• Nenhum resultado encontrado

Conversação civil e interação online/off-line

APROPRIAÇÕES POLÍTICAS NO CONTEXTO DA INTERNET

2.4 Conversação civil e interação online/off-line

Tem crescido exponencialmente o uso da Internet por cidadãos, movimentos sociais e demais associações cívicas para alcançar propósitos políticos. Ao oferecer conteúdos diversos provenientes de múltiplas fontes, redes dialógicas de comunicação multimídia, ambientes ricos em conexões e inverter os papéis tradicionais de emissor-receptor, esse novo ambiente comunicacional cria um potencial de interação inédito, se comparado às mídias tradicionais (MAIA, 2008c; DI FELICE, 2008; MORAES, 2007). Além do mais, constitui um relevante fórum conversacional no qual discussões políticas e ações coletivas podem transcorrer do plano local ao internacional (e vice-versa).

Os debates travados em listas de discussão eletrônica são alguns dos exemplos mais vigorosos do potencial das novas tecnologias carreadas pela Internet para o fortalecimento das instituições e práticas democráticas. Em função das possibilidades que essas ferramentas oferecem à participação política descentralizada, há uma disputa teórico-conceitual em torno da existência de uma “esfera pública virtual” e da sua capacidade deliberativa para influenciar nas instâncias de decisão. Contudo, aspectos como a dispersão em ambientes digitais, as restrições de acesso e as limitações impostas pelo próprio modelo deliberativo inviabilizam tal assertiva (MARQUES, 2006; MAIA, 2008d).

A deliberação é vista como um processo aberto de discussão e reflexão no qual dois ou mais agentes avaliam as razões envolvidas em dada questão, expressam e consideram pontos de vista (MAIA, 2006, p.153). Esse processo envolve o compartilhamento de informações e opiniões, a confrontação de posicionamentos muitas vezes concorrentes e negociações justas para a tomada de decisões consensuais (HANSEN, 2013, p. 298). No plano ideal, a atividade

discursiva daí decorrente consegue conectar as esferas comunicativas formais e informais, nas quais diferentes atores estabelecem um diálogo capaz de promover a avaliação e a compreensão de um problema coletivo ou de uma questão de interesse geral (MARQUES, 2011, p. 20-21).

Para a constituição de uma esfera pública com fins decisórios é imprescindível levar em conta fatores como: livre troca argumentativa, universalidade e acessibilidade, respeito mútuo, igualdade de condições para participar, opinar e rever posicionamentos. O problema é que a Internet não cumpre plenamente esses requisitos (BUCHSTEIN, 1997) porque reproduz as diretivas mercadológicas e a apatia política expressas no aumento das estratégias de venda e consumo em prejuízo à autonomia dos indivíduos; na pouca reflexibilidade das situações de deliberação; na falta de respeito com as diferenças e na limitação para a revisão de posicionamentos; no monopólio que certos grupos fazem do debate (DAHLBERG, 2001).

Parece mais apropriado pensar esses ambientes digitais a partir da perspectiva da conversação civil, ao contribuírem de modo mais eficaz para a troca e a atualização de informações, o estímulo à reflexão e a formação complementar de opiniões do que para um espaço decisório em essência (MARQUES, 2006). Esses novos espaços discursivos podem funcionar como canais alternativos para fomentar a participação dos cidadãos, como ferramentas de apoio ao aperfeiçoamento das instituições democráticas e como reforço aos laços e ambientes sociais pré-existentes, “no sentido de abrir mais uma modalidade de comunicação que contribui para a formação discursiva da vontade” (Ibid., p. 181).

A conversação civil abre caminho para conferir maior poder de influência aos atores da “periferia”, que não dispõem de poder político-institucional, e contribuir para melhorar a formação cívica, embora com pouco impacto sobre a deliberação plena e a implantação das políticas públicas (MARQUES, 2006, p. 172). Essa perspectiva converge com a abordagem de Maia (2008d, p. 279), que se apoia nos fundamentos do discurso do quadro teórico habermasiano e do discurso prático para compreender as condições de deliberação, em uma dimensão cultural mais abrangente, para além dos interesses em competição, de modo a agregar a formação de preferências, convicções e opiniões.

Tais procedimentos, tomados numa perspectiva de debate público de longo prazo, “não seriam tão exigentes quanto o são no discurso singular”, que é o encontro dialógico único, aqui representado pelo ato da fala nas interações mediadas (MAIA, 2008d, p. 279). No entanto, há situações em que a Internet pode se comportar como esfera pública, em termos deliberativos-decisórios, normalmente quando os grupos atingidos por essa deliberação são

especializados e dedicados a uma temática específica (MARQUES, 2006), ou quando são politicamente mais engajados (MAIA, 2008d), como no caso dos movimentos sociais.

A discussão acerca da existência de uma “esfera pública virtual” está, por enquanto, centrada na atuação das instituições políticas tradicionais (partidos, parlamentos, governo etc), o que não se aplica diretamente à atuação das redes de movimentos sociais no ambiente digital. Conquanto o foco desta pesquisa seja o fortalecimento da ação coletiva e do ativismo por meio das apropriações tecnológicas, é importante enfatizar que a perspectiva da conversação civil contribui para entender a dinâmica da rede LGBT ao atuar, simultaneamente, nas esferas online/off-line para mobilizar a sociedade e agitar a opinião pública, de modo a influenciar em alguma medida o processo deliberativo.

Essa simultaneidade se expressa na compreensão da Internet como um novo espaço social que constitui as suas próprias relações e práticas, onde interesses e condutas existentes

off-line se ramificam e interligam com práticas existentes online, de modo que essas

experiências podem ser entendidas e analisadas de forma compartilhada (SLATER, 2002). Num contexto em que, com a disseminação das telecomunicações e da computação, as interações mediadas perpassam quase todos os ramos da vida, há uma dificuldade crescente de fazer essas distinções de forma clara, ao ponto de elas terem sido incorporadas como campo de estudo da Sociologia (Ibid.).

Slater (2002) propõe uma revisão da tradicional diferenciação entre a comunicação mediada por computador e a comunicação face a face, em que o online representaria a virtualidade ou ciberespaço e o off-line a realidade ou a vida real. Seu argumento central é que essas relações sociais são muito mais complexas do que a simples dicotomia predominantemente adotada e, em função da convergência tecnológica, o termo online acabou abarcando outros tipos de interações, como as estabelecidas via TV digital, smartphones, chamadas de vídeo e voz pela Internet. Portanto, é possível que essa distinção não faça mais sentido para as pessoas nos próximos anos (Ibid.).

Castells (2013) defende que há uma íntima conexão entre as “redes virtuais” e as redes da vida em geral. O chamado “mundo real” não é um mundo segregado ou dissociado que separaria a conexão online da interação off-line, mas, na verdade, um mundo híbrido de interações digitais mediadas e de interações não mediadas. É nesse mundo continuamente reticular, nas mais diversas dimensões da vida humana, “que os movimentos sociais em rede vieram à luz, numa transição – natural para muitos indivíduos – do compartilhamento de sua

sociabilidade para o compartilhamento de sua indignação, de sua esperança e de sua luta” (Ibid. p. 169-170).

Por conseguinte, as relações e as identidades se constroem e se reforçam nessas duas esferas. O potencial performativo da identidade online caracteriza as redes digitais como espaços onde essa mesma identidade pode ser construída, independentemente das limitações e constrangimentos das interações face a face. Livres dos entraves da copresença que os impedem de adotar as caraterísticas e os papéis da sua preferência, os indivíduos podem assumir uma representação correspondente à sua identidade socialmente aceita; construir uma identidade constante ou estável; e, ainda, optar pela segregação de diferentes dimensões identitárias, de modo a revelar informações ou disseminar conteúdos apropriados ao ambiente onde se encontram e a audiência com quem interagem (SLATER, 2002).