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A institucionalização das crianças e a sua legitimação social

Parte I – Enquadramento Teórico

2. O saber político-social, científico e pedagógico instituinte da Infância e da Educação

2.2. A institucionalização das crianças e a sua legitimação social

Como temos vindo a referir as novas configurações da sociedade e da família estão associadas a um novo “sentimento da infância” e ao surgimento das instituições de edu- cação infantil, na segunda metade do século XVIII. Esta foi a época em que a Revolução Industrial e consequente migração das populações das aldeias para os grandes centros urbanos; este acontecimento gerou grandes transformações que resultaram na inserção da mulher no mundo do trabalho. Sendo considerada mão-de-obra barata, a mulher, pas- sou a ter um papel activo no mundo fabril deixando de se ocupar exclusivamente do espaço domestico e dos cuidados então prestados às suas crianças. As mulheres passa- ram a trabalhar durante largas horas e não tinham com quem deixar as crianças. Para evitar que ficassem abandonadas em casa, surgiram, aos poucos, instituições que tinham por funções acolher e guardar, de uma forma assistencialista, os filhos desses operários. A preocupação da sociedade em proteger as suas crianças e a secularização das institui- ções na era Moderna levou a que a educação das crianças pequenas passasse a integrar um conjunto de políticas que passaram a visar a regulação das populações, através de processos de controlo e de normalização. «O fato de viver cai, em parte, no campo de controlo do saber e de intervenção do poder» (Foucault, 1987: 134).

Segundo Foucault, a mudança das relações entre adultos e crianças reflecte a substitui- ção do poder soberano, por uma nova forma de governar cujo grande objectivo passou a ser a necessidade de gerir a vida dos indivíduos, ou seja, a preocupação de agir directa- mente sobre e para a população. A atenção às taxas de natalidade, a preocupação com a prevenção da mortalidade e com o controlo dos fluxos populacionais, levou a que o Esta- do começasse a pensar a população como um sujeito com necessidades e aspirações e a família como um instrumento privilegiado que necessitava de regulação (Foucault, 1987).

A mudança do papel da mulher fez com que as funções da família se fossem mudando, gradualmente, e se instalasse uma nova compreensão das relações de parentesco a par de um significado diferenciado de infância. As novas práticas educativas, centradas na obediência, respeito e amor filial. As medidas reguladoras da vida da população fizeram emergir novos conceitos e práticas educativas e, a definirem espaços próprios para a educação das crianças.

Para Foucault as crianças passam a estar inscritas numa ordem de poder que, ao conce- bê-las como “cidadãs”, fabrica pautas de comportamento e de controlo que estão volta-

das para a sua normalização. Na sua perspectiva as instituições educativas respondem à necessidade de existirem aparelhos de coerção, próprios que através de processos de disciplinação que levassem as crianças a aprenderem, em grupo, regras de ver, sentir e agir. O corpo da criança passou então a constituir um foco de “poder-saber” que deveria tornar útil, produtiva e submissa.

A construção simbólica da infância desenvolveu-se, segundo o pensamento de Foucault com a necessidade de regulação das condutas dos sujeitos infantis, através da instituição de práticas educacionais voltadas para eles. Desde então a infância passou a constituir um objecto “conhecível”, sobre o qual se passou a ter vontade de conhecer e saber (cf. Foucault, 1987: 30).

Segundo o autor:

«temos que admitir que o poder produz saber [...]; que poder e saber estão directamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder. Essas relações de “poder-saber” não devem então ser anali- sadas a partir de um sujeito de conhecimento que seria livre ou não em relação ao sistema de poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objectos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do “poder-saber” e de suas trans- formações históricas.

É assim que na modernidade as crianças surgem como uma “população específica, que precisa de ser olhada e governada nos seus diversos contextos e particularidades” (Dor- nelles, 2005). Para elas passaram a ser criadas instituições próprias e sobre elas passa- ram a ser construídos diversos discursos disciplinares justificativos de «procedimentos de poder e de saber que tentam controlá-los e modificá-los» que dão forma e legitimidade à sua institucionalização (Foucault, 1987: 134).

Para Zão (1997, 18-36) a mudança no conceito de infância e de criança foi um processo moroso, construído e reconstruído entre o século XVII e o século XX, i) pelo discurso filo- sófico que via a criança como um ser inocente necessitando dos cuidados e protecção dos adultos consolidando, desta forma, o amor maternal e a consequente homogeneiza- ção do conceito da família e das relações existentes entre o casal e os seus filhos; ii) pelo discurso médico que via os cuidados maternais, de higiene e saúde, como a única forma de conservar as crianças dos malefícios e que, a par da ajuda médica se incentivavam o uso de novas práticas preventivas; iii) pelo discurso económico, assente na necessidade de se formarem homens produtivos, quer para a sociedade, quer para o apoio militar; iv) pelo discurso filantrópico-moralista que não só tem a ver com o prestígio social e poder político, da classe burguesa, mas também com a institucionalização de serviços de cari-

dade para apoio aos mais desfavorecidos e, v) pelo discurso psicopedagógico que come- ça a ver a criança como um ser privilegiado de estudo e conhecimento, onde, só a partir desse estudo se podem adoptar medidas preventivas.