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2. A SOCIEDADE CIVIL: USOS E ABUSOS DE UMA CATEGORIA CONCEITUAL

2.4. A INOVAÇÃO GRAMSCIANA NO PENSAMENTO MARXISTA

Gramsci é um pensador marxista por excelência. Para Carnoy (1994, p. 89) Gramsci desenvolveu uma “ciência marxista da ação política”, uma vez que Marx não teria desenvolvido uma teoria de política tão abrangente e compreensível quanto sua análise da economia política. Gramsci viveu em uma época em que a teoria marxista já tinha atingido alto nível de desenvolvimento e o bloco comunista estava em formação. O partido socialista já existia na Itália, muito embora pouco representasse as idéias de Marx9. A revolução comunista russa acontecia de forma quase que concomitante com a expansão do nazi-facismo. Todos estes elementos explicam o fato da teoria desenvolvida por Gramsci ter um caráter mais estratégica e voltada para a ação, ou seja, repleta de reflexões acerca de como atingir o socialismo considerando o contexto vivido por ele, o que Carnoy (1994, p. 90) chamou de: “uma estratégia para a derrubada do Estado burguês e a construção do socialismo”.

É possível ainda estabelecer outras distinções entre as teorias de Marx e Gramsci. Cerroni (1977), por exemplo, estabelece diferenças entre os métodos de pesquisa dos dois autores e de Weber. Enquanto Marx teria desenvolvido as bases para a configuração científica das categorias histórico-sociais – o socialismo científico, e Weber uma visão idealista da política baseada nos tipos ideais, Gramsci teria sido um reagente crítico de ambos os autores, desenvolvendo uma teoria da cultura, baseada na teoria da hegemonia, na relação entre cultura e política, e na teoria da universalização humana.

Badaloni (1977) ao falar sobre a teoria gramsciana da ideologia estabelece a hipótese de que Gramsci teria modificado o estatuto teórico de algumas categorias desenvolvidas por Marx, quando passa a considerar a capacidade articulatória da sociedade civil. Para o autor, este fato lhe confere um status de atualizador da teoria marxista, pois

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O partido comunista seria fundado na Itália, em 1921, por Gramsci e outros políticos, como uma ruptura do Partido Socialista Italiano.

Gramsci viveu em um contexto social que diferia do contexto descrito por Marx, ou seja, Gramsci teria desenvolvido sua teoria da sociedade civil a partir de outro ponto de vista.

É possível afirmar que a diferença citada no parágrafo anterior é a que mais se repete na comparação entre Marx e Gramsci. Autores como Coutinho (1981), Portelli (1970), Bobbio (1982), Carnoy (1994) analisam como a concepção de Estado e Sociedade Civil é distinta em Marx e Gramsci. Vale ressaltar, no entanto que os autores citados não partilham da mesma interpretação destes conceitos, com destaque para o grande debate teórico entre Bobbio e Coutinho, em que Coutinho (1981) afirma que Bobbio chega a uma falsa conclusão ao supor que a alteração no conceito de sociedade civil feita por Gramsci o leve a retirar da infra-estrutura a centralidade da transformação social. Isto quer dizer que, para Bobbio, Gramsci acredita na transformação social apenas no plano ideológico, relegando o plano econômico. No que Coutinho (1981) discorda, pois faria de Gramsci um idealista na teoria social, pois ele estaria situando o elemento determinante do processo histórico na superestrutura política e não na base econômica. Montano (2003), no entanto, esclarece este debate teórico ao afirmar que a sociedade civil, pertence ao momento superestrutural ao lado da sociedade política, e que o político não tem primazia sobre o econômico.

Passando para o tema da transformação social, também intimamente ligado com a capacidade de organização e direção através dos aparelhos privados de hegemonia, Carvalho (1986) ressalta que, na Ciência Social e no pensamento marxista, existem diferentes concepções do processo de transformação do social, que são determinadas pela forma com que se compreende a totalidade social. Marx com sua teoria mudou radicalmente a perspectiva de análise da totalidade social ao concebê-la enquanto uma totalidade orgânica, ou seja, o conjunto da infra-estrutura e da superestrutura determinada pela base econômica. Para ele o processo da vida social, política e espiritual seria determinado pelo modo de produção da vida material. No entanto, no desenvolvimento do pensamento marxista, verificou-se uma dificuldade de apreensão da dialética entre o econômico e o político, ou seja, uma dificuldade

de perceber e trabalhar teoricamente a relação entre infra-estrutura e superestrutura, o que levou ao desenvolvimento de um tratamento destas duas esferas (econômica e político- ideológico) de forma autônoma, isolada e absoluta. Com isso, a determinação da totalidade social tende a incorrer em dois riscos fundamentais: o economicismo e o voluntarismo. O economicismo reduz o processo de transformação social a um processo que se dá no campo econômico, diluindo, e até mesmo negando nas suas formas mais extremadas, a eficácia própria do político-ideológico na práxis transformadora. Já o voluntarismo tende a conceber a transformação social como um processo que se dá no domínio político ideológico, independentemente das condições objetivas no nível da base econômica (CARVALHO, 1986).

Gramsci, por sua vez, tornou-se um marco na análise das transformações do modo de produção capitalista, por, mesmo sendo um marxista, ter uma concepção abrangente da transformação social como um processo que se efetiva na relação dialética do econômico com o político-ideológico. Em sua concepção, a transformação social é um processo global que se faz simultaneamente no terreno econômico e ideológico através da luta política, sendo na atividade política, enquanto atividade que faz o nexo orgânico entre o econômico e o ideológico, que se desenvolve a ação transformadora das relações sociais (CARVALHO, 1986).

A transformação social através da revolução é tida como um processo que se dá na dialética destruição/construção, ou seja, destruição da sociedade burguesa e construção de uma nova sociedade, através de uma profunda mudança na estrutura econômica e política, e na maneira de pensar dos homens. Isso amplia o domínio da política, que passa a englobar mais que o domínio econômico, mas também os domínios cultural e ideológico. Para Gramsci a infra-estrutura e as superestruturas formam um bloco histórico e numa relação orgânica, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, não se podendo desvincular histórica e teoricamente o conteúdo da forma. Este conceito de bloco histórico faz uma crítica

ao idealismo e ao determinismo econômico, pois em toda sua ação, Gramsci procura entender como se expressa a ação do ideológico e do político dentro do modo de produção e qual a sua eficácia na manutenção ou conservação das relações sociais. O ponto de partida da teoria gramsciana é o questionamento que o próprio autor se faz a respeito da grande resistência da estrutura nos processos de crise, o que o leva a um exame específico da superestrutura, configurando a sua tese da eficácia e da relativa autonomia do político-ideológico. A partir daí há o desenvolvimento dos principais conceitos, que estão relacionados à superestrutura do bloco histórico: ideologia e Estado, sociedade civil e sociedade política, enquanto conjunto complexo e orgânico (CARVALHO, 1986).

Os principais conceitos desenvolvidos por Gramsci baseiam-se no aprofundamento do entendimento sobre o “complexo” estrutura/superestrutura. São eles: hegemonia, sociedade civil, Estado, partido e intelectuais (HALL et alli, 1983). A compreensão gramsciana das noções de estrutura e superestrutura difere das de Marx, uma vez que Gramsci procura se afastar dos fundamentos economicistas e idealistas, o que o leva a uma sistematização da práxis da transformação social em sua obra. Para Gramsci há uma relação dialética ente estrutura e superestrutura, ou seja, entre o político e o ideológico. Contudo, ele incide a sua reflexão na superestrutura, que é formada pela ideologia e Estado, sociedade civil e sociedade política. O objetivo da centralidade na reflexão sobre a superestrutura é entender como se expressa a ação do ideológico e do político dentro do modo de produção (econômico) e qual a sua eficácia na manutenção ou conservação das relações sociais para, a partir desse entendimento, redefinir as estratégias no processo de luta pela transformação do social (CARVALHO, 1986).