pode vir como consequência, entendendo o jogo para além do que uma habilidade dos bailarinos, como:

96 Trecho extraído de registro escrito pela autora em fevereiro de 2015, pertencente ao arquivo da

Um posicionamento frente ao mundo que é, antes de tudo, ético, possibilitando uma experiência diferenciada para o artista. O que surge das relações geradas no aqui e agora a partir de uma percepção compartilhada ganha maior relevância do que as ingerências do sujeito, com o seu querer expressar ou agir por mero impulso. Os acontecimentos não surgem por diletantismo ou por ânsia por expressão, mas pelo que, no ambiente, faz-se presente. A chave para esta conduta é a pausa, ou seja, a inibição de uma ação imediata, abrindo espaço para uma atitude atenta ao entorno. Uma construção coletiva que emerge da relação, passo a passo, momento a momento, a partir “do que se tem a cada vez e com o que fica, com as marcas e os rastros do viver juntos”. Uma ética do compartilhamento se torna necessária: “Daí a importância crucial de se alargar a compreensão do que seja uma composição: muito claramente, um “pôr-se com” o outro, a posição de cada agente dada pela relação com os demais, a posição consequente, a “com-posição. (p.7).

Aqui encontramos um ponto central que o estudo do jogo desenvolve no aluno, o silêncio observado pela Jéssica assemelha-se à pausa mencionada no trabalho de João Fiadeiro, configurando-se como um instante de suspensão, antes da tomada de decisão sobre a próxima ação a ser realizada.

Lopes, em sua tese “Ainda é tempo de bufões” parece falar de um momento parecido com esse, o qual antecede à ação e o nomeia como ‘estado de jogo’. Segundo ela, este momento, extremamente relevante, foi profundamente estudado por profissionais que passaram sua vida buscando compreender o estado que antecede a teatralidade e relaciona-o aos trabalhos de Meierhold, Grotowski e Barba:

Talvez o que Meierhold tenha chamado de “pré-teatralidade”, Grotowski de “impulsos” e Barba de “satz” se relacionem com a compreensão do estado de jogo na medida em que trata de um momento quase implacável, parte do imaginário pessoal do ator, que antecede a ação física. (LOPES, 2001, p.86)

Uma última consideração a respeito dessa relação tem a ver com a ética do compartilhamento, citada por Fiadeiro (op. cit.), e o entendimento de que estar em jogo pressupõe a dimensão de uma lógica compartilhada entre todos, do prazer em dividir uma criação coletiva que é tecida e se presentifica na efemeridade da sua composição. Não à toa os estudiosos por um movimento de renovação cênica, no início do século XX, como Copeau, Meierhold e Dastè, que viam o jogo como foco central de suas investigações para o trabalho do ator, primavam por métodos que privilegiassem a coletividade. Sem dúvida, o trabalho com o jogo esbarra no exercício ético da alteridade.