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2. A SOCIEDADE CIVIL: USOS E ABUSOS DE UMA CATEGORIA CONCEITUAL

2.3. IDEOLOGIA NOS MOVIMENTOS DA SOCIEDADE CIVIL

Antes de entrar propriamente no tema da ideologia nos movimentos da sociedade civil, cabe uma breve contextualização nas transformações econômicas ocorridas no cenário internacional e nacional. Primeiramente, cabe destacar as mudanças nas formas de gerir o sistema socioeconômico trazidas com a globalização. Para Gohn (2002), há uma mistura de sistemas anteriores com coisas novas, como é o caso da primazia do mercado sobre o Estado, um princípio liberal, mas com a diferença de se tratar de um mercado oligopolizado que segue

regras que estimulam ou retraem a economia formal ou informal, a depender dos interesses da lucratividade. Outra mudança advinda da globalização é a primazia do mercado especulativo financeiro sobre o processo produtivo (economia real), com a migração de capitais para os setores de maior lucratividade sem compromisso com os processos de desenvolvimento da nação.

A globalização não envolve apenas a competição por oportunidades de mercado e por taxas elevadas e constantes de crescimento econômico; tampouco pode ser definida, simplesmente, como o aumento exponencial dos investimentos propiciados pela crescente liberalização do comércio internacional e pela desregulamentação financeira mundial. A globalização tem evoluído também na direção de uma luta social e política por novos valores culturais e preferências individuais (MILANI e LANIADO, 2006). O sistema econômico global contemporâneo otimiza exacerbadamente os valores e critérios relativos ao desempenho, à competitividade, à eficiência e à produtividade. O bom desempenho econômico define, atualmente, o novo locus de pertencimento dos sujeitos globais, que trabalham cada vez mais com base em responsabilidades imediatas implementadas preferentemente a custos sempre decrescentes. A hipervalorização do desempenho econômico nas atividades humanas em geral, encontrada em discursos de muitos atores econômicos globais, tem implicações diretas para a vida democrática. Isto porque, conforme este entendimento, as negociações políticas também devem seguir o mesmo padrão de eficiência e, conseqüentemente, remetem à mesma programação do mercado; supõem que não deve haver espaço para dúvidas ou ambigüidades e tampouco para deliberações de longa duração na sociedade de risco global, que dá prioridade ao curto prazo e ao tempo imediato (MILANI e LANIADO, 2006).

Este redirecionamento econômico global tem conseqüências profundas sobre a organização do sistema mundial (DUPAS, 2001; RIST, 1996 apud MILANI e LANIADO, 2006); afeta, igualmente, o desenvolvimento das redes, organizações e movimentos sociais.

Como afirmaram Della Porta e Tarrow (2005), há dois processos subjacentes à globalização: a internacionalização da política por meio da emergência de atores, redes e instituições transnacionais, assim como a integração econômica produzida pela voracidade do crescimento do comércio internacional, da mídia e da integração financeira. Nesse sentido, a globalização em si mesma favorece a expressão da contestação internacional criando estruturas de oportunidades e também circunstâncias políticas para a ação de movimentos anti-globalização e dos movimentos alternativos à globalização (TARROW, 1998 apud MILANI e LANIADO, 2006). Ela (re)produz desigualdades sociais e econômicas entre (e dentro dos) Estados. Graças a um complexo sistema de redes tecnológicas, a globalização facilita a intercomunicação rápida e imediata (um novo tempo) que escapa, ademais, ao controle rígido do Estado-nação (um novo território) (MILANI e LANIADO, 2006).

Por isso, ao falar do cenário nacional, temos que ter em vista a influência dos efeitos da globalização. A década de 90 é marcada por uma grande crise econômica e a diminuição de empregos na economia formal, com a conseqüente migração para a economia informal e para a chamada economia popular8. As políticas econômicas muitas vezes dão suporte à economia informal e há uma crescente fragmentação e pulverização das atividades produtivas e das relações sociais em geral. As ONGs vão ocupando cada vez mais espaço ao oferecer serviços públicos para a população, uma vez que a capacidade do Estado de atender aos serviços básicos diminui a cada dia. Há um visível aumento de pessoas abaixo da linha mínima de sobrevivência, como sem-tetos e crianças de rua, o que aumenta significativamente a violência urbana, aumentando o medo e a incerteza, mesmo com a estabilização da moeda local (GOHN, 2002).

Ao falar em globalização também é preciso estar atento ao conteúdo ideológico que está por trás do conceito. Milani (2000 e 2004) alerta sobre as possíveis distorções que

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surgem com certa freqüência nas análises sobre a globalização. A primeira é o não estabelecimento de uma distinção entre a descrição da realidade do que seria a globalização através de prescrições e normas, e de como a globalização deveria ser. Outra tendência a por em evidência, quase que exclusivamente, suas dimensões econômica e financeira, deixando de lado as dimensões sociais, espaciais e culturais, suas origens históricas, ideológicas e políticas. A terceira distorção seria a tendência em juntar o “político” com o “governamental”, assim como o “econômico” com o “mercadológico”. A partir destas distinções é possível falar em globalização hegemônica e contra-hegemônica.

A globalização hegemônica pode ser descrita como um movimento econômico, cultural e político que, tendo inciado em princípios dos anos 1990, visa a defender uma concepção economicista das relações humanas e do bem público. Busca restringir o bem público a um serviço de mercado regido pela lei da oferta e da procura; visa a limitar a esfera social dentro da esfera econômica. É hegemônica a globalização que defende tais postulados de maneira dominante, sem questioná-los ou criticá-los sob a perspectiva de diferentes contextos culturais e históricos (MILANI, 2000, s/p).

Já a globalização contra-hegemônica é definida como:

(...) o movimento de idéias e ações políticas e econômicas que repõem em discussão o caráter absoluto dos postulados da globalização hegemônica. Suas palavras de ordem são a contestação, o questionamento, a mobilização social e política, a solidariedade, assim como a democratização dos processos de tomada de decisão (..) São ilustrações de temas e espaços políticos alternativos da globalização contra- hegemônica o Forum Social Mundial de Porto Alegre, a taxa Tobim, a regulação política dos fluxos financeiros, o fim dos paraísos fiscais, o controle democrático dos sistemas de gestão das bolsas de valores, a responsabilidade social das empresas, a economia solidária (MILANI, 2000, s/p).

Muitos atores políticos, movimentos sociais, pensadores e redes internacionais compartilham os valores e as ideologias da globalização contra-hegemônica, tais como Via Campesina (América Latina), MST (Brasil), Greepeace (internacional), Barefoot College (Índia), Noam Chomski (EUA), Immanuel Wallerstein (EUA), François Chesnais (França), Vandana Shiva (Índia), Walden Bello (Filipinas), Aminata Traoré (Mali), entre muitos outros. No entanto, é evidente que o pensamento em torno da sociedade civil e suas funções na sociedade está longe de ser homogêneo. Suas formas de ação variam do protesto de rua (Seattle-1999 foi um exemplo), ao boicote e à violência no âmbito de conferências

intergovernamentais (Gênova), até formas mais organizadas e pacíficas de encontros mundiais alternativos (Fòrum Social Mundial).

Os movimentos sociais são considerados ações sociopolíticas, como o conceito citado anteriormente explicita, e a ideologia o conjunto de crenças, valores e ideais que fundamentam suas reivindicações (GOHN, 2002). Muitos autores tendem a dizer que as utopias deixaram de existir com a queda do bloco comunista, mas esquecem que a ideologia é um elemento presente em todo movimento social. As ideologias funcionam como marcos estratégicos de fundamental importância para a criação da identidade dos movimentos.

Gohn (2002) defende que o debate sobre o papel da ideologia no mundo não desapareceu, uma vez que:

(...) todo movimento está articulado a um conjunto de crenças e representações e são elas que dão suportes a suas estratégias e desenham seus projetos político- ideológicos. Não se trata da vertente marxista ortodoxa que vê a ideologia como mistificação da realidade mas sim da vertente marxista gramsciana que trata a ideologia no campo das práticas sociais, como conjunto de idéias que dão suporte a projetos estratégicos de mudança da ordem das coisas na realidade social (GOHN, 2002, p. 235)

Historicamente a ideologia tem implicações na humanidade. Wood (1999) vê a ideologia como “uma crônica da destruição humana cometida por indivíduos com doutrinas ideológicas diferentes” (WOOD, 1999, p. 605). Ele ressalta, então, que os grandes conflitos dos últimos séculos foram provocados por diferenças ideológicas, como nas revoluções americana, francesa e bolchevique. Nos dias atuais, os conflitos ideológicos também foram fonte de guerras e rupturas econômicas, além da justificação para violência regional e internacional.

A ideologia é um aspecto psicológico poderoso, porém pouco compreendido, com implicações tanto sociológicas e interpessoais quanto políticas e internacionais (WOOD, 1999, p. 605).

Wood (1999) ainda destaca diferentes concepções de mundo das pessoas e afirma que todos são possuídos e orientados por ideologias “radicalmente” diferentes e faz uma

tentativa de diferenciar alguns conceitos que são utilizados indistintamente como sinônimos de ideologia:

1. Crença - convicção aparente racional do que é verdadeiro e falso, referindo-se ao que existe, de fato;

2. Valor - algo semelhante a uma convicção emocional sobre o que é bom e o que é mau, envolvendo juízo de valor;

3. Atitude - aprovação ou acordo, ou desaprovação ou desacordo, em relação a um objeto, fato ou possibilidade exteriores;

4. Ideologia – conceito distinto de todos os anteriores, uma vez que significa um amplo sistema que organiza e dá sentido à vida das pessoas. “Uma doutrina sistemática da vida humana; uma ideologia proporciona uma orientação (um fim) e especifica os comportamentos adequados (os meios) para atingir este fim” (WOOD, 1999, p. 606).

Partindo da premissa de que os movimentos sociais são processos político-sociais, concordamos com a afirmação de que constituem “expressões de poder da sociedade civil, e sua existência, independe do tipo de suas demandas, sempre se desenvolve num contexto de correlação de força social” (GOHN, 2002, p. 251). Neste trabalho, temos como pressuposto que a sociedade civil é um espaço para criação de novas ideologias, as quais podem assumir um caráter de contra-hegemonia à ideologia dominante, caracterizada por quase-exclusivos e excessivos pesos dados ao mercado onipresente, produtivo, eficientista e pretensamente regulador das relações sociais na sua totalidade:

Uma vez considerado o movimento da sociedade civil como o momento através do qual se realiza a passagem da necessidade à liberdade, as ideologias – das quais a sociedade civil é sede histórica – são vistas não mais apenas como justificação póstuma de um poder cuja formação histórica depende das condições materiais, mas como forças formadoras e criadoras de nova história, colaboradas na formação de um poder que se vai constituindo e não tanto como justificadoras de um poder já constituído (BOBBIO, 2002, p.41)