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A questão da verdade e da justificação em Habermas e sua crítica a Richard Rorty

3 VERDADE, JUSTIFICAÇÃO E DEMOCRACIA: UM DIÁLOGO POLÍTICO

3.1 A questão da verdade e da justificação em Habermas e sua crítica a Richard Rorty

A intenção de Rorty em desenvolver uma nova filosofia vai ao encontro ou pelo menos coincide com a tentativa desempenhada por Hume e Kant no período moderno. Neste período, estes dois filósofos identificaram as insuficiências da filosofia tradicional no sentido de que esta não se desenvolvera e não tivera capacidade de resolver seus próprios problemas.

Rorty também identificou problemas, como por exemplo, a incapacidade da filosofia tradicional em resolver simultaneamente as necessidades teóricas, estéticas e morais, isto é, tanto Hume quanto Kant, segundo Rorty, também não conseguiram suprir as insuficiências da filosofia tradicional. Em sua obra The linguistic Turn (Rorty, 1992) é tão definitiva a sua despedida do pensamento metafísico que ele não deixa nenhuma possibilidade para um pensamento pós-metafísico ulterior. Para Rorty, a metafísica perdeu a validade de seus juízos e conteúdo. Até a filosofia analítica é deflacionada no pensamento de Rorty, pois para ele, desenvolver teorias e mais teorias sobre a linguagem também é fazer metafísica.

Em sua obra intitulada Filosofia e espelho da natureza (Rorty, 1995), Rorty propôs concluir a virada pragmática, e tornar evidente que é possível conhecer sem contar com o realismo platônico, isto é, conhecer a partir de um ponto de vista anti-realístico.

A filosofia mentalista, alvo das críticas de Rorty, nos mostra que temos acesso ao conhecimento quando refletimos para as nossas próprias representações. Isso nos possibilita um acesso privilegiado às nossas vivências e também permite conhecermos os nossos estados mentais melhor do que tudo o mais, na medida em que o conhecimento se efetua essencialmente no modo da representação de objetos, e que a verdade dos juízos se apóia em evidências que garantem a certeza.

Entretanto, Rorty critica a filosofia mentalista partindo de uma análise linguística. Ou seja, não existe a possibilidade de considerarmos uma expressão linguística apenas como função mediadora das nossas representações, pois não há experiências não-interpretadas a que se tem um acesso apenas privado, e conhecer os objetos não é suficiente para sabermos a respeito de estados de coisas proposicionalmente articulados. Logo, enquanto a representação

de estados de coisa e a representação de objetos forem compreendidos como uma relação de dois termos, o “espelho da natureza” continuará prevalecendo. Assim, para Rorty:

O mundo objetivo não é mais algo a ser retratado, mas apenas o ponto de referência comum de um processo de entendimento mútuo entre membros de uma comunidade de comunicação, que se entendem sobre algo no mundo. Os fatos comunicados não podem ser separados do processo de comunicação, assim como não se pode separar a suposição de um mundo objetivo do horizonte de interpretação intersubjetivamente compartilhado, no qual os participantes da comunicação desde sempre se movem. O conhecimento não se reduz mais à correspondência entre proposições e fatos. É por isso que apenas a virada linguística, coerentemente conduzida até o fim, pode superar de uma só vez o mentalismo e o modelo cognitivo do espelhamento da natureza. (RORTY, 1995, p. 287)

Diante disso, a investigação de Habermas consiste em saber se Rorty fez de maneira correta a radicalização da virada lingüística. 27

3.1.2 Problemas interpretativos de Rorty sobre o contextualismo

Para Rorty, é desnecessário pensarmos em uma metaprática, ou seja, fazer metaprática é procurar um fundacionismo, e fundacionismo é o mesmo que justificação.

Rorty identifica que o contextualismo nos mostra a vã tentativa de busca pela fundamentação de uma verdade. Para ele existiram três paradigmas na história da filosofia: a metafísica, a teoria do conhecimento e a filosofia da linguagem. A descontinuidade presente nestas correntes não se justifica por uma estar mais correta que a outra, mas por uma simples questão de uso, ou seja, as questões colocadas por Aristóteles não despertaram o mesmo interesse em Descartes. Isso também valeria para a objetividade do conhecimento, pois este é garantido pela confrontação com o mundo, ou seja, o que está “lá fora” representa fielmente, no interior da minha subjetividade, o que está “aqui dentro”. Desta forma, o sentido do termo

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BORGES, I. B. Transformação da teoria crítica. A conversão de Habermas ao paradigma discursivo. Uberlândia, Edufu, 2010.

“confrontação” consiste no surgimento de uma confrontação entre os sujeitos, visto que, cada um possui sua forma individual de enxergar o mundo.

Assim, Rorty propõe que a objetividade da experiência seja substituída pelo entendimento mútuo, isto é, a inter-subjetividade do mundo da vida, habitado em comum pelos sujeitos, toma o lugar da objetividade do mundo. Essa visão contextualista da virada linguística proposta por Rorty gera um problema no interior de sua própria filosofia, e Habermas o identifica com precisão. Ou seja, Rorty prega uma descontinuidade entre paradigmas desconsiderando também os processos de aprendizagem que se estendem de um paradigma a outro. A falha de Rorty aqui é em desconsiderar a sucessão de paradigmas como um encadeamento dialético.

Retomando novamente à questão do mentalismo, este surge a partir do nominalismo, que destituiu a “coisa” de toda a sua essência. Desta forma, o mentalismo propõe que conhecer a “coisa” é refletir internamente sobre ela.

Se o sujeito cognoscente não pode mais retirar da natureza destituída de qualidades os critérios do conhecimento, ele deve extraí-los da própria subjetividade explorada de modo reflexivo. A razão objetivamente corporificada nas ordens da natureza recolhe-se no espírito subjetivo. Com isso, o em-si do mundo transforma-se na objetividade de um mundo dado para nós, os sujeitos – um mundo de objetos representados, ou que se manifestam. Enquanto a estrutura do mundo em-si possibilitara, até então, uma correspondência dos pensamentos com a realidade – juízos verdadeiros -, a verdade dos juízos devia agora medir-se por sua gênese na certeza de vivências evidentes. O pensamento representativo leva a um conhecimento objetivo na medida em que apreende o mundo fenomênico. (HABERMAS, 2009, p. 239)

Habermas salienta que isso gerou o ceticismo moderno, isto é, se a realidade se apresenta para nós e nós somos quem a define, e estas definições por seu caráter subjetivo se diferenciam, até que ponto o que está lá fora existe verdadeiramente?

Se essa dúvida é garantida pela correspondência entre representação e mundo, e por mais que mudem os paradigmas, essa relação prevalece; a questão que surge é saber como fundamentar para que passe a existir uma concordância entre nossas diferentes interpretações

do mundo. E essa questão deflagrou o conflito epistemológico entre o idealismo e empirismo, ou seja, conhecemos o mundo a partir do que é exterior a nós, ou a partir do que é interior a nós?

Habermas nos mostra que esse impasse epistemológico é resolvido no século XIX com a filosofia da linguagem. A razão não está situada na consciência, mas na lingugem pela qual os sujeitos se intercomunicam. Observe que temos dois momentos: o momento anterior e o posterior à virada linguística. No momento anterior, temos que a validade de opiniões era o resultado de uma convergência entre representações subjetivas semelhantes, e o acordo interpessoal se dava pela ancoragem ontológica dos juízos verdadeiros comuns aos sujeitos cognoscentes. Entretanto, a partir da virada linguística temos a necessidade de linguagem comum entre os sujeitos, isto é, o termo “intersubjetivo” não é mais no sentido de convergência de representações de diferentes sujeitos, mas a uma compreensão prévia de que todos habitam em um mundo que deve ser entendido como comum à todos.