• Nenhum resultado encontrado

2.4 O problema da metafísica em Habermas

2.4.3 A insuficiência da metafísica tradicional

Partiremos da seguinte citação de Habermas em sua obra O Pensamento Pós- metafísico (HABERMAS, 1990).

Será que o desenvolvimento do pensamento filosófico trai, no início do nosso século, rupturas semelhantes às da pintura em seu caminho rumo à abstração, iguais às da música em sua passagem da oitava para o sistema dodecafônico, e idênticas às da literatura no momento em que rompe com as estruturas tradicionais? E mesmo que a filosofia – um empreendimento profundamente voltado à antiguidade e ao seu renascimento – tivesse aberto realmente suas portas ao espírito inconstante da modernidade, voltado à inovação ao experimento e à aceleração, poderíamos colocar uma outra questão, capaz de nos levar mais além: será que também ela é vítima do envelhecimento da modernidade, voltado à inovação, ao experimento e à aceleração, poderíamos colocar uma outra questão, capaz de nos levar mais além: será que também ela é vítima do envelhecimento da modernidade, como é o caso, por exemplo, da arquitetura? (HABERMAS, 1990, p.11).

A preocupação com a filosofia pós-moderna é evidente nesta passagem, mas como buscar uma universalização do pensamento - que sempre foi a preocupação da metafísica tradicional, ou seja, a razão daria unidade ao pensamento - sem recorrer à metafísica tradicional?

A questão é que a razão perdeu o seu papel unificador já com Hegel, e posteriormente com o desenvolvimento das ciências, visto que estas passaram a atribuir à razão uma função estritamente prática. Assim, a filosofia também se tornaria uma ciência como outra qualquer, sem possibilidade de nos fornecer uma verdade. Diante disso, Habermas procura recolocar a filosofia na contemporaneidade. Assim,

Na perspectiva do pensamento da unidade metafísica, o conceito de razão comunicativa, processual, parece demasiado tênue, uma vez que ele situa todo o conteúdo no terreno do contingente, levando até a pensar que a própria razão surgiu de modo contingente. Em compensação, uma perspectiva contextualista considera-o demasiado forte, porque no meio do entendimento através da linguagem as fronteiras de mundos tidos como incomensuráveis ainda se mostram permeáveis. O primado da metafísica da unidade perante a multiplicidade e o primado contextualista da pluralidade frente à unidade são cúmplices secretos. Minhas considerações caminham em direção à tese de que a unidade da razão não pode ser percebida a não ser na pluralidade de suas vozes, como sendo uma possibilidade que se dá, em princípio, na forma de uma passagem ocasional, porém compreensível, de uma linguagem para outra. E esta possibilidade de entendimento, assegurada apenas de modo processual e realizada de modo transitório, forma o pano de fundo para a variedade daquilo com que nos defrontamos na atualidade, sem que possamos compreendê-lo. (HABERMAS, 1990, p.152).

A partir desta passagem percebemos como Habermas tenta superar a metafísica tradicional e a filosofia moderna. Esta por sua vez ao tentar se libertar das questões insolúveis da metafísica tradicional, não manteve a unidade da razão. A metafísica tradicional, segundo Habermas, esbarra na solução dada ao problema do uno e do múltiplo. Como sabemos, no pensamento mítico havia uma convivência simultânea entre o uno e o múltiplo, que formavam um todo de oposições e semelhanças expresso através de entrelaçamentos narrativos.

Habermas nos mostra que existe uma linha tênue entre uno e múltiplo e os conceitos das grandes religiões.

Pois se por um lado estas interpretam a unidade sob uma perspectiva ético- salvífica, por outro os filósofos, mesmo na direção do pensamento que leva do mythos ao logos, ficam presos ao conceito contemplativo de verdade, que carrega um forte componente ético religioso: bios theoretikos. (LIMA, 1999, p.23).

Habermas (1990) nos apresenta três questões que a filosofia das origens não conseguiu resolver. A primeira questão consiste em entendermos como o uno pode representar o múltiplo diante da multiplicidade do universo, pois se assim o for, a razão, na tentativa de estabelecer esta unidade, se funda em uma espécie de irracionalidade. A segunda questão gira em torno do problema da individualidade não divisível, ou seja, dada a pretensão do idealismo em reduzir tudo ao uno, reconduzindo-o a um patamar de fenômenos ou imagens, este idealismo mantêm a singularidade e individualidade deste uno? O particular não deixa de existir após ser reduzido ao uno. Desta forma, por mais que se criem conceitos que dão um caráter de unidade a um determinado grupo de coisas ou eventos plurais, o particular não deixa de existir, porque os seus acidentes os diferem dos demais objetos. A terceira questão surge como consequência da segunda:

No seio do próprio movimento do pensamento metafísico nasce um terceiro motivo da crítica à metafísica, a saber, a suspeita de que todas as contradições se condensam no venerável conceito de matéria: este forma como que proposição básica do pensamento afirmativo. Será que podemos determinar a matéria – a qual os entes no mundo devem sua finitude, sua concreção no tempo e no espaço, sua consistência – de modo puramente negativo, como sendo o não-ente? Não seria necessário talvez pensar aquilo no qual as ideias são imaginadas e no qual devem empalidecer assumindo a forma de fenômenos, como sendo um princípio que flui contra o inteligível – não apenas como privação, como resíduo que sobra após a retirada de todo o ser determinado e de todo o bem, mas como força de negação ativa, capaz de produzir o mundo das aparências e do mal? Suposto o primado do uno, que tudo precede e que está na base de tudo – por que existe então o ente e não antes o nada? A questão da teodicéia constitui apenas uma variante prático moral: suposto o primado do bem, do qual tudo se deduz, como se explica então a entrada do mal no mundo? Em 1804 e novamente em 1809 ( no seu tratado sobre a liberdade humana), Schelling ainda esgota suas energias nestas questões. (HABERMAS, 1990, p.159)

Kant, em seu criticismo tentou superar essas aporias. Ele parte da análise da razão dando à ela um novo conceito. O funcionamento da razão se assemelha ao funcionamento das ciências, visto que a razão não está submetida às leis que regem a natureza, mas é a legisladora destas leis. Logo, a multiplicidade das representações, que se originaram nas intuições, é sintetizada por meio de um conceito segundo as regras do entendimento.

Kant parte do princípio de que as ideias da razão no contexto do mundo fenomênico servem apenas como princípios que regulam o uso do entendimento com vista ao conhecimento sistemático, ao progresso do conhecimento. Desta forma, Kant resolve o problema do pensamento da identidade do uno e do múltiplo, porém não responde à questão dos dois mundos, da individualidade do individual que, subsumido no conceito transcendental do conhecimento, depara-se com uma natureza interior tão estranha quanto a exterior.

Ora, Hegel tentará superar essa dualidade, partindo do princípio de que a razão tem esse poder de agente conciliador. A inovação de Hegel consiste em lançar a história para o interior da filosofia, pois até então o pensamento metafísico só se compreendia a partir de um ponto de vista cosmológico. Então, a síntese hegeliana se dará dentro da história. Entretanto, essa nova perspectiva hegeliana seria questionada por Habermas.

Através da consciência histórica, Hegel colocou em jogo uma instância, cuja força subversiva põe em risco a própria construção. Uma história que assume em si o processo de formação da natureza e do espírito e que tem de obedecer às formas lógicas da auto-explicação deste espírito, sublima-se a si mesma colocando-se num nível oposto ao da história (...) será que uma história com passado comprovado, com futuro pré-decidido e com presente pré-julgado, continua sendo história? (HABERMAS, 1990, p.166).

Habermas identifica no pensamento contemporâneo uma renuncia à metafísica. Para Habermas essa renúncia se justifica pelo avanço das ciências da natureza. Entretanto, para Richard Rorty o nosso distanciamento em relação à metafísica foi,

...a perda da fé em nossa capacidade de advir com um conjunto único de critérios, que todas as pessoas em todos os lugares e tempos possam aceitar, de inventar um jogo de linguagem singular que possa de algum modo

controlar todos os trabalhos feitos por todos os jogos de linguagem já desempenhados. Mas a perda dessa meta teórica mostra meramente que um dos temas secundários menos importante da civilização ocidental – metafísica – está no processo de encerramento das atividades. (RORTY, 1997, p.289).

Neste plano, para Habermas o que sobressai é a visão histórica, cujas intenções de finalidade e unidade do conhecimento é reduzida pelo saber do contexto do intérprete e do narrador. Esse contexto é descrito assim:

Parece que a apropriação hermenêutica e a atualização narrativa daquilo que é transmitido (ao contrário do que se dava com o saber nomológico) não se encaixam sem mais no imperativo heurístico de uma descrição unitária da realidade. Em todo o caso, o historicismo procurou localizar o saber contextual do intérprete e do narrador no âmbito de uma pluralidade que escapa às pretensões de objetividade e de unidade do conhecimento. Surgem agora, principalmente na Alemanha, concepções dualistas da razão, não partindo mais simplesmente do cosmos, mas também da subjetividade, diluindo-se num ideal metódico, que deve valer somente para as ciências da natureza; ao passo que na auto-compreensão historicista das ciências do espírito supõe-se a existência de uma pluralidade livre de toda síntese, que leva forçosamente ao relativismo. (HABERMAS, 1990, p.167).

Assim, apesar de Habermas partir de uma perspectiva contextualista que confere com a de Rorty e Putnam, pois Rorty valoriza a intersubjetividade do conhecimento e do consenso por meio da linguagem, ou seja, a objetividade é substituída pelo consenso entre os indivíduos, a crítica que Habermas faz a Rorty consiste em que este considera que não é necessário elevar o mundo da vida a um nível transcendental que possibilite uma comunidade ideal intersubjetivamente comunicativa. Essa posição habermasiana concorda com a posição de Putnam, pois de acordo com a leitura de Habermas, Putnam abre a possibilidade de uma necessidade de um conceito idealizador da verdade ou da validade em geral.

Segundo Habermas (1990), se estamos imersos em uma discussão e a mesma nos possibilita um “mar” de incertezas, faz-se necessário a presença de estruturas do entendimento linguístico que permitam dar validade aos argumentos dos participantes. É isso que

caracteriza a teoria habermasiana, sobre as condições de consenso entre os falantes, seu caráter transcendental.