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A inserção das lutas anti-homofobia no debate público

Como se pode constatar ao longo desse breve histórico do ativismo LGBT no Brasil, a questão da luta anti-homofobia já aparece desde a década de 1980, com a mobilização em torno da inclusão da discriminação por orientação sexual na Constituição de 88. A partir de então, a violência contra homossexuais passa a representar um tema central para o movimento e, por conseguinte, para o governo e a mídia, com a sistemática denúncia de agressões, crimes, hostilizações e discriminações motivadas pela orientação sexual ou identidade de gênero e pela divulgação da expressão “homofobia” para caracterizar esse tipo de ação discriminatória (RAMOS e CARRARA, 2006).

Na verdade, boa parte das bandeiras de luta que ganharam visibilidade no debate público no século XXI já estava sinalizada na fase da “segunda onda” (1984 a 1992), a exemplo de lei antidiscriminatória, da legalização de uniões homoafetivas, do tratamento positivo da homossexualidade na mídia, e da inclusão da educação sexual nos currículos escolares (FACCHINI, 2005, 2011). Esse processo que irá visibilizar a “cena homossexual” no país é deflagrado a partir da segunda metade dos anos 1990, em contraposição ao quadro

17 http://www.meel.org.br/

essencialmente defensivo e quase invisível das décadas de 70 e 80 (RAMOS, 2005; RAMOS e CARRARA, 2006).

Diversas iniciativas e acontecimentos heterogêneos e não articulados entre si contribuíram para o conjunto de transformações sociais que alteraram o panorama anterior, relacionadas às instâncias do poder público, do ativismo LGBT, da mídia, do mercado e, de forma superveniente, do meio acadêmico, com a incorporação da temática da diversidade sexual às pautas de pesquisa das universidades e centros de estudos (Ibid.; Ibid.). Esse cenário se dá em paralelo às mudanças ocorridas no interior do próprio movimento a partir de 1992, que refletem a necessidade de profissionalização detectada naquele momento: a resposta à epidemia HIV/Aids, a multiplicação de ONGs e de redes locais, nacionais e internacionais e as sistemáticas iniciativas de advocacy (FACCHINI, 2003, 2011).

Teriam contribuído para a construção de representações públicas da homossexualidade: (a) a multiplicação de iniciativas legislativas e jurídicas, com extensão de direitos, a exemplo de projetos de lei e mudanças em Constituições nas esferas municipais e estaduais, concessão e divulgação de jurisprudências nos casos de autorização de pensão, previdência e, recentemente, nas uniões civis; (b) o crescimento de um mercado segmentado “GLS” e de publicações especializadas, principalmente na Internet; (c) a criação de novas entidades de defesa dos homossexuais e a convivência de estilos heterogêneos de associação e agregação, como ONGs, fóruns, coletivos, redes, entre outros (RAMOS, 2005, p. 33-34).

Por último, (d), articulado às iniciativas anteriores, o acontecimento mais importante foi a adoção da política de visibilidade massiva pelos ativistas (tanto aqueles mais orgânicos, vinculados a alguma entidade, como aqueles ocasionais ou independentes), associada ao surgimento das Paradas de Orgulho LGBT em meados dos anos 1990 (FACCHINI, 2005, 2009; RAMOS, 2005; RAMOS e CARRARA, 2006), e a incorporação da temática da diversidade sexual de um modo mais “positivo” pela chamada grande mídia, seja via inserção de personagens em novelas ou de matérias em veículos jornalísticos18 (FACCHINI, 2005, 2009, 2011).

Nesse contexto, observa-se o processo de segmentação do mercado de consumo e serviços, com a criação de casas noturnas, saunas, bares, festivais de cinema, companhias de turismo, revistas e demais mídias dirigidas para o público então designado como GLS - gays, lésbicas e simpatizantes (FRANÇA, 2007; RAMOS, 2005). A proliferação dessas

18 Em função das demandas de agendamento, a ABGLT lançou, em janeiro de 2010, o Manual de Comunicação

LGBT (http://www.abglt.org.br/docs/ManualdeComunicacaoLGBT.pdf), distribuído às redações de todo o país na tentativa de qualificar a cobertura jornalística e combater abordagens preconceituosas e politicamente incorretas.

experiências comerciais contribui, em determinados locais, para uma aproximação com a militância (RAMOS, 2005), mas não sem conflitos, em função das diferenças de objetivos específicos entre as estratégias de mercado e as ações da sociedade civil organizada.

Paralelamente, há um incremento da produção acadêmica sobre diversidade sexual, seguido, nos anos 2000, pelo surgimento nas universidades de grupos ativistas e de pesquisa, assim como GTs e painéis temáticos em encontros nacionais de associações científicas. Em 2001 foi criada a Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH). Após 2003, passam a ocorrer Encontros Nacionais Universitários de Diversidade Sexual (Enuds) e reuniões anuais incluindo estudantes e professores. Na mesma época, instituições universitárias iniciaram um ciclo de pesquisas em diversas Paradas do Orgulho LGBT, em parceria com organizações ativistas (FACCHINI, 2011; RAMOS e CARRARA, 2006; RAMOS, 2005).

A luta contra a discriminação no âmbito constitucional coincide com o momento em que o Grupo Gay da Bahia começa a arquivar informações sobre assassinatos de homossexuais motivados, direta ou indiretamente, por homofobia19. Esses registros, feitos com base em notícias publicadas nos jornais e, de forma secundária, por depoimentos de militantes, têm sido divulgados através de dossiês que se tornaram célebres e permitiram romper o silêncio sobre o assunto (RAMOS e CARRARA, 2006). Em 1988, a mídia generalista20 passa a usar a expressão “assassinato de homossexuais” para problematizar a existência desse tipo de crime. Em 1992 aparece pela primeira vez a expressão “homofobia” no jornal O Globo, para designar “horror ao homossexual” (LACERDA, 2006, p. 107).

Na segunda metade dos anos 1990, a divulgação das estatísticas de assassinatos torna- se mais frequente, o que contribui fortemente para estabelecer a denúncia da violência e da homofobia como uma das prioridades da agenda do movimento (RAMOS e CARRARA, 2006). No entanto, a abordagem sensacionalista da mídia, especialmente na década de 1980 e em parte dos anos 1990, propiciou uma visão parcial da vitimização dessas minorias, que muitas vezes tendia a reproduzir as concepções do senso comum de que a tragédia era, de alguma forma, efeito de fraquezas morais e de escolhas das próprias vítimas, sobretudo travestis e homossexuais de classe média mortos por garotos de programa (Ibid.).

19 Os dossiês do GGB começaram a ser produzidos em 1980 e evoluíram para o Relatório Anual de Assassinato

de Homossexuais, que em 2012 registrou 338 mortes de natureza homofóbica no país. O número corresponde a

um aumento de 27% em relação ao ano anterior (266 casos) e 177% nos últimos sete anos (http://truelove.com.br/2013/01/relatorio-anual-assassinato-homossexuais-2012/).

20 Ou chamada grande mídia, corresponde no Brasil ao sistema de mídias abertas ou generalistas comerciais

Pesquisa realizada por Carrara e Vianna (2001) concluiu que a homofobia se articula de forma complexa e sutil e afeta as representações da homossexualidade mantidas por policiais, promotores, juízes e advogados, que reiteraram a ideia de que as vítimas contribuíram para sua morte com uma vida desregrada ou patológica. Essas representações determinam os rumos das investigações, mesmo nos casos em que há condenação. Há enorme diversidade e especificidade nas formas de violência de gênero: homens homo e bissexuais são mais vitimados em espaços públicos, por exemplo, enquanto mulheres homo e bissexuais o são nos espaços privados (CARRARA e RAMOS, 2005; CARRARA et al, 2006).

Nos anos 2000 intensificaram-se as articulações em torno da aprovação de um projeto de lei para criminalizar a homofobia21. O PLC 122 (inicialmente denominado PL 5003/2001) foi proposto em 2001 na Câmara até ser aprovado em 2006, quando passou a tramitar no Senado e recebeu a atual numeração22. Desde então, sofreu várias modificações. A proposição prevê alterar a Lei nº 7.716 relativa aos crimes de racismo, o Código Penal e a Consolidação das Leis do Trabalho para incluir a punição por discriminação e preconceito de gênero e orientação sexual. Depois de um longo processo de debate, em 2011 os movimentos LGBT chegaram a um consenso sobre a nova proposta de alteração da redação, mas novas polêmicas com a bancada evangélica inviabilizaram uma possível aprovação.

Sobre a centralidade do combate à homofobia na agenda do movimento LGBT, um ativista comenta:

[...] o maior de todos os desafios será o combate à homofobia. Dito assim, pode parecer subjetivo e intangível demais. Porém, tudo mais será consequência natural dessa luta que é diária, árdua e longa. Não à toa, ela é a maior de todas as bandeiras atualmente. Se queremos uma educação formal voltada para a diversidade, se queremos combater a evasão escolar provocada pelo bullying, se queremos lutar pelo registro do nome social, se queremos conquistar espaço no mercado de trabalho especialmente para travestis e transexuais, se queremos zerar os casos de homicídios motivados por orientação sexual, se queremos combater a AIDS ou mesmo manter os direitos já conquistados, tudo isso passa invariavelmente pelo combate à homofobia (Gésner Braga de Araújo Júnior, membro do Comitê Desportivo LGBT – seção Bahia (CDG – Bahia) e filiado ao Fórum Baiano LGBT, em entrevista à autora, em 31/08/2013).

Em função das alegações dos deputados da ala conservadora de que o artigo 20 do projeto afetava a liberdade de crença e expressão, a então relatora, a ex-senadora Marta Suplicy (PT-SP), apresentou em 2012 uma emenda isentando de punição os casos em que a

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Pesquisa realizada na Parada LGBT de São Paulo em 2005 pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) aponta que 60% dos entrevistados já sofreram discriminação por causa da sua orientação sexual ou identidade de gênero, de modo que “ter sido vítima de agressões verbais e ameaças de agressão aparece como experiência social quase constitutiva da própria homossexualidade no Brasil” (CARRARA, et al, 2006, p. 51).

discriminação por orientação sexual seja manifestação “pacífica de pensamento decorrente de atos de fé” (VITAL e LOPES, 2012, p. 130). O impasse continuou: a emenda foi reprovada por defensores dos direitos LGBT sob o argumento de que esta descaracteriza o objetivo original do PLC 122 e, ao mesmo tempo, não foi suficiente para conquistar o apoio da bancada evangélica.

Inconformada, a ABGLT entrou, no mesmo ano, com um mandado de injunção no Supremo Tribunal Federal para o reconhecimento da criminalização da homofobia na Constituição e reforçou a ação de defesa de direitos (advocacy) no Congresso. Em novembro de 2013, novas controvérsias e desentendimentos fizeram com que o projeto fosse retirado da pauta de votação da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado (CDH), o que levou o movimento a emitir uma nota oficial de indignação no dia 20/11/2013 (http://www.abglt.org.br/port/basecoluna.php?cod=320). Há a expectativa de que o PLC 122 seja anexado à proposta de reforma do Código Penal e passe a tramitar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em 2014.

As lutas anti-homofobia começaram a ter ressonância no governo federal a partir de 2003, embora o movimento considere que nos últimos três anos tenha havido uma retração das políticas em decorrência da pressão do setor religioso. A prioridade governamental na atualidade vem sendo realizar um mapeamento da situação no país, como mostra o primeiro

Relatório sobre Violência Homofóbica, realizado pela Secretaria Nacional de Direitos

Humanos em 2011, a partir do monitoramento dos meios de comunicação e de denúncias ao Disque 100, Ligue 180, Disque Saúde e Ouvidoria do Sistema Único de Saúde.

De janeiro a dezembro daquele ano, foram contabilizados 278 assassinatos, reportadas 6.809 violações aos direitos humanos de pessoas LGBT (o que dá uma média de 19 por dia) e denunciados 1.159 casos de homofobia. Em 2012, na segunda versão do relatório, foram contabilizados 310 assassinatos, reportadas 9.982 violações (média de 27,34 por dia) e denunciados 3.084 casos de homofobia. Na comparação de um ano com o outro, o número de violações teve um aumento de 46,6%, enquanto o de denúncias cresceu ainda mais: 166%. A maioria das agressões e hostilizações envolve conhecidos das vítimas. A estimativa, no entanto, é que esses dados não traduzam por completo a realidade devido à subnotificação (BRASIL, 2012, 2013).

O perfil do ativismo anti-homofobia que começava a se delinear a partir dos anos 80, marcado pelo antagonismo político-institucional-midiático, se perpetua pelas décadas seguintes. Os estudos de caso desta pesquisa, apresentados mais à frente no Capítulo 3, irão

demonstrar que a rede Aliança Nacional LGBT, articulada via grupo de discussão online gerenciado pela ABGLT, opera a partir de dois eixos de enfrentamento centrais: os embates com o governo e o parlamento e os embates com a mídia generalista. A grande diferença observada está no impacto das novas tecnologias digitais sobre as formas de planejamento, organização e mobilização da ação coletiva e nos novos reportórios de ação decorrentes dessas mudanças, como veremos adiante.

Nas questões político-institucionais, enquanto o reconhecimento de direitos avança em todas as instâncias do Judiciário e nos Legislativos municipais e estaduais, no âmbito do parlamento federal a situação é inversa: não há até então uma só lei pró-LGBT aprovada. Do ponto de vista midiático, se antes a principal preocupação dos ativistas nos enfrentamentos com a chamada grande mídia era desassociar a homossexualidade à epidemia de Aids e construir uma boa imagem pública da população LBGT, na etapa atual das redes digitais a motivação maior é combater a reprodução de discursos, valores e demais conteúdos de natureza homofóbica (ver quadro 1), tanto nos veículos tradicionais quanto nas mídias sociais23.

Quadro 1- Embates do ativismo LGBT entre os anos 1980 e 2000

23 São mídias que convidam ao envolvimento e participação por permitirem a comunicação de muitos para

muitos, a criação individual ou colaborativa, assim como o compartilhamento e a distribuição de conteúdo em uma ou mais plataformas (GRAEFF, 2009), a exemplo do Facebook, Twitter, You Tube e blogs. Adotaremos essa nomenclatura no lugar de redes sociais, conceito usado indiscriminadamente para referir-se a sites de relacionamento na Internet, em contraposição às redes sociais cidadãs, que pressupõem valores de coletividade, cooperação, solidariedade e compartilhamento e às tradicionais análises de redes sociais (AGUIAR, 2008). Detalharemos essa discussão no Capítulo 2.

Fonte: Elaborado pela autora.