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O planejamento urbano deve ser concebido como uma engrenagem, onde os instrumentos utilizados para a realização do plano urbanístico sejam previstos de forma coerente, sendo estabelecidos limites precisos para a sua incidência. Os instrumentos não precisam necessariamente ser utilizados isoladamente para atingirem um determinado fim, o qual pode ser alcançado através da interação de mais de um instrumento.

No entanto, a falta de articulação entre os instrumentos pode inviabilizar ou dificultar a aplicação de outros, ocasionando conflitos quando de sua aplicação simultânea com os demais instrumentos, supervenientes aos problemas específicos dos próprios instrumentos. Cada um deles, portanto, deve ser pensado de forma a interagir com os demais, de maneira complementar e não concorrente.

Segundo Furtado (2006),

a problemática ganha contornos mais evidentes quando se percebe que não há ainda conhecimento acumulado dos diversos papéis que cada instrumento pode cumprir na elaboração e implementação de um projeto urbanístico, e menos ainda na organização de vários projetos no âmbito da política urbana municipal como um todo. (p. 9)

As próximas seções tratam da relação e dos conflitos entre a TDC e a Outorga Onerosa do Direito de Construir e a relação e os impasses entre os fins estabelecidos pelo Estatuto da Cidade e os institutos jurídicos, como a Desapropriação, as áreas non aedificandi, o Tombamento e a Usucapião.

Apesar do recorte quanto às questões a serem tratadas nesse trabalho, existem outros instrumentos que podem ter alguma relação com a TDC, mas aqui nos deteremos às questões propostas para este trabalho. A interação da TDC com outros instrumentos como Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e a incidência ou não do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) não devem, entretanto, ser desconsiderados.

As implicações do potencial construtivo em outra área que não aquela de sua origem poderiam ser previamente mensuradas antes da concessão da transferência, através do EIV. O PDDUA/1999 de Porto Alegre traz uma indicação quanto a essa possibilidade, ao determinar a avaliação das repercussões na infra-estrutura, na estrutura urbana, no ambiente e os impactos ambientais em relação à paisagem quando da utilização da TDC.98

Não se podem também desconsiderar as discussões a respeito da cobrança ou não de impostos ou taxas sobre as operações de TDC. A legislação de Belo Horizonte prevê a cobrança de ITBI sobre as transações de TDC.99 Em Salvador, não incide qualquer imposto sobre as operações de TDC. No entanto, vem sendo avaliada a aplicação do Imposto de Transmissão Intervivos sobre essas transações. e a administração municipal de Curitiba entende que caberia a cobrança de uma espécie de taxa de expediente.

Já técnicos da administração municipal de Porto Alegre entendem não caber a cobrança de impostos sobre a TDC, sob dois argumentos. O primeiro diz respeito à não previsão da cobrança de ITBI sobre as transações de TDC pela lei tributária federal, cuja iniciativa legislativa é privativa da União. Além disso, a legitimidade da cobrança poderia ser questionada em virtude da imaterialidade do direito sobre o potencial construtivo.

4.1 A TDC E A OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR

A aplicação simultânea da TDC e da Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) tem-se dado em meio a conflitos em alguns municípios brasileiros, como atentam os resultados da pesquisa Outorga Onerosa do Direito de Construir: panorama e avaliação de experiências municipais (Furtado et alli, 2006a) Dentre as 12 (doze) cidades pesquisadas que utilizam o instrumento da OODC, 11 (onze) delas contam com a previsão da TDC, sendo verificados efeitos negativos da superposição destes instrumentos em 6 (seis) delas (Blumenau-SC, Curitiba-PR, Florianópolis-SC, Goiânia-GO, Porto Alegre-RS e Salvador- BA)

98 Porto Alegre, PDDUA, Lei nº 434/1999, art. 64 - Os Empreendimentos de Impacto Urbano deverão observar:

[...] § 4º. A Transferência de Potencial Construtivo dentro da área do projeto deverá avaliar as suas repercussões na infra-estrutura, na estrutura urbana, no ambiente e especialmente os impactos ambientais em relação à paisagem.

99 O Decreto n º 8766/1996, que regulamenta a Lei nº 6706/1994, em seu art. 5º, § 2º, condiciona a autorização

da TDC ao recolhimento prévio do ITBI - Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis por Ato Oneroso Intervivos, nos termos da Lei nº 5492/88.

Técnicos das administrações municipais buscam, com a revisão dos Planos Diretores, identificar medidas para enfrentar os efeitos negativos da superposição desses dois instrumentos. Algumas administrações municipais já se demonstram conscientes quanto ao conflito e explicitam a preocupação diante desse problema em legislação municipal.100

Inicialmente, para a melhor compreensão do tema a ser discutido nessa seção, apresenta-se uma breve explanação sobre o instrumento da OODC, ou Solo Criado101, antes da discussão específica sobre os conflitos na aplicação dos instrumentos.

O Estatuto da Cidade traz, no art. 28, § 1º, a previsão da aplicação da Outorga Onerosa do Direito de Construir ao determinar que “o plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário”, definindo que o coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e a área do terreno.

No § 3º do mesmo artigo é determinado que o plano diretor deverá fixar os coeficientes máximos, até os quais poderá ser exercido o direito de construir, mediante o pagamento da contrapartida, cuja instituição deverá ser limitada pela capacidade da infra- estrutura e pelo aumento de densidade esperado em cada área. É facultado aos municípios, através de seus Planos Diretores, fixarem coeficiente único para toda a zona urbana ou diferenciados para áreas específicas dentro da zona urbana.

São definidas pela lei federal as hipóteses para a aplicação dos recursos auferidos pela adoção da OODC: I – regularização fundiária; II – execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; III – constituição de reserva fundiária; IV – ordenamento e direcionamento da expansão urbana; V – implantação de equipamentos urbanos e comunitários; VI – criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; VII – criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; VIII – proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico.102

100 A exemplo, o Plano Diretor Participativo de Santo André (Lei nº 8696, de 17 de dezembro de 2004) traz a

preocupação com essa relação, indicando que “o impacto da concessão de outorga de potencial construtivo adicional e de transferência do direito de construir deverá ser monitorado permanentemente pelo Executivo, que tornará públicos, anualmente, os relatórios de monitoramento.” (art. 130)

101 Alguns municípios utilizam a denominação legal de ‘Solo Criado’ para instrumento que atende ao desenho

básico da OODC previsto no Estatuto da Cidade.

São condições básicas para a utilização da OODC a determinação da fórmula de cálculo específica para cobrança da contrapartida pela lei municipal e dos casos passíveis de isenção do pagamento da outorga.103 A fórmula de cálculo para a cobrança da contrapartida da OODC surge como um mecanismo para garantia da previsibilidade quanto ao montante do pagamento devido.

Em se tratando da OODC e da TDC, apresenta-se na próxima seção uma breve apresentação da relação entre os instrumentos e os coeficientes de aproveitamento, para em seguida apresentar os efeitos negativos da aplicação simultânea.

4.1.1 Os índices de edificabilidade: coeficientes de aproveitamento máximo e básico

Uma vez possível a utilização de ambos os instrumentos numa mesma área e/ou num mesmo imóvel, nesta seção serão discutidas as possíveis situações entre a OODC e a TDC e da utilização dos instrumentos em relação aos coeficientes de aproveitamento máximo e básico.

Como já apresentado na seção anterior, a cobrança da OODC incide sobre o potencial construtivo entre o coeficiente de aproveitamento máximo (CM) e o coeficiente de aproveitamento básico (CB).

Porém, ao tratar da TDC, o Estatuto da Cidade não faz qualquer menção ao coeficiente de aproveitamento básico (CB) ou ao coeficiente de aproveitamento máximo (CM). Portanto, não há definição legal, ao nível federal, quanto ao montante de potencial construtivo passível de ser transferido: se aquele potencial até o coeficiente básico ou aquele até o limite máximo.

Há municípios onde é opcional ao proprietário escolher entre a utilização de um dos instrumentos. Nos quatro municípios pesquisados, a lei não proíbe a acumulação da TDC e da OODC no mesmo imóvel.

Existem, inicialmente, duas situações a serem consideradas quanto ao limite do potencial construtivo passível de ser transferido. Em casos de autorização legal para a utilização da OODC e da TDC num mesmo imóvel, a lei poderia autorizar ao proprietário adquirente do potencial adicional utilizá-lo de acordo com as situações seguintes.

As Situações I e II dizem respeito à origem do potencial construtivo a ser transferido. Situação I – O potencial construtivo passível de transferência seria aquele relativo à edificabilidade entre o coeficiente de aproveitamento máximo e o coeficiente de aproveitamento do prédio existente, que tenha sofrido algum tipo de restrição.

Situação II - Somente seria possível transferir o potencial construtivo até o limite do