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CAPÍTULO II – O contexto clínico

2.2. A clínica do contemporâneo: em busca de um repertório criativo

2.2.1. Diagnóstico do presente?

O conceito de clínica do contemporâneo está em curso e reflete a ampliação e mudança do significado, sentido, utilidade e representação do trabalho clínico na atualidade. “Contexto social da clínica, clínica ampliada, clínica do social, clínica transdisciplinar são exemplos dessa tendência.” (Ferreira Neto, 2004, p. 53).

Para pensar a clínica do contemporâneo, muito se tem que pensar no contemporâneo, esse tempo de desestabilização, de produção de novidades no qual todos estão capturados, pois a clínica é ao mesmo tempo o lugar que produz e também escuta e dialoga com os modos de subjetivação advindos de diferentes territórios, onde as subjetividades de seus protagonistas são construídas e desconstruídas continuamente. Vivemos um tempo em que as fronteiras das instituições sociais e as do próprio indivíduo são constantemente invadidas por uma diversidade de fluxos sociais (Rolnik, 1997) e as transformações produzidas refletem no campo da clínica que, por sua vez, também se transforma. (Birman, 1999).

A tarefa da clínica se encontra, então, com os desafios do sujeito contemporâneo inserido em si e disperso, simultaneamente, no contexto externo. A clínica contemporânea acolhe os novos adoecimentos psíquicos produzidos pelas intensas variações da realidade externa, dentre eles o fenômeno da globalização, com efeitos no processo de construir as subjetividades. Rolnik (1977, citado por Ferreira Neto, 2004) analisa que os sujeitos se defendem por meio de uma forma particular de drogadicção identitária, os “viciados em identidade. Trata-se do vício do consumo permanente de

kits de identidade como forma de propagar promessas de completude e estabilidade para

fazer frente a uma aceleração vivida como insuportável”. (pp. 175-176).

A mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades implica também a produção de kits de perfil padrão de acordo com a órbita de mercado, para serem consumidos pelas subjetividades. (Rolnik, 1977, citado por Ferreira Neto, 2004, p. 175).

Nesse sentido, a palavra clínica deixou de nomear apenas o espaço dos consultórios, deslocando-se para outros territórios. A clientela não é constituída exclusivamente por quem pode pagar o tratamento particular, e o clínico não é somente o profissional liberal que exerce suas atividades orientadas por abordagens teóricas e técnicas voltadas para o ajustamento psicológico do indivíduo desvinculado de um contexto histórico e social.

Na literatura, a noção de território é frequentemente utilizada para fazer análises sociais em várias disciplinas, fundamentadas, por exemplo, nas obras de Foucault, Deleuze e Guattari. O território pode se referir tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido pelo indivíduo. O território pode ser sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada em si mesma, mas contendo a possibilidade de se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. Novos territórios podem constituir uma tentativa de recomposição do processo de desterritorialização (Guattari e Rolnik, 1986).

Tomando essa direção, a prática clínica não é mais um modelo, seja ele qual for, ensina Rolnik (1997), e sim uma ética que abre espaço para o compromisso e a invenção para que a saúde se faça possível.

A referência passou a ser basicamente uma ética, que, aliada às forças da processualidade, busca meios para fazê-la passar, já que isso é condição para a vida fluir e afirmar-se em sua potência criadora; aliar-se a essas forças e esperar – confiando na possibilidade de que algo venha a se agenciar e, a partir daí um território venha a ganhar consistência, de modo que uma saúde se faça possível. A ética da prática analítica implica um compromisso com os movimentos que a vida faz na tentativa de encontrar vias na afirmação criadora, o que é incompatível com uma adesão não problematizadora a qualquer teoria, técnica ou instituição. (Rolnik, 1997, p. 89).

De fato, o último momento do pensamento de Foucault se caracterizou por uma aposta na força de resistência da própria vida tornada obra de arte. “A ideia de invenção em Foucault está atrelada à resistência aos processos de saber/poder, não podendo ser dissociada deles.” (Ferreira Neto, 2004, p. 53). Foucault problematiza as resistências como processos ativos de criação e transformação. “Resistência como pura oposição, desvio relativo à norma seria uma sombra ineficaz em relação aos processos do poder. Foucault pensa a resistência como criação, diferenciação e não a simples oposição.” (Foucault, 1994b, citado por Ferreira Neto, 2004, p. 171).

Na transição dos conceitos, modelos, competências e tarefas que se interpõem à construção da clínica contemporânea, uma cura seria como construir uma obra de arte, com a diferença de que seria preciso reinventar, a cada vez, a forma de arte que se vai usar. (Guattari e Rolnik, 1986).

Paralelamente aos novos ou potenciais territórios da clínica, prosseguem as intervenções nos centros de saúde, hospitais, internatos, escolas, prisões, numa clara evidência de que a história da clínica prosseguirá vinculada às instituições, num desafio concreto que impõe operar a inventividade e a criação.

Nessa via, a discussão sobre transdisciplinaridade alcança a clínica do contemporâneo, principalmente na atitude crítica ao eixo de sustentação dos campos epistemológicos, que circunscrevem sua lógica teórico-conceitual na dicotomia sujeito- objeto, o que favorece a cristalização de domínios de saberes instituídos e de especialistas operantes. Por outro lado, o diálogo com e entre as teorias clássicas e as atuais evidenciam coincidências temáticas, questões em aberto e impasses que sobrepõem o instituído e incitam a persistir a buscar um repertório criativo para a clínica contemporânea. (Passos & Barros, 2000).

No entanto, esse repertório criativo não se associa às aclarações festivas de uma criatividade a serviço de projetos globalizados, capitalistas ou consumistas de certa sociedade da mercadoria. E sim a inventividade e criação vital, “que produz novas subjetivações individuais e coletivas” que resiste a essa criatividade produtora de “subjetividade flexível e permanentemente modulada diante das variações de mercado” (Ferreira Neto, 2004, p. 176).

É parte de nossa tarefa a busca da distinção entre criatividade a serviço da mercadoria e a inventividade que produz novas subjetivações individuais e coletivas; entre a subjetividade flexível e permanente modulada diante das variações de mercado, e a subjetividade que se desprende constantemente de si mesma num movimento de resistência e criação. (Ferreira Neto, 2004, pp. 176-177).

Por fim, Passos e Barros (2000) descrevem a clínica do contemporâneo como uma clínica necessariamente utópica e intempestiva. A ideia de criar remete às utopias, pois elas são o desejo do que ainda não somos, do que ainda não temos, com uma antecipada abertura para que isso aconteça.