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UMA FAMÍLIA EM MOLDURAS: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA NA OBRA “ARQUIPÉLAGO DA

1. VELHAS FOTOTOGRAFIAS COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA

Toda fotografia traz uma lembrança de um instante congelado no tempo. As imagens apresentadas em uma moldura estática exercita a memória individual e coletiva daqueles que temem a perda de suas referências bem como de sua(s) identidade(s). Toda imagem fotografada apresenta uma história, suscita na memória várias narrativas sobre aquelas personagens retratadas na moldura de um papel.

A primeira frase do livro “Arquipélago da Insônia” é emblemática e carrega toda a subjetividade discursiva envolvida no texto. “De onde me virá a impressão que na casa, apesar de igual, quase tudo lhe falta”? (ANTUNES, 2010, p.09). O narrador-personagem é autista e passa, para o leitor apenas “impressões” de tudo o que vivenciou, desde a infância até o presente onde se encontra confinada em um hospício. As lembranças são transportadas para o presente, estimuladas por velhas fotografias penduradas na prede da casa onde o narrador viveu. Cada imagem ganha vida nas fotografias e elas têm a função de movimentar um estado de estagnação do narrador e do próprio texto, se não fossem elas tudo estaria morto como retrata esta passagem do texto:

[...] fotografias antigas em lugar da minha mãe, do meu pai das empregadas da cozinha e da tosse do meu avô comandando o mundo, não a presença, não ordens, a tosse, um lenço saía-lhe do bolso e desarrumava o bigode, o meu pai prendia o cavalo na argola e a seguir apenas o restolhar a erva, que esse sim mantém-se seco e duro até depois da chuva, na varanda os campos que conheço e não conheço [...] (ANTUNES, 2010, p. 09)

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Interculturalidade nas Literaturas de Língua Portuguesa.

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As fotografias surgem como resíduos da memória que aguçam a imaginação do narrador, numa tentativa, sem êxito, de voltar num tempo presente. O medo de perder as referências pessoais faz com que ele se apegue em demasia às lembranças de sua família existentes apenas nas fotografias emolduradas na parede. O texto a todo instante propõe uma reflexão sobre a morte do sujeito tendo como argumento discursivo fotografias que segundo, Soulages (2010) remetem para um vestígio de uma passado envolvido por várias camadas regressivas da memória. É evidente que toda fotografia se refere a um passado “[...] mas de que passado? [...] do sujeito fotografado ou do sujeito que olha a foto? Passado do tempo ou passado do espaço? Passado da vida o ou passado da morte? (SOULAGES, 2010, p.13). Diante de todos esses questionamentos, Soulages conclui que a fotografia é “um vestígio” de todas essas possibilidades temporais, simultaneamente. O poema a seguir “Morte de sobrecasaca” de Carlos Drummond de Andrade exemplifica esta relação entre as categorias de tempo e memória:

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,

alto de muitos metros e velhos de infinitos minutos,

em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasacas.

O poema retrata a ausência e a solidão do eu poemático ao olhar para um álbum de fotografias “alto de muitos metros e velhos de infinitos minutos”. Com essa frase altamente polissêmica, as imagens ou lembranças são tantas, dando a dimensão exagerada dos “muitos metros” de estagnação. Para amplificar ainda mais os elementos semânticos do estado de languidez e ausência, os metros eram “velhos de infinitos minutos”, simbolizando um sentimento corrosivo interminável de solidão marcada pelo tempo: “infinitos minutos”.

O sujeito encontra-se numa condição irreversível de eterna angústia existencial. É dessa forma que se encontra o narrador da obra Arquipélago da Insônia, a se referir ao tempo diz “o que importa o tempo que não existe também, existe o silêncio que nem as patas do cavalo animam” (ATUNES, 2010, p. 21). As inúmeras passagens do texto, que aludem às fotografias vê-se as três gerações de uma família, sob ruínas estagnada, pois só o que existe dela são apenas os restolhos da memória que insiste, numa insônia interminável permanecer, conforme esta outra passagem no qual “as criaturas das fotografias iam surgindo do nada, platrons engomados, mantilhas fora de moda que nem no sótão se encontram, pessoas a espiolharem-se vísceras a vísceras [...] mais tempo vivo para quê [...] (ANTUNES, 2010, p. 25).

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A principal tarefa do leitor é compreender o modo de dizer que o texto impõe, e este por sua vez, deve tomar consciência de como o discurso se constrói a partir de um lugar onde tudo pode ser desconstruído. A linguagem é uma construção e o escritor tem a necessidade de se construir para o outro através da escrita. A matéria do romance é construída por uma linguagem autônoma, criando, do “nada”, um mundo complexo com suas próprias leis. O leitor tem dúvida de tudo e a verossimilhança aristotélica é posta em cheque.

O que é o verossímil senão uma provável verdade na qual o leitor faz um pacto de concordância de aceitação de uma coerência verbal? Nesta obra, Antunes propõe um jogo de

“verdades” delineadas pelas incertezas, pois o texto é sobrecarregado pela inexistência do sujeito simbolizado pelas fotografias que remetem à morte, uma vez que o narrador, atormentado pela memória, a todo instante lembra o leitor do elemento em branco, do nada discursivo, reforçando a ideia de que “ninguém existia, somos personagens de moldura, sorrisos confundidos com os estalos do assoalho, não existimos e, portanto, o que digo não existiu [...]” (ANTUNES, 2010, p.19).

As personagens, com exceção do narrador e de seu irmão, que também o auxilia na escritura do texto, estão todos mortos. A narrativa move-se por meio da introspecção psicológica do narrador que vive assombrado por lembranças de pessoas sem nome, nomeadas apenas como

“minha mãe”, “meu avó”, “minha avó”, “o feitor”, “o ajudante do feitor”, “as empregadas da cozinha”. Os sujeitos não possuem referências são despersonalizados. Esta é a reflexão do narrador sobre si e sobre tudo que está ao seu redor.

A todo o momento a narrativa é interrompida por uma polifonia discursiva (as várias vozes que surgem nos labirintos da memória do narrador) e também pelos parênteses que complementam o texto principal imprescindível à compreensão da obra como, por exemplo, as vozes:

- O órfão - o jardim

- o que me deu na cabeça para ti tirar do fogão?

- leva as tuas coisas para o andar de cima amanhã - os comunistas

- leva as tuas coisas para o meu quarto amanhã - chega cá

Aparentemente essas frases estão soltas, deslocadas do corpo do texto, mas existe uma lógica interna. São vozes que surgem no decorrer da narrativa, lembranças que soam na memória do narrador vêm e vão sem que ele possa selecioná-las. Cada uma dessas frases, assim como todas as vozes do texto, faz alusão a uma situação, a um acontecimento, a um fato.

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“O órfão”, por exemplo, refere-se à voz de senhores, na ocasião da morte da mãe do narrador;

“o jardim” ao referir-se ao casarão da família, vem-lhe a mente a voz da avó; “o que me deu na cabeça para ti tirar do fogão?” Esta lembrança remete-se ao pai do narrador no momento em ele que leva a mãe do narrador, uma empregada da cozinha, para o seu quarto que ficava no andar de cima daquele casarão. Por várias passagens o narrador insiste em dizer que ninguém e muito menos o que ele dizia existia.

Se ninguém existia como explicar a existência da narrativa? Nesse caso as fotografias fazem fluir a imaginação criadora porque, segundo Soulages (2010) , elas remetem ao devaneio, ao inconsciente, pois não servem de provas verídicas, são apenas vestígios que,

[...] nos traz de volta o nosso eu – mas que eu? Toda foto é essa imagem rebelde e ofuscante que permite interrogar ao mesmo tempo o alhures e o aqui, o passado e o presente, o ser e o devir, o imobilismo e o fluxo, o contínuo e descontínuo, o objeto e o sujeito, a forma e o material, o signo e a imagem (SOULAGES, 2010, p.14).

As imagens suscitadas na foto remetem para um problema filosófico de representação visto por vários ângulos: primeiro, pelo ângulo do sujeito que aprecia a fruição, segundo, pelo ângulo do objeto que carrega em si os vestígios de uma existência, finalmente pelo ângulo do tempo que deixa lembranças doloridas da perda e permanência constate do passado. Essas questões indagam a relação do sujeito que se identifica ou não com o mundo no qual se vive.

O final do século XX a sociedade é marcado por mudanças estruturais que na visão de Stuart Hall (s/d) estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento—descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos — constitui uma "crise de identidade" para o indivíduo.

A pessoa é reconhecida pela objetivação dentro de um mundo desumanizado. Não ter nome é o não-ser é amplificação do ser estilhaçado, marcado pela pulverizazão do mundo contemporâneo. O escritor é um homem de seu tempo. Dessa forma Antunes vai escrever as angústias dessa modernidade, Os excessos, as repetições do texto são aplicadas as experiências as quais o homem moderno não consegue mais criá-las, é um ser reprodutor das eternas repetições.

A teoria crítica, conforme Barthes (2004) está sempre interessada no texto do ponto de vista do autor e nunca do leitor. A pergunta básica para uma obra literária é “o que o autor quis dizer e de modo algum [pergunta sobre] o que o leitor entende” (BARTHES, 2004, p.

29). Antunes, na sua escritura, procura desconstruir essa forma de análise, uma vez que há

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ausência de trama, na narrativa, nada acontece. O que o autor disse está dito. Não há nada velado, obscuro que possa trazer profundas mudanças no transcorrer da narração.

O que poderia haver de mais comum sobre a história de uma família que antes fora rica do interior de Portugal, indo à bancarrota , só restando o abandono, a solidão e a decadência contada por um autista, um dos membros da família, que vive confinado num hospício e sente-se rodeado de fantasmas (as lembranças do passado que as atormenta numa insônia profunda). Talvez a melhor pergunta fosse como o autor diz. E aqui está uma possibilidade de leitura que a própria obra impõe.

Dessa forma a pergunta sobre o que o leitor entende poderia ser melhor explorada, pois o entendimento do leitor estaria em decifrar as “marcas” que o autor deixa para compreensão do modo de dizer, que, no caso de Antunes, difere da maioria dos textos pois a lógica é outra. A leitura é constantemente interrompida por frases, vozes, interrupções bruscas do raciocínio, para desabafar sobre o fazer da escritura, como esta passagem contida nos parênteses da narrativa : “o lápis [...] e aí estava o lápis de novo e as moscas a escaparem-se [...] agora não era a ponta da [...] borracha que batia na mesa, era o lápis completo a meditar” (ANTUNES, 2010, p.114).

A prosa de ficção contemporânea faz um trabalho de arqueologia, de interpretação, ter o domínio do sistema, do objeto culturalmente produzido, colocando diferentes elementos e ordená-los internamente é tarefa de um leitor atento às novas possibilidades de leituras. Para Foucault (2005, p. 98) “a literatura só logrou existir na sua a autonomia, só se desprendeu de linguagens alheias por um corte profundo quando formou uma espécie de ‘contradiscurso’”. É nessa ideologia que incide a prosa de Antunes, optando por um discurso de ruptura do tradicional, da continuidade. A figura mais importante do texto é a do narrador por ser o interlocutor do discurso entre o leitor e a prosa do mundo que ocorre com a apreensão do conhecimento através da semelhança.

Segundo Foucault há quatro processos de conhecimento por similitudes: conveniência, emulatio, analogia e simphatia. No processo de conveniência os elementos são aproximados por contiguidade. Nessa conveniência existem elementos internos ou externos aos objetos que os aproximam. Em “arquipélago da Insônia há vários objetos que passam por este processo, por exemplo, o cheiro dos baús é lembrança da mãe do narrador; o livro de prima Hortelinda faz alusão à morte etc.

Como Dom Quixote de Cervantes, o narrador de “Arquipélago da Insônia” é visto com anormal, o louco, portanto a forma de pensamento é outra e não aquela combinatória, classificatória das ciências naturais. A identificação da loucura como libertação das amarras

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sociais, significa não está preso a nenhuma estrutura de pensamento linear e nesse desejo de liberdade criadora a escritura também se rompe. A ordem da narrativa é outra, a fragmentação da realidade se dá pelo olhar do narrador que não consegue ver a totalidade das coisas, descrevendo-as peldescrevendo-as partes, pelo processo metonímico como Foucault descreve o quadro de Veldescrevendo-asques.

Primeiramente apresenta o raio de visão do pintor, depois dos integrantes do quadro, enfim, vai descrevendo ponto a ponto todos os elementos até formar um todo coerente, mas no caso dessa narrativa de Antunes quem deve tornar o texto coerente ou não é próprio leitor ao fazer um árduo trabalho de arqueologia para descobrir a sua lógica, o seu processo de escrituração.