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2. A SOCIEDADE CIVIL: USOS E ABUSOS DE UMA CATEGORIA CONCEITUAL

2.6. O PAPEL TRANSFORMADOR DA SOCIEDADE CIVIL

A partir da década de 70, principalmente após uma ruptura com o estruturalismo marxista e com o impacto da escola de Frankfurt com a análise dos meios de comunicação de massa e as teorias reproducionistas da educação, o casamento entre os conceitos de ideologia e Estado, passou a explicar de maneira mais satisfatória o que ocorria na dinâmica da sociedade (ALVAREZ et all, 2000). A discussão em torno das idéias de Gramsci trouxe à tona o debate em torno da crítica ao reducionismo econômico.

Essa crítica afirma uma imbricação profunda entre cultura, política e economia e estabelece uma equivalência entre forças materiais e elementos culturais dentro de uma visão integrada da sociedade como um todo (ALVAREZ et all, 2000, p. 66).

No entanto, a compreensão dos conceitos elaborados por Gramsci não é homogênea, havendo algumas correntes de interpretações com algumas diferenças entre si. Segundo Nogueira (2003), há uma tradição associada a Gramsci - a tradição marxista - que interpreta a sociedade civil como uma “parte orgânica” do Estado, dotado de especificidade, mas somente compreensível se integrado a uma totalidade histórico-social. As correntes mais recentes, desvinculadas da tradição marxista, retratam a sociedade civil como uma esfera separada do Estado e da economia, caracterizada pelo potencial criativo e contestador, desempenhando um papel de operacionalização de iniciativas e movimentos não comprometidos com as instituições políticas e as organizações de classe. Nesta corrente a sociedade civil, diferente de sua conceituação marxista em que era tida como palco de lutas políticas e empenhos hegemônicos, passa a ter sua imagem vista como um “recurso gerencial – um arranjo societal destinado a viabilizar tipos específicos de políticas públicas” (p. 187), ou ainda um “fator de reconstrução ética e dialógica da vida social” (p. 187). Nesta linha de pensamento há um abandono do sentido marxista do conceito, passando para a perspectiva liberal-democrática como referência principal para análise de Gramsci.

Para Coutinho (1981) Bobbio é um dos autores que divulgam esta interpretação equivocada do conceito de sociedade civil elaborado por Gramsci, dando margem a interpretações liberais, objetivando justificar o papel que se espera que a sociedade civil assuma nos governos de projeto neo-liberal. Montano (2003), que, em sua obra, faz uma crítica ao uso do termo “Terceiro Setor”, por sua vez, elabora um resumo - contrastando Bobbio e Coutinho - das principais idéias referentes ao assunto. Para ele, as principais distorções a que a interpretação equivocada do conceito de Gramsci pode levar são: o fato de estabelecer uma distinção entre as esferas da sociedade civil, sociedade política e base econômica, fundamento para a segmentação da sociedade em três esferas autônomas entre si,

ou seja, a setorialização tripartite da sociedade – primeiro, segundo e terceiro setor; a outra interpretação equivocada, também atribuída a Bobbio parte do fato da consideração do momento político como determinante da transformação social, relegando à esfera econômica um papel secundário, o que acaba por deixar de lado a noção da totalidade social presente em Gramsci. Nesta interpretação, que vai de encontro com o pensamento de Nogueira (2003), a sociedade civil é desprovida dos interesses e conflitos das classes sociais.

Assim sendo, o uso da noção de “sociedade civil” como um “terceiro setor” (autonomizado dos outros dois “setores” e desgarrado da totalidade social) deriva antes do conceito do positivismo, do liberalismo vulgar, do funcionalismo, do

estruturalismo, do sistemismo, e das correntes que segmentam a realidade social em

esferas/setores autônomos (MONTANO, 2003, p. 128).

Em meio a este debate conceitual, este trabalho apresenta sua análise sobre o conceito de sociedade civil e do papel transformador que ela pode ter. Para Nogueira (2003) é possível pensar no desenvolvimento da sociedade civil a partir de quatro prismas de influência. O primeiro corresponde a complexificação, diferenciação e fragmentação das sociedades contemporâneas, que ficaram mais diversificadas e individualizadas com o desenvolvimento capitalista das últimas décadas. Nesta sociedade, a classe operária – “grande sujeito histórico da modernidade capitalista” (p. 187) e “vetor de unificação social” (p. 187) – tem sua importância diminuída, dando espaço a novos sujeitos que nem sempre buscam a unificação em suas ações. O segundo prisma para análise da sociedade relaciona-se com a integração econômica que o mundo passa em que redes de comunicação e informação relativizam o poder dos Estados nacionais. Neste ponto de vista a sociedade ganha mais transparência e autonomia em sua relação com o político, pela possibilidade das sociedades estarem mais em contato umas com as outras, o que não diminui as desigualdades sociais, nem a ameaça da perda de autonomia e originalidade das culturais nacionais. O terceiro ponto de vista tem como influência a recomposição do conceito de sociedade civil impulsionada pela crise da democracia representativa e pelas transformações socioculturais associadas à globalização, com destaque para o protagonismo adquirido pelos meios de

comunicação, que alterou a esfera do político, tornando-a mais midiática e menos controlada pelos tradicionais operadores políticos. O que leva a uma transformação nas estratégias para produção do consenso, de formação de culturas e construção de hegemonias.

Com a força adquirida pelo projeto neoliberal e o aprisionamento dos Estados nacionais (e de seus governos) na jaula da globalização, o modo predominante de produção de consenso acabou por travar a formação e o desenvolvimento de formas mais politizadas de consciência, em benefício de formas econômico-corporativas e da expansão de atitudes mentais consumistas, individualistas, medíocres, indiferentes à vida comum (NOGUEIRA, 2003, p. 188).

Ainda sobre este prisma, é possível afirmar que este movimento trouxe impactos negativos quanto ao funcionamento e a identidade dos partidos políticos de esquerda, uma vez que já não era possível reproduzir os sujeitos sociais “clássicos” e as grandes utopias políticas perdiam espaço. O que levou à reprodução “de organizações e movimentos autônomos em relação à esfera imediatamente política e a causas de natureza ‘classista’” (NOGUEIRA, p. 188). Pode-se dizer que a disseminação desses movimentos e organizações congestionaram a sociedade civil, passando a ser confundidos com ela.

De espaço dedicado à articulação política dos interesses de classe – de terreno para a afirmação de projetos de hegemonia –, a sociedade civil se reduziu a um acampamento de movimentos. Ganhou-se em termos de organização dos interesses e mesmo de ativação democrática, mas perdeu-se em termos de unidade política (NOGUEIRA, 2003, p. 188).

No quarto prisma de análise há a redescoberta da sociedade civil, através da expansão da cultura democrática e da cultura participativa, com o conseqüente impulso do ativismo comunitário e dos chamados movimentos sociais. Este prisma de análise expandiu-se com fim dos regimes ditatoriais na América do Sul e do fim sistema socialista do Leste europeu, ambos marcados por uma crise do Estado e dos padrões societais vigentes. Portanto, acredita-se em uma sociedade civil engajada em movimentos que buscam a tradução de suas agendas em políticas públicas, na expansão das fronteiras da política institucional e na luta pela redefinição do sentido convencional de cidadania, representação política e participação.

3. TEORIAS E PRÁTICAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: EMPREENDIMENTOS