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UMA FAMÍLIA EM MOLDURAS: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA NA OBRA “ARQUIPÉLAGO DA

2. A INSÔNIA DA MEMÓRIA: PERDA E PERMANÊNCIA

Anais do Simpósio Nacional do Gepelip:

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sociais, significa não está preso a nenhuma estrutura de pensamento linear e nesse desejo de liberdade criadora a escritura também se rompe. A ordem da narrativa é outra, a fragmentação da realidade se dá pelo olhar do narrador que não consegue ver a totalidade das coisas, descrevendo-as peldescrevendo-as partes, pelo processo metonímico como Foucault descreve o quadro de Veldescrevendo-asques.

Primeiramente apresenta o raio de visão do pintor, depois dos integrantes do quadro, enfim, vai descrevendo ponto a ponto todos os elementos até formar um todo coerente, mas no caso dessa narrativa de Antunes quem deve tornar o texto coerente ou não é próprio leitor ao fazer um árduo trabalho de arqueologia para descobrir a sua lógica, o seu processo de escrituração.

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Lembrar-se de tudo é possível? Como se seria necessário de mais um dia para enumerar tantos pormenores lembrados? No final do conto o narrador suspeita que Funes era incapaz de pensar pois “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair” (BORGES, 19888, p. 545). A angústia da lembrança é a triste condição do narrador de “Arquipélago da Insônia”, pois deseja falar, descrever tantos pormenores, que sua memória julga-a importante, explodindo em uma verbalização nauseante deixando o leitor numa inquietação constante. O narrador teme o esquecimento. Sua memória hipertrofiada pelos excessos de detalhes provoca-lhe a insônia, por tantas lembranças simultaneamente,

[... ] e não se lembra das garças, as memórias que você perdeu, uma espécie de ilha[...]. Não esqueço os caules de linha azul e as pétalas verdes como não esqueço as nuvens na janela, redondas antes das primeiras chuvas [...].

lembro-me do cobertor que me deram para dormir no celeiro e dos morcegos a abandonarem as vigas numa desordem de guinchos . [...] disse que de pouco me recordo antes da herdade e não minto (ATUNES, 2010 p. 109, 178, 194, 195).

Platão atribuía a memória um lugar privilegiado, pois a reminiscências levariam o pensador

“de volta ao mundo das ideias” (Zilberman, 2004, p.19). Por outro lado, o filósofo atentava para os perigos da memória, entre outros, a invenção da escrita que poderia “substituí-la”, ocasionando o

“seu desaparecimento” conforme este diálogo entre Sócrates e Fedro:

Tal cousa [a escrita] tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação (PLATÃO- Fedro, 1966, p.261 apud Zilberman, 2004, p. 19).

Nesta concepção platônica, a memória e recordação são coisas distintas, contrapondo as ideias entre lembrança e esquecimento. E o que são fotografias senão lembranças que podem ser rememoradas, re-vividas pelo narrador? E são estas lembranças que servem de base para a profusão de tantas outras lembranças. É lembrança dentro da lembrança como um labirinto sem fim.

Jaques Derrida, na obra “Mal de Arquivo” (2001), apresenta uma aparente contradição dos arquivos que seriam “a forma de pulsão de destruição, a pulsão mesma de conservação”

(2001, p. 32) ou mesmo “pulsão de arquivo”:

[...] não haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um esquecimento [...] eis aí o mais grave além ou aquém deste simples limite que chamam finitude, não haveria mal de arquivo sem ameaça desta pulsão de morte, de agressão ou de destruição. (DERRIDA, 2001, p. 32).

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Se o arquivo implica esquecimento, o narrador de Arquipélago da Insónia recusa-se a esta

“pulsão de morte”, mesmo sentindo-a, pois sabe da inevitabilidade da destruição de parte do arquivo existente dentro de si. E o mais chocante do sentimento de perda reforça-se na própria identidade subtraída. A narrativa caminha de mãos dadas com o modo de fazer, pois a metaficção contemporânea aponta para uma condição da sociedade pós-moderna no que tange à hipertrofia do texto sobrecarregado de informações perante um sujeito atrofiado de ideias inovadoras.

A crise de identidade é suplantada para o campo das artes, da literatura. A narrativa contemporânea procura desestabilizar as estruturas da narrativa tradicional. Dessa forma, o sujeito é pulverizado, fragmentado pela própria condição pós-moderna de que ele é substituído por um discurso. O papel do discurso nacional é de manter o, que Foucault chama de, “poder disciplinar” “consiste em manter as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os prazeres dos indivíduos” (HALL, s/d, p. 42). A narrativa de Antunes é subversiva a este tipo de discurso, que insiste na permanência do status quo, não aceitando modelos já estabelecidos. O sujeito sente-se emparedado, um estrangeiro dentro de sua própria pátria, morto diante da realidade vivenciada sem nenhuma expectativa de mudança.

A náusea da existência, a incomunicabilidade, a solidão são temáticas que trazem uma fatalidade irreversível. A narrativa de Antunes é triste, melancólica, mas o narrador com muita divagação foge das lembranças tristes ao “brincar” com a língua. Há episódios em que diz e logo a frente diz que foi um engano, ou seja, desdiz o dito.

Para Barthes não se pode voltar a traz o que se diz se não for pelo longo processo de

“acréscimo”. A isto Barthes chama de “balbucio” que “é um ruído de linguagem comparado à sequência de barulho pelos quais um motor dá de entender de estar mal regulado” (BARTHES, 2004, p. 93), significando o mau funcionamento; a isto se contrapõe àquilo que está em bom funcionamento que o autor chama de “rumor”. “Arquipélago da Insônia” apresenta um excesso de descrições, causando, aparentemente o mau funcionamento do texto, sob a óptica de um leitor que pode ter dificuldade em compreender o processo de construção das múltiplas formas de recepção da narrativa contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Memória e fotografia são artifícios para a estratégia discursiva da obra “Arquipélago da Insónia”, tendo a figuração da morte nesses dois elementos, pois todas as personagens das fotografias estão mortas, assim como a memória remete para um passado que não existe mais. A

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personagem principal não tem certeza de sua existência. Tudo o que resta naquela herdade são ruínas, espectros que povoam, e assombram a mente do narrador.

A perda da identidade do sujeito da narrativa é também suplantada para o lugar de enunciação. Portugal é visto como uma lagoa, isolado do mundo não havendo mais nada depois dela. O que é o nada senão o medo do esquecimento, do abandono? A morte aqui é simbolizada pela morte do sujeito que produz, que escreve, de acordo com Barthes (2004, p. 57) “A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda a identidade a começar pelo corpo que escreve”. A linguagem assume uma autonomia sobre o autor. A morte do autor significa o nascimento da escritura.

Nesse pensamento, o modo de dizer implica a pulverização do sujeito que reflete na desconstrução da narrativa o que não deixa de ser uma forma de representação da morte em um ato do contínuo refazimento Nessa obra, todas as rasuras e os borrões do texto são deixados para o leitor fazer a “limpeza” encontrando nas marcas discursiva do autor a chave para a leitura.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião. 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.

ANTUNES, António Lobo. O Arquipélago da Insónia – Rio de Janeiro, Objetiva, 2010.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. 2ª edição. São Paulo, 2004

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo uma impressão freudiana. Tradução: Claudia de Moraes Rego. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2001.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. Martins Fontes- São Paulo, 2000.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10ª edição. Editora DP&A – Rio de Janeiro s/d.

SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência ((Trad. Iraci D. Polleti e Regina Salgado Campos. Senac, São Paulo, 2010

ZILBERMAN, Regina. et al. As pedras e os arcos: fontes primárias, teoria e história da literatura – Belo Horizonte: Editora: UFMG, 2004.

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QORPO-SANTO E BERNARDO SANTARENO: GÊNERO,