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Alguns pontos de chegada e de partida na compreensão da realidade

Parte I – Enquadramento Teórico

4. Alguns pontos de chegada e de partida na compreensão da realidade

Nesta primeira parte pretendemos reunir alguns contributos teóricos que nos permitissem compreender o campo social e simbólico em que se inscreve o papel das Auxiliares Edu- cativas.

Como veremos adiante, embora o perfil e a carreira profissional do pessoal auxiliar este- jam formalmente definidas, nem todo o pessoal da rede pública e tão pouco o pessoal das IPSS’s está inserido nesta carreira ou recebe formação adequada para o desempe- nho desta profissão. No caso da rede pública, o Decreto-Lei n.º 515/99, de 24 de Novem- bro, incumbe mesmo a administração local de garantir o direito «à autoformação», atra- vés do desenvolvimento de parcerias com os Centros de Formação das Associações de Escolas.

Considerando que um dos efeitos pretendidos pela formação dos profissionais de educa- ção de infância é a desnaturalização das práticas informais de cuidado e educação das crianças, que são incorporadas através da socialização de género no espaço doméstico, pensamos que a lacuna de formação das auxiliares pode ter implicações na construção e desempenho do seu papel profissional. Questionamo-nos sobre o lugar que a sua forma- ção pessoal e social desempenha nas suas tarefas de cuidado e apoio às crianças que lhe estão entregues nos jardins-de-infância, em momentos críticos da vida diária, desig- nadamente no momento de separação dos pais, da aprendizagem de auto-cuidado na higiene e alimentação, na resolução de conflitos e na transição entre espaços físicos e de actividade orientados por diferentes agentes sociais etc.

Em que medida a falta de problematização e a relativa estranheza das concepções de infância e de educação, que foram construídas historicamente e reproduzidas através de práticas institucionais baseadas em saberes pedagógicos e científicos, lhes permite fun- damentar, diferenciar e especializar a sua acção (pedagógica) junto das crianças?

Tal como qualquer mudança, também as representações da infância não foram perspec- tivadas e concebidas, ao longo dos séculos, de forma linear, como nos dão conta, por exemplo, os trabalhos do historiador Philippe Ariès. Foi a análise de um conjunto de dados culturais medievais e renascentistas que permitiu a descoberta do momento em que passou a haver distinção entre crianças e adultos, nas sociedades contemporâneas. Esta distinção era inexistente nas sociedades medievais e como vimos a aparição da criança como categoria social só se veio a dar lentamente entre os séculos XIII e XVII

(Ariès, 1981) havendo diferenças entre os grupos sociais. Sem dúvida que a criança, de uma forma ou de outra, ocupou sempre um lugar, mas um por vezes obscuro dependen- do da concepção de criança que lhe estava subjacente.

Como vimos as grandes organizações internacionais tiveram um papel importante neste movimento de centração do olhar das sociedades sobre o mundo infantil, sobre os pro- blemas que podem afectar as crianças e sobre o que é desejável para a infância. Mas foi com a necessidade de se incentivar o crescimento do emprego feminino que os estados membros da União Europeia incitaram a criação de políticas sociais capazes de respon- der à necessidade das famílias. Esta tomada de posição partilhada pela OCDE teve por base uma análise ao atendimento à criança, em cada um destes países, e do qual, resu- midamente, demos conta.

A descentralização do atendimento à primeira infância em função das necessidades das populações locais decorreu da influência da OCDE. No entanto, embora esta organização tivesse aconselhado que as auxiliares educativas tivessem uma formação próxima quan- to possível à dos pedagogos ou educadores, para assegurar a continuidade educativa, a profissionalização deste grupo de pessoal auxiliar, que diariamente assegura um tempo de 7h/dia com as crianças, continua a estar por assegurar.

Sabemos que as sucessivas medidas implementadas a partir de 1977 vierem reconhecer a preocupação do Estado em investir no atendimento à infância.

A Lei n.º 5/97, de 10 de Fevereiro define o Estado como promotor da expansão de uma rede de educação pré-escolar, enquanto primeira etapa da educação básica» e como instância de financiamento e acompanhamento da componente educativa dos jardins-de- infância das instituições privadas de solidariedade social. Como aquelas medidas não respondiam a todas as necessidades, em 1997 surgiram novas medidas que determina- ram que os jardins-de-infância da rede pública, pudessem prestar um apoio num outro tempo designado de Componente de Apoio à Família sem, para o efeito ter criado regras específicas quanto ao seu funcionamento.

De facto, com estas medidas assistimos nas últimas décadas à expansão e consolidação uma rede nacional de educação pré-escolar, mobilizando todas as instituições, quer da rede pública, quer da rede privada, de modo a viabilizar o acesso e frequência de todas as crianças a uma educação pré-escolar de qualidade.

O tempo educativo de 5h/dia passou a ser gratuito e a orientar-se segundo os princípios enunciados naquela Lei. Quanto ao restante tempo, aquele que vai para além das 5h/dia,

continuou no entanto, a ser assegurado, de uma forma assistencialista que tem uma maior tradição nas instituições privadas. Por outro lado este outro tempo, o da componen- te sócio-educativa é em grande parte assegurado pelas Auxiliares da acção educativa a quem é exigida, como habilitação mínima, a escolaridade obrigatória. Embora o poder central tenha definido o perfil deste grupo profissional para a rede pública e tivesse incumbido o poder local a criar meios, não parece ter havido igual preocupação de garan- tir a formação deste grupo profissional nos dois segmentos, público e privado, da rede de educação pré-escolar.

Esta questão é problemática no domínio da organização escolar, onde se espera que as instituições educativas desenvolvam e promovam uma cultura de valores a par do desen- volvimento e da autonomia das crianças.

A Formação Pessoal e Social consta da Lei de Bases do Sistema Educativo como incen- tivo à formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários. Para a conse- cução destes objectivos a mesma Lei enuncia a necessidade dos seus profissionais, Educadores e Professores, terem de se valorizarem profissionalmente através da forma- ção continua.

Se, ao nível do pessoal docente a formação e as questões profissionais têm sido uma constante com vista à melhoria das suas práticas, no que diz respeito ao grupo de pes- soal Auxiliar constatamos a escassez de formação específica que é atenuado apenas pelas aprendizagens que vão adquirindo no dia-a-dia, pelo contacto com as Educadoras. Embora este contacto quotidiano lhes dê um outro entendimento e saber para lidar com as crianças, no tempo de acompanhamento das actividades educativas e sócio-educativa desenvolvidas pela educadora, pouco sabemos o que deste saber é apropriado por este grupos profissional, como disposição ou esquema de acção moral prática nos outros tempos.

Tanto as Orientações Curriculares quanto os demais documentos oficiais apontam a construção da autonomia e para a formação pessoal e social como objectivos da acção das Educadores de Infância. O que permanece oculto são estes outros agentes sócio- educativos, as auxiliares - que diariamente chegam a assegurar um período de atendi- mento de 7h/dia e que não possuem qualquer tipo de formação de base que lhes permita dar sentido à organização dos espaços, dos materiais, das rotinas e a regulação da acção social espontânea das crianças enquanto grupo.

Torna-se por isso necessário produzir elementos de reflexão que desafiem o olhar e o discurso sobre a acção quotidiana deste grupo profissional, cuja intencionalidade peda- gógica das suas práticas continua a ser definido pela sua própria subjectividade e recur- sos de formação pessoal e social que podem não ser sensíveis ao interesse superior da criança e ao seu nível de desenvolvimento pessoal e social das crianças.

Partilhamos com o sistema educativo actual a ideia de que o desenvolvimento de uma cultura de sucesso, que promova os valores da solidariedade, do desenvolvimento e da cidadania, só será possível se houver envolvimento de todos os seus actores, aqueles que diariamente lidam com as crianças e as acompanham nas diversas actividades edu- cativas ou sócio-educativas. Entre todos os actores escolhemos o grupo das auxiliares educativas, cuja acção pode permanecer ocultada pelo discurso estritamente pedagógico que tende a subestimar a existência dos tempos de transição e de outros tempos vividos no quotidiano das instituições, como tempos de interacção, de actividade, de aprendiza- gem e desenvolvimento e de formação pessoal e social entre adultos, entre adultos e crianças e entre as crianças.

Parte II – Opções e procedimentos