• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – O contexto clínico

2.2. A clínica do contemporâneo: em busca de um repertório criativo

2.2.2. Os desafios da formação

No curso das mudanças globais, os efeitos da apropriação do campo educacional como um empreendimento econômico promissor deslocam a formação de seu eixo mais epistemológico para o mais técnico, produzindo, assim, profissionais mais pragmáticos e especialistas, interessados em corresponder aos ditados requisitos para a inserção no mercado de trabalho demasiadamente competitivo.

Mundialmente, as instituições de ensino superior promoveram e continuam a promover reformas de toda ordem: nos currículos, nas qualificações dos formadores, nas avaliações dos discentes, dos docentes e das instituições, comandadas pelo apito dos Ministérios da Educação de seus países para alinhar as diretrizes curriculares com a definição dos mercados. Decisões apressadas, reflexões não aprofundadas, debates insuficientes nos quais estão ausentes os interlocutores mais interessados repercutem nas denúncias a esse estado de coisas na esfera da formação.

Se antes o modelo formador proporcionava conhecimento teórico embasado em abordagens defasadas para a prática, o que sempre demandava a formação extra universitária, o modelo formador atual acrescenta novas defasagens diante da complexidade das práticas contemporâneas. A formação profissional do clínico tem sido objeto de avaliação crítica e reconstrução permanente.

Nesse contexto, indaga-se também sobre a formação de terapeutas criativo- inventivos, desafiados a obter êxito e resultados no manejo de uma clínica ampliada, social, nômade, inter e transdisciplinar e, muitas vezes, sem setting definido.

Uma clínica que se posiciona e reivindica inserção no contexto social e político e, por isso, continuamente sob o efeito dos atravessamentos que inclui a todos: usuários, profissionais, formadores e instituições.

Na literatura estão disponíveis resultados de estudos sobre formação profissional, reformas no ensino superior, mudanças curriculares, dentre outras conexões que abrangem os egressos que optam pelo campo clínico.

Contextualizando a formação do psicólogo brasileiro, utilizou-se dos estudos de Ferreira Neto (2004); Petrarca (1997) e do Conselho Federal de Psicologia (1988; 1994) que oferecem dados importantes e reflexões pertinentes.

É bom termos em mente que a formação em clínica envolve um tripé. Além dos estudos teóricos e do treinamento no exercício prático mediante supervisões, exige do profissional um trabalho sobre a própria subjetividade, por meio de terapia ou análise pessoal. Percebe-se, portanto, que a formação complementar do psicólogo implica um amplo investimento temporal, financeiro e pessoal. (Ferreira Neto, 2004, p. 88).

Ferreira Neto (2004) analisa a clínica que majoritariamente se construiu e se praticou no Brasil inserida no contexto social e político nacional que atravessou as práticas discursivas e não discursivas da psicologia.

Para efeito, descreve o cenário, tece análises e reflexões do que repercutiu sobre a psicologia durante o governo militar e na ditadura (1960); no processo de democratização do país (1970/85); na emergência dos movimentos sociais de base popular (1975/1982); no processo do social instituído (1985) e, por fim, nas lutas antimanicomiais (1980).

Inicialmente a psicologia desenvolve práticas no modelo de clínica liberal entre as classes média e alta, economicamente favorecidas no período inicial de crescimento econômico da primeira parte do regime militar. Um período

de oferta limitada de serviços (início dos cursos regulares, poucos profissionais habilitados) e demanda crescente de atendimento por parte de uma classe média emergente, que encontrava nas diferentes práticas psicoterápicas um de seus poucos meios de expressão subjetiva, e possibilidades de construção de uma consistência existencial. Esse estado de coisas começa a se alterar com a crise econômica na década de 1970: o quadro recessivo que aí se instalou e a pressão feita pelos movimentos sociais pela retomada por parte do Estado brasileiro de sua função social. Somente na década de 1980, iniciam-se as contratações em grande número de psicólogos pelo Estado. Primeira e majoritariamente, para os programas de saúde mental. (Ferreira Neto, 2004, pp. 104-105).

Em 1985, após intensa mobilização popular reivindicando eleições diretas para presidente, foi eleito, por meio do Colégio Eleitoral, o primeiro governo civil. E não é por acaso que o slogan do novo governo preconiza: “Tudo pelo social”. (Ferreira Neto, 2004, p. 111).

Percebemos que “o social” surge como tema importante no país nos anos 1980, reverberando fortemente no contexto da psicologia no Brasil. A problematização do social no campo da psicologia se impôs na presença de um conjunto de novas práticas discursivas e não-discursivas que reconfiguraram o trabalho dos psicólogos brasileiros. Em consonância com esses processos, a diretoria que presidiu o Conselho Federal de Psicologia na virada do milênio estabeleceu como tema nacional a palavra de ordem: “Construindo o compromisso social da psicologia”. (Ferreira Neto, 2004, p. 96).

“Por uma sociedade sem manicômios” (1987) foi a palavra de ordem que radicalizou o movimento numa nova perspectiva que ampliava o projeto de assistência ao doente mental para incluir uma micropolítica de transformação do lugar social do louco e da loucura. (Ferreira Neto, 2004, p. 131).

No percurso, os acontecimentos políticos e sociais se sobrepõem cronologicamente e influenciam-se reciprocamente. Ferreira Neto (2004) também contrapõe às práticas da psicologia brasileira aos processos decorrentes do esvaziamento e rupturas dos modelos da prática clínica em outros países. Essas análises são importantes para compreender as articulações e a recursividade entre o processo de formação, o cenário histórico-político-social e as práticas clínicas.

Foi somente no momento em que os psicólogos, em crescentes contingentes, passaram a atender clientelas oriundas das classes populares na década de 1980, que aconteceu de fato o início da desconstrução dessa concepção tradicional de clínica. Rompeu-se, então, a endogamia social na relação instaurada entre terapeutas oriundos das classes média e alta e pacientes de

classes populares, e a dimensão social exigiu alguma forma de escuta. Portanto, a análise crítica desenvolvida por tantos estudiosos foi condição necessária, porém insuficiente, para que essa mudança fosse implementada. Eram necessárias condições práticas, experiências concretas para que a construção de novas modalidades de clínica pudesse ser efetivada. (Ferreira Neto, 2004, p. 122).

Um modelo de formação centrado numa fundamentação teórica, baseada em autores estrangeiros e sem nenhuma preocupação em contextualizá-los, que deveria ser aplicada aos clientes supostamente portadores de modos de subjetivação a-históricos e universais, presente tanto nas instituições de ensino superior quanto nas instituições extra-universitárias, passou a ser vigoramente atacado. (Ferreira Neto, 2004, p. 126).

A maioria das críticas, portanto, miravam os mesmos alvos: a desconexão com a realidade social brasileira, as relações de poder implicadas nesse modelo de formação, a necessidade de inclusão da classe pobre ao direito de acesso aos serviços psicológicos e a premência da modificação do ensino centrado em estudos teóricos e visando uma “aplicação” descontextualizada. (Ferreira Neto, 2004, p. 126).

Temos, portanto, um conjunto complexo e heterogêneo de acontecimentos contingentes, promovendo um processo de mudanças no âmbito da formação em psicologia. (Ferreira Neto, 2004, p. 127).

Ferreira Neto (2004) destaca o processo de mudança da prática dos psicólogos brasileiros que teve na clínica seu lócus privilegiado. Realça, contudo, que essa clínica também possui um perfil bem diferente do que possuía no início como área de atuação. É uma clínica não mais passível de ser definida pelo setting de trabalho, por características da clientela ou do vínculo de trabalho do profissional.

Por outro lado, esse autor deixa claro que a clínica sempre portou em suas práticas uma face de resistência e criação, por exemplo, desde Freud até o recente movimento de luta antimanicomial e de “práticas emergentes”, a consagrada expressão que designa as práticas clínicas que rompem com a concepção clássica de clínica psicológica.

Quando falamos em “práticas emergentes” em psicologia hoje, designamos com essa expressão tanto práticas críticas quanto práticas disciplinares. As práticas emergentes não devem ser tomadas como progressistas “por natureza” como alguns trabalhos recentes insistem em afirmar. De todo

modo, é no campo da clínica que têm surgido algumas das práticas e das contribuições teóricas mais vigorosas e criativas. (Ferreira Neto, 2004, p. 166).

Ao concluir, Ferreira Neto (2004) faz um balanço entre os avanços da contribuição da psicologia, marcadamente pelo seu posicionamento político-ético-social em relação à formação profissional. Destaca a atuação dos colegas militantes em todo campo e as ações do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e dos Conselhos Regionais (CRP) em interlocuções permanentes com todo e qualquer segmento: realizando pesquisas, provocando debates e reflexões, buscando reconhecimento e amparo legal. As práticas do Sistema Conselho (Federal e Regionais) tiveram e têm efetiva contribuição nas comissões do Ministério da Educação e outros fóruns que discutem a formação.

Nessas ações, concretamente, a psicologia brasileira caminha para praticar uma formação contextualizada no Brasil, produzindo pesquisas atentas às realidades e utilizando essa produção bibliográfica.

Paralelamente, o autor aponta para os novos problemas que desafiam a formação em psicologia - os perigos da educação mercantilista em conexão com os processos macrossociais e globais.

Alerta que “uma formação em psicologia que vise ao perfil de um profissional técnico, capaz de responder adequadamente a diversos tipos de demanda, deve ser vista com reservas”, pois “uma atuação que não toma a demanda como objeto de um trabalho crítico, presta um desserviço à psicologia como profissão”, porquanto “um profissional tecnicista formado dessa maneira pode atender bem, mas não cria; atua sem uma necessária reflexão”. (Ferreira Neto, 2004, p. 191).

Afirma ainda que “a capacidade crítica não se configura um luxo supérfluo. É ela que faculta ao profissional articular o como-fazer ao porque fazer”. (Ferreira Neto, 2004, p. 191). Produz um profissional que não apenas responde passivamente, mas pensa, problematiza debate, inventa; enfim, faz diferença.

A resistência ao saber/poder que se manifesta pela criatividade e inventividade é novamente convocada no momento atual da formação do psicólogo brasileiro, para não

incorrer retrocessos em relação aos avanços, conquistas e reconhecimento obtidos, mediante os perigos embutidos no perfil tecnicista.

Na conclusão de Ferreira Neto (2004), tais conquistas se devem porque parte da psicologia no Brasil foi capaz de problematizar as implicações políticas de sua prática e ela o fez por entender que sua atividade vai além do simples procedimento técnico: ela opera e produz modos de subjetivação. “Seus profissionais, portanto, não são técnicos assepticamente neutros, mas sujeitos eticamente posicionados.” (p. 191).

2.3. As práticas psicoterápicas e a criatividade: abordagens, terapeuta, paciente e