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CAPÍTULO III – Hermenêutica

3.2. A interpretação como técnica e como filosofia

A interpretação quer seja como técnica ou como filosofia, adentra campos tradicionais ou contemporâneos e supõe um esforço para explicar e compreender, atribuir sentidos, ler o mundo e a si em contextos, que, por sua vez, configuram atos criativos à tarefa hermenêutica.

Na literatura consultada, há comprovada polêmica entre os autores ao considerar a interpretação como técnica psicológica dissociada dos pressupostos filosóficos e, outros, a defender similaridades entre os conceitos, incluindo até aspectos das perspectivas psicológicas citadas nas teses apontadas no subitem 3.1. Nesse sentido, tecem certas coincidências e destecem certas semelhanças que por certo existem entre os conhecimentos hermenêuticos e os psicológicos na temática.

Para Schleiermacher (s.d., citado por Perea, 2011, para. 17) “La interpretación

psicológica hace posible la reconstrucción adecuada de todo acto creador, teniendo en cuenta la transposición y equiparación previa con el autor".

Nesse sentido, constrói fundamentação epistemológica para as ciências do espírito, analisando as estruturas psicológicas e as referências vitais em contextos de experiência histórica. Considera a psicologia fundamental para compreender e interpretar as ciências do espírito, cujo objeto é a realidade psíquica e o método é a introspecção.

Para Dilthey (1978, citado por Perea, 2011), a concepção psicológica do compreender se define como "análisis y descripción de un nexo que se nos da siempre

de modo originario, como la vida misma" (para. 32) e, na estrutura da vida psíquica se

encontra o fundamento das verdades particulares. A vivência da realidade "se halla en

condición unitaria de la vida y del conocimiento" (para. 32). Assim, não pode existir

separação entre psicologia e hermenêutica.

Gadamer (1963, citado por Perea, 2011), por sua vez não estabelece a mesma relação que Scheleiermacher, ou seja, para interpretar não se entra na constituição psíquica do autor, tal qual a teoria do ato adivinhatório, e, sim, olha-se na perspectiva histórica (tradição, valores, etc.) em “diálogo com o texto” numa perspectiva da história e do contexto singular, numa fusão de horizontes. O leitor interpretará consoante sua “pré-compreensão”, ou seja, os elementos que pressupõe a sua compreensão, referenciados na sua realidade histórica e inserção contextual.

Ricoeur (1965; 1969) apresenta a relevância desta problemática em duas obras, principalmente: Da interpretação: ensaios sobre Freud (1965) e O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica (1969).

Essa interpretação narrativa da teoria psicanalítica implica que a história de uma vida procede de histórias não contadas e recalcadas na direção de histórias efetivas que o sujeito poderia assumir para si e ter por constitutivas de sua identidade pessoal. É a busca dessa identidade pessoal que garante a continuidade entre a história potencial ou incoativa e a história expressa pela qual nos responsabilizamos. (Ricoeur, 2010, p. 128).

No campo da psicologia, a interpretação configura técnicas dentro das distintas abordagens que lhe atribuem centralidade ou papel complementar nos procedimentos clínicos, por exemplo, a interpretação é considerada por muitos autores a principal ferramenta da técnica psicanalítica: “Seria geralmente admitido que uma importante parte da técnica psicanalítica seja a interpretação e é o meu objetivo aqui estudar mais uma vez esta parte particularmente importante do que fazemos.” (Winnicott, 1991); “A interpretação está no centro da doutrina e da técnica freudianas. Poderíamos caracterizar a psicanálise pela interpretação, isto é, pela evidenciação do sentido latente de um material”. (Laplanche & Pontalis, 1980, p. 319).

Nesse caso, o discurso (fala) do analisando “se inscreve” na “escuta” especializada do psicanalista que interpreta o “material clínico” (fala, sonhos, sintoma, desenhos projetivos, jogos de areia (sandyplay)), etc., na perspectiva do referencial teórico preferencial.

Tais técnicas interpretativas receberam (e recebem) continuamente críticas reformulativas em seus pressupostos epistemológicos, atitudinais e comportamentais, configurando em si um estudo à parte, o que resulta estilos diferentes de interpretar até mesmo dentro da mesma abordagem.

Decorre que, de Freud aos pós-freudianos, interpretações diferentes da teoria psicanalítica e da própria “interpretação” promovem deslocamentos e novas configurações à técnica interpretativa na análise. Para ilustrar, dentre os tipos de interpretação psicanalítica, fala-se de interpretação histórica, atual, transferencial, extratransferencial e completa.

A interpretação transferencial diz respeito à relação do paciente com o analista e pretende elaborar o conflito primário, por meio da intensificação da neurose de transferência. A extratransferencial diz respeito à relação do paciente com outras pessoas, geralmente pais e irmãos, que liga conflitos atuais com conflitos do passado. (Eizirik, 2005; Cordiolli, 2008).

Uma interpretação atual inclui o entendimento do aqui e agora, e, a interpretação histórica, busca o funcionamento do paciente e a sua relação com o passado, na tentativa de uma reconstrução da história do desenvolvimento da personalidade do paciente. (Cordioli, 2008).

Etchegoyen (1987) conceitua a interpretação completa como a que deve integrar todos os níveis que o material trazido à análise oferece: conflito infantil, conflito atual e transferência.

Em resumo, a interpretação histórica e a atual se referem à teoria do conflito, ao passo que as interpretações transferenciais e extratransferenciais estão relacionadas à teoria da transferência e visa explicitar elementos desse mecanismo psíquico do paciente no processo de análise. A interpretação histórica tenta recuperar e trazer para o consciente pulsões, desejos e acontecimentos reprimidos. A interpretação atual é aquela que tenta explicar os conflitos atuais em suas associações com os do passado.

O objetivo principal da interpretação é o insight. Por meio da convergência e da inter-relação de diversos insights parciais é que ocorre a elaboração psíquica e,

consequentemente, aquisiçaõ de verdadeiras mudanças caracteriológicas. (Zimernan, 2004).

De acordo com Laplanche e Pontalis (1980), interpretar significa fazer emergir (ou liberar, desembaraçar) pela investigação analítica o sentido latente na fala e nas condutas de um sujeito e um segundo significado se refere ao que o analista comunica ao paciente e que faz que ele tenha acesso ao sentido latente.

Freud teorizou a técnica da interpretação primeiro na obra “A interpretação dos sonhos” (Freud, 1900), relacionada à investigação do sentido latente que subjaz o conteúdo manifesto do sonho, relatado pelo paciente na sessão de análise. O objetivo da interpretação seria então explicitar o conflito defensivo ligado ao desejo inconsciente presente no sonho, de forma latente. Na sequência dos estudos, Freud expandiu a técnica interpretativa para abranger as diversas formações do inconsciente – atos falhos, lapsos, chistes, etc. pelas associações livres (outra técnica psicanalítica) do paciente. (Laplanche & Pontalis, 1980).

Zimernan (2004) destacou que a interpretação percorreu três caminhos no percurso da prática e da teorização: 1o. Via de acesso ao inconsciente; 2o. Interpretação sistemática no “aqui-agora-comigo” da neurose de transferência; 3º. Na atualidade, não está sendo entendida como apenas a repetição do passado – outros fatores são considerados, inclusive a pessoal real do analista.

Seguindo os inúmeros trabalhos escritos sobre a técnica interpretativa na análise, a tarefa/papel da interpretação, para além das mutações em relação ao que se interpreta (insight, significado, sugestão, informação, transferência, história, etc.) se fundamenta nas possibilidades que o discurso e a escuta associativos contribuem tanto para os objetivos específicos do trabalho clínico em si, como para as descobertas clínicas que subsidiam a epistemologia psicanalítica.

Com relação ao ponto explicação-compreensão, objeto constante das reflexões da hermenêutica moderna e contemporânea, voltado para a técnica interpretativa nas psicoterapias, as certezas iniciais de Freud era de que a cura vinha como consequência da explicação – decifrado o enigma, o conteúdo latente, etc., dava-se a cura e o desaparecimento do sintoma.... na possibilidade de livrar-se desta repressão, de modo a

permitir que parte do material psíquico inconsciente se torne consciente e privá-la assim de seu poder patogênico... interpretar um sonho implica em atribuir a ele um sentido – isto é, substituí-lo por algo que se ajuste a cadeia de nossos atos mentais como um elo dotado de validade e importância iguais ao restante. (Freud, 1900, 1911, citado por Laplanche & Pontalis, 1980, pp.319-320).

Estudos posteriores confirmaram os limites da explicação para esse propósito, ampliando os conceitos e inserindo-os em debates, intra e interdisciplinar, que envolve a teoria, a formação do terapeuta e o manejo da técnica na prática no que concerne ao processo, ao paciente e ao terapeuta.

Nesse aspecto, a interpretação teve seu momento no qual muitos analistas somente faziam “interpretações clichês”, sem ter em conta o momento do paciente ou o seu humor, estado de ânimo e ou a sua necessidade de escutar tal interpretação. A interpretação era mais uma necessidade do analista (ou imposição de seu supervisor) movidos por um “furor interpretandis” que os convencia da produtividade da sessão pelos efeitos que tais interpretações produziam no paciente. (Nelken, 2010).

Em outro momento, a técnica de interpretar é manejada nos limites do material verbalizado e para além dele, conforme ensina Winnicott (1991):

A palavra “interpretação” implica que estamos usando palavras e há uma implicação maior que é que o material trazido pelo paciente é verbalizado.... Também é reconhecido hoje que grande parte da comunicação do paciente para o analista não é verbalizada.... Isso pode ter sido percebido por primeira vez em termos dos matizes do discurso e as várias maneiras nas quais o discurso se envolve, muito mais do que em termos do significado das palavras usadas. Gradualmente, os analistas se encontraram interpretando os silêncios e os movimentos e uma variedade de detalhes comportamentais que estavam fora do domínio da verbalização. (Winnicott, 1991).

A técnica de interpretar que ocorre na prática psicoterápica contemporânea corresponde então a uma filosofia, no sentido de um conhecimento de vida, de sabedoria, de tradição histórica que precisa estar subunida ao ato interpretativo, que abrange também a atitude e o comportamento humano e ético. A técnica direciona o ato para um lugar, faz referência a um contexto, a um objetivo, a uma teoria. A filosofia

moderna, contemporânea, dialética sustenta, acompanha, avalia, com a atitude filosófica de pensar, refletir, criticar para compreender para além de explicar.

Conhecer o outro já não é só acumular informações, sempre mais completas sobre um estranho e sobre os seus costumes, mas é participar na elaboração de um conhecimento comum, o que Ricoeur denominaria de “universais em contexto” (1991), um conceito que implica abertura e troca, em que as convicções são convidadas a elevar-se acima das convenções e aí os universais seriam reconhecidos assim, o universal remeteria para uma percepção de uma existência. (Jardim, 2002, p. 47).

Para Ricoeur, a existência que a psicanálise descobre é a do desejo que é revelada principalmente numa arqueologia do sujeito (hermenêutica freudiana do símbolo na dupla função de esconder e revelar) – porém, o símbolo é já um elemento da própria palavra. (Jardim 2002, pp. 54-55).

A psicanálise, para além de uma prática terapêutica, pretende ser uma interpretação geral da cultura e da situação do homem no mundo (Ricoeur, 1965; 1969) – novo sentido de interpretação que propõe a eliminar o sentido aparente, descobrindo o real responsável pelo seu aparecimento. Será este processo que abre a via possível para uma “arqueologia do sujeito” apontando para uma aventura psicanalítica de reflexão, para uma crítica da consciência do sujeito. (Jardim, 2002, p. 55).

3.3. No âmbito desta tese: um exercício analógico ou “tecendo” uma hermenêutica