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Vimos como o jogo esteve presente nas experimentações de artistas europeus no início do século passado que, em busca de renovação da linguagem cênica,

tornaram-no a investigação fundamental de suas práticas. Muito já se falou também, como essa influência chega até nós - seja através de artistas europeus que trabalharam diretamente com artistas brasileiros, seja através de profissionais brasileiros que estudaram em escolas europeias e disseminaram esse conhecimento nos estudos e nas práticas de formação da linguagem do palhaço e de outras máscaras.

Contudo, a investigação de manifestações populares brasileiras como disciplina em um curso de formação para palhaças e palhaços, no PFPJ, abre uma perspectiva para o estudo do jogo a partir das possíveis relações dessas tradições com a linguagem do palhaço.

Em sua entrevista Heraldo se diz cansado de uma visão eurocêntrica presente na maioria dos discursos voltados à formação da linguagem:

A minha formação é eurocentrada. Mas dá tempo de enxergar que chega, né? Vamos quebrar essa base porque a gente tem muita coisa. Ela não tá sendo transposta para o que a gente tá vivendo. Cadê os indígenas da nossa cultura? Cadê os negros? Cadê a cultura periférica no que a gente tá trabalhando? Aí a cultura brasileira que eu digo está nesse lugar, e ela é negada o tempo inteiro. Isso é um pensamento que não é de agora, mas nos últimos tempos ele ficou muito forte. (Informação verbal)92

Brincar é o termo usado em folguedos e manifestações populares brasileiras, como o cavalo marinho, o bumba meu boi, o Pastoril Profano, o jongo e a Folia de Reis, nos quais os artistas populares responsáveis por tocar, dançar e cantar em tais festas “não se intitulam bailarinos, atores, cantores e sim brincantes” (LULU E FRANCO, 2009. p. 5)

Outra definição de brincante pode ser encontrada num artigo da pesquisadora Juliana Bittencourt Manhães, que investiga a teatralidade nas manifestações culturais populares brasileiras. Segundo ela:

Os brincantes são aqueles que brincam, se divertem, são aqueles que têm o compromisso de “segurar e sustentar” a brincadeira ano a ano, são os integrantes dessa irmandade coletiva, são indivíduos que participam criativamente da sua atuação, fazendo da encenação uma brincadeira popular, em que a comunicação com o público é fundamental para firmar uma rede de comunicação; ou simplesmente, essa platéia se mistura a essa manifestação, se unificando corporalmente àquela situação, àquela performance.

(MANHÃES, 2010, p.1)

A utilização da palavra “brincar” para o que acontece em tais manifestações é extremamente importante para compreendermos a função do jogo como elemento fundamental destas festas populares. Para a pedagoga Maria Amélia Pereira, que foi professora do curso de formação de Educadores Brincantes no Teatro Escola Brincante, “brincar é usar o fio inteiro de cada ser. Quando você está usando seu fio inteiro de vida, você está brincando! E é profundamente sério isso”. (TARJA BRANCA: A Revolução que faltava, 2014)

Na tradição das festas de Boi 93, por exemplo, que acontecem desde

1840 94, no nordeste brasileiro, há sempre um capitão, que comanda a brincadeira

entre as figuras de destaque, como a Catirina, O Mateus e o Bastião. Essas figuras também podem ser conhecidas por outros nomes, dependendo da região como Pai Francisco ou Chico. Outras figuras, como o Vaqueiro, o Dono da Fazenda e o próprio Boi, aparecem para improvisar entre si e com o público.

O jogo parte da situação presente em uma lenda regional, onde Catirina, grávida, pede ao Mateus que lhe arrume uma língua de boi para comer. Ao matar o boi, Mateus é preso e o Dono da Fazenda é avisado pelo Vaqueiro da morte do animal, ficando profundamente bravo. O boi é, então, ressuscitado com a ajuda de um pajé e seus rituais indígenas e sua vida é celebrada por todos.

Lulu e Franco citam, entre outros folguedos, o Cavalo- Marinho, que é uma das formas populares derivadas do Bumba meu Boi, encontrada, principalmente, na Zona da Mata Pernambucana:

o Auto é principalmente uma forma direta e indireta sobre a vida e história do povo, e mostra claramente as relações de patrão e empregado. E é no momento da brincadeira que eles se vêem potencialmente criativos e livres para se manifestarem sem os julgamentos baseados nos padrões da “vida real”. A brincadeira se dá em torno do banco, onde os tocadores com rabecas, pandeiro, minero (tipo de chocalho) ou ganzá e a bage (um tipo de reco-reco), esbanjam diálogos e cantos e interagem com as figuras como uma espécie de teatro. (op. cit., p.50)

93 O Bumba-meu-Boi é uma festa tradicional brasileira, atualmente reconhecida como patrimônio

cultural imaterial brasileiro, pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), desde 2012. Pode ser conhecido no Maranhão como Boi de Matraca, Boi de Zabumba ou Boi de Orquestra, diferenciando-se uns dentre eles pelas diferentes formas, toadas, expressões e ritmos de música praticados em cada região. Uma das formas derivadas das festas de boi, encontradas em Pernambuco, é conhecido por Cavalo-Marinho.

94 O primeiro registro da festa apareceu em 1840, num pequeno jornal de Recife chamado “O

Também chamado por “Brinquedo” pelos próprios participantes, essa manifestação possui em sua formação mais de 76 figuras, divididas “entre humanos, fantásticos e animais, representadas, em média, em 63 atos” (idem, p. 49). O espetáculo é coordenado pelo capitão, que contrata duas figuras chamadas Mateus e Bastião, dois negros amigos, para cuidar da festa.

Os brincantes desafiam o público com brincadeiras, falas e rimas improvisadas, com a função de contar essa história. No folguedo, há regras que devem ser seguidas e repetidas para que a tradição aconteça, no entanto, cada brincante carrega sua individualidade e sua forma de realizar cada figura. Joana Oliveira, que defende o aprendizado desta manifestação brasileira para a formação da atriz/ator, afirma que através do amplo domínio dos movimentos e códigos aprendidos e repetidos por um desempenho racional, surge, paradoxalmente, a liberdade da criação, possibilitando a originalidade e a composição cênicas.

Uma vez que a regra foi dominada com a experiência de exercitá-la em jogo, o jogador está livre para jogar. A partir do momento que o brincante conhece os códigos da brincadeira, pode de fato brincar. Quando o artista ganha maestria nas regras de seu fazer, pode criar. Pensando assim, a tradição é indicadora de caminhos novos. Repetir ou imitar, desse ponto de vista, não é uma limitação, mas uma liberação. (OLIVEIRA, 2006, p. 53)

A semelhança das características destes brincantes com a figura do palhaço foi o tema da pesquisa de dissertação de Ivanildo Lubarino Picoli dos Santos. Em seu trabalho o autor nos apresenta as manifestações aqui citadas e analisa as figuras cômicas características de tais folguedos:

Estas personagens, por suas características, estão ligadas às raízes das festas profanas e públicas principalmente as carnavalescas. Utilizam-se de canções, brincadeiras, jocosidade, paródia, vocabulário grosseiro, atos obscenos, caracterizações exageradas, ou seja, são representantes daqueles que dificilmente se enquadrariam como o “certinho” ou o “bom exemplo”.

(SANTOS I. L., 2008, p.149)

Heraldo demonstra um grande interesse pelo estado de jogo instaurado nessas manifestações e que, para ele, permanece vivo ao longo de toda a duração da festa:

E aí você tem o palhaço lá também. Aí você tem os brincantes, e aí o meu olhar nesse sentido é de, por exemplo, ir numa festa de cavalo- marinho e ver um cara com sessenta, setenta anos de idade e começar a brincar às seis horas da tarde e ficar até às seis horas da manhã brincando e você pensa como assim? Vivo! Jogando! Brincando! Com uma alegria, uma felicidade, e eu penso: isso interessa. E muito. (Informação verbal)95

Outra relação possível entre a figura do palhaço e do brincante pode ser vista na relação entre os personagens Mateus e Bastião, que se assemelham às relações presentes entre diversas duplas cômicas, nas quais um destes personagens costuma se apresentar como “mais esperto” que o outro, estabelecendo um jogo constante entre eles, com o Capitão, a Catirina e outras figuras. A relação destas figuras com o público é constante e realizada de forma direta durante todas as suas aparições.

Podemos observar o jongo, o coco ou o frevo, danças brasileiras bastante conhecidas e praticadas na região Nordeste, como alguns outros exemplos nos quais existem estruturas formais prévias, aprendidas através da execução de passos característicos. No PFPJ, passar pelo aprendizado dos passos nestas danças é o objetivo de uma primeira aproximação, no entanto, a sequência e importância do momento seguinte, encontra-se justamente no aprendizado do jogo nascido entres os parceiros que dançam juntos e destes, com os outros participantes e músicos.

A improvisação de versos e rimas nessas manifestações é outra característica que desperta o interesse pelo seu estudo na formação do palhaço.A entoação dos versos, com a agilidade necessária à essa execução, pressupõe o conhecimento e domínio dos ritmos e musicalidades presentes nestas danças e sinaliza, também, a brincadeira gerada pelas observações e experiências de participar de tais manifestações, nas quais as repetições de procedimentos e jogos de palavras, vão sendo aprendidos, tornando-se parte do repertório para um novo jogo.

Ao aproximar estas vivências como aprendizado para a formação do palhaço, no PFPJ, a proposta feita aos alunos trata, justamente, de entrar em contato com o jogo vivo e presente, característico de tais manifestações tradicionais. Assim como as tradições teatrais populares europeias tornaram-se referência para estudo do jogo nas experimentações de artistas europeus do início do século XX, como Copeau e Meierhold, os brincantes brasileiros, responsáveis pela condução destas celebrações

populares, podem servir como grandes referências no estudo do jogo aos alunos que investigam esta linguagem cômica.