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A interpretação de Gustavo Giovannoni sobre o significado da palavra “perspectiva”

A carta de Corrado Ricci fornece indiretamente à AACAR a direção a seguir: trabalhar sobre o “significado” e o “valor filológico” da palavra “perspectiva”, basear a pesquisa em textos clássicos italianos, interpretar o artigo 14 da lei “no sentido mais amplo”, e interpretar aquilo que “quis” o legislador.

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99 Istituzione Biblioteca Classense, Fondo Correspondenze Ricci, vol. 88, n. 16.775, missiva de Giovannoni a Ricci de 3 de abril de 1914.

100 Istituzione Biblioteca Classense, Fondo Correspondenze Ricci, vol. 88, n. 16.777, missiva de Giovannoni a Ricci de 30 de abril de 1915.

101 Ver trechos das cartas entre Ricci e Boito sobre o assunto em GUARISCO, Gabriella. Notizie da Brera: il carteggio Boito-Ricci. In: _______ (org.). Milano restaurata: il monumento e il suo doppio. Firenze: Alinea, 1995. p. 59. Sobre a relação entre Ricci e Boito, ver também PANE, Andrea. Da Boito a Giovannoni: una defficile eredità. ‘Ananke, n. 57, maggio, 2009. Numero monografico: rileggere Camillo Boito, oggi.

Ricci estava preocupado com a possibilidade de que, em casos análogos futuros, pudesse outra vez haver uma interpretação restritiva103 do artigo 14, e levanta uma hipótese segundo a qual se o legislador “tivesse querido” uma concepção mais restritiva da questão, não teria dito “danificar” (“danneggiare”), mas “esconder” (“nascondere”) ou cobrir (“coprire”)104.

A Associação organiza, então, uma Comissão de estudo, composta por Guido Borgogelli, Filippo Galassi , Giulio Magni, Pio Piacentini, Giulio Pittarelli e Gustavo Giovannoni.

O papel de relator é confiado a Pittarelli, mas depois o memorial recebe acréscimo de Giovannoni, que escreve a Ricci dizendo que teve de assumir essa tarefa para que a AACAR pudesse fornecer um parecer mais “útil e eficaz” ao pedido de Ricci105. A parte

de Giovannoni ganhará o título de “parte especial”, em sequência ao texto de Pittarelli. O documento completo será depois publicado em Roma pelo editor E. Calzone, já em 1918.

Pittarelli começa a sua relatoria partindo das definições contidas nos dicionários e cita três “principais significados” para a palavra perspectiva. O terceiro significado será depois utilizado por Giovannoni para iniciar sua argumentação: “3o vistas naturais dos

objetos que se apresentam ao olhar, [...]”106. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

103 Lettera Corrado Ricci indirizzata al Presidente della società fra i Cultori di Architettura. Roma, 26 febbraio 1917, op.cit., p. 2.

104 Ibid., p. 3.

105 Cf. Missiva di Giovannoni a Ricci del 24 giugno 1917 in CANALI, Ferruccio. Gustavo Giovannoni e Corrado Ricci ‘amicissimi’ (1904-1932). Bollettino della società di studi fiorentini, anno 2009-2010, n. 18-19, Firenze, 2010, p. 76.

“Outro dia expedi ao colega Pittareli aquilo que se poderia dizer o segundo capítulo da Relatoria sobre a ‘Perspectiva dos Monumentos’. Como acenei a Você, de fato a relatoria de Pittarelli é um belíssimo tratado sobre perspectiva, mas quando sua aplicação chega ao célebre artigo 14 da Lei, despenca como faz a via dos Serpenti na frente do Coliseu... Mesmo que tivesse, então, toda a boa intenção de me colocar à parte, vi a necessidade, para chegar a um resultado realmente útil e eficaz, de completá-la e restabelecer o equilíbrio. Espero ter conseguido e espero que entre poucos dias chegue ao Sr. esse longamente maturado fruto dos estudos dos Cultores de Arquitetura.”

Texto no original italiano: “L’altro giorno ho spedito al collega Pittarelli quello che potrebbe dirsi il secondo capitolo della Relazione sulla ‘Prospettiva dei Monumenti’. Come Le accennai infatti la relazione Pittarelli è bellissima trattazione sulla prospettiva, ma quando giunge alla sua applicazione al celebre art.14 della Legge, casca giù come fa la via dei Serpenti avanti al Colosseo... Per quanto quindi avessi tutta la buona intenzione di tenermi da parte, ho visto la necessità, per giungere ad un risultato veramente utile ed efficace, di completarla e ristabilire l’equilibrio. Spero di esserci riuscito e spero che tra pochi giorni Le giungerà questo lungamente maturato frutto degli studi dei Cultori d’Architettura.”

106 GIOVANNONI, Gustavo; PITTARELLI, Giulio. Sul significato della parola prospettiva usata nella legge sulla conservazione dei monumenti. Roma: E. Calzone, 1918, p. 3. Texto original em italiano: “3° vedute naturali degli oggetti che si presentano allo sguardo, [...]”.

Depois de um rico e erudito percurso de exemplos na ciência, arte e literatura, Pittarelli conclui, em um tom mais pragmático do que o resto do seu texto (e talvez escrito por Giovannoni), que:

“[...] nos parece, de todos os exemplos reportados, que o significado que melhor se adapta à palavra perspectiva do art. 14 da lei, seja o terceiro, entendido no sentido mais amplo possível: ou seja, o de vista não só do monumento em si, mas de toda a cena circundante, dessa forma, de outros edifícios assim como de jardins, coles, bosques, etc; os quais, fazendo coroamento a ele, constituem aquele conjunto harmônico e vago de figurações, os quais ou foram suscitados na fantasia do artista no ato da concepção do monumento, ou outros artistas, vindos depois dele, conseguiram fazer nascer no entorno dele.”107

É interessante perceber que se escreve “no sentido mais amplo possível”, como havia apontado Ricci. E é justamente essa operação de “ampliar” o sentido da palavra “perspectiva” que fará Giovannoni em seguida, quando a terceira definição de “vistas naturais do objetos que se apresentam ao olhar” é assim explicada:

“[...] nos parece então fora de dúvida que esse deva responder ao terceiro dentre os significados indicados, e que, então, equivalha, mais precisamente, à cena que fecha o monumento, ao

quadro entre o qual esse é composto, ao ambiente (para dizer em uma palavra) do monumento mesmo, quando as massas arquitetônicas e as linhas naturais, as condições de forma, de cor, de caráter artístico desse ambiente tenham, na maneira de vê-lo, de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1o arte ou ciência de representar por meio de uma projeção central os objetos em um quadro, plano ou curvo; 2o as próprias coisas desenhadas ou pintadas.

107 Ibid., p. 8. Texto original em italiano: “[...] a noi pare, da tutti gli esempi riportati, che il significato che meglio si adatta alla parola prospettiva dell’art. 14 della legge, sia il terzo, inteso nel senso più largo possibile: cioè a dire di veduta non solo del monumento in sè, ma di tutta la scena circostante, così di altri edifizi come di giardini, colli, boschi ecc.; i quali, facendogli corona, costituiscono quell’insieme armonico e vago di figurazioni, le quali o si suscitarono nella fantasia dell’artista all’atto della concezione del monumento, o altri artisti, venuti dopo di lui, riuscirono a far nascere intorno a quello.”

apreciá-lo, de entender o seu valor, uma direta função de arte.”108

Em seguida, como tinha feito Ricci em sua carta, Giovannoni raciocina sobre os significados da presença do verbo “danificar” ligado à palavra “perspectiva”:

“Das expressões usadas no artigo de lei citado não apenas parece seguramente confirmado esse conceito, mas a interpretação dele resulta a mais ampla possível; porque se, de fato, o legislador quisesse apenas impedir que a obra monumental não fosse materialmente fechada pelas novas construções, as quais, além de privá-la em parte da ‘luz’, também tirassem totalmente ou parcialmente a vista do observador para ela, não teria usado o vocábulo perspectiva, mas aqueles mais precisos e definidos de vistas e visuais, não o verbo

danificar, mas outros, de portada mais limitada, como diminuir, ou esconder, ou cobrir. Falando ao contrário de ‘perspectiva exigida pelos monumentos’ quis, de forma mais vasta e genérica, designar aquelas condições de ambiente essenciais para que o monumento não perca o seu caráter e o seu valor pela falta de uma harmônica correlação artística entre esse e os edifícios circundantes.” 109

É interessante observar que o verbo “danificar” e a expressão “perspectiva exigida” já estavam presentes no texto da lei de 1902 e que alguns senadores que discutiram tal lei tinham interpretado o termo “perspectiva” justamente como “visual” (Balestra) e “vista” (Pellegrini). O recurso argumentativo de Giovannoni de referir-se àquilo que o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

108 Ibidem. “[...] a noi sembra dunque fuori dubbio che questo debba rispondere al terzo fra i significati sopra indicati, e che cioè equivalga, più precisando, alla scena che racciude il monumento, al quadro entro cui esso è composto, all’ambiente (per dirla in una parola) del monumento stesso, quando le masse architettoniche e le linee naturali, le condizioni di forma, di colore, di carattere artistico di detto ambiente abbiano nel modo di vederlo, di apprezzarlo, di intenderne il valore una diretta funzione di arte.”

109 GIOVANNONI, Gustavo; PITTARELLI, Giulio, op. cit., p. 8-9. Texto original em italiano: “Dalle espressioni usate nell’articolo di legge citato non solo appare sicuramente confermato questo concetto, ma l’interpretazione ne risulta la più lata possibile; chè se infatti il legislatore si fosse soltanto voluto preoccupare che l’opera monumentale non venisse materialmente racchiusa da nuove costruzioni, le quali, oltre al privarla in parte della ‘luce’, anche la togliessero totalmente o parzialmente alla vista dell’osservatore, non il vocabolo prospettiva avrebbe usato, ma quelli più precisi e definiti di vedute o di visuali, non il verbo danneggiare, ma altri, di portata più limitata, quali diminuire, o nascondere, o coprire. Parlando invece di ‘prospettiva richiesta dai monumenti’ ha certo, in modo più vasto e generico, voluto designare quelle condizioni di ambiente essenziali affinchè il monumento non perda il suo carattere ed il suo valore per la mancanza di un’armonica correlazione artistica tra esso e gli edifici circostanti.”

legislador “quis” deve ser observado, diante do fato de que a pesquisa histórica feita pelos dois relatores da AACAR não incluiu uma pesquisa às atas parlamentares já publicadas, as quais poderiam trazer indícios desse “querer”. Misturavam-se, na figura abstrata do “legislador” (segundo dicção jurídica consolidada), aqueles de 1902, 1909 e 1912.

Giovannoni desenvolve suas ideias com exemplos, mais tarde incorporados no seu conhecido volume Questioni d’architettura nella storia e nella vita (1925). Primeiramente, ele aborda as características relacionais “de massa e de espaço” em exemplos da Antiguidade, da Idade Média, do Renascimento e do Barroco, defendendo sua conservação. Mas depois acrescenta a observação relativa às “condições arquitetônicas individuais de estilo, cor e ornato” 110 dos edifícios que aparecem na “perspectiva”,

ampliando, como já havia feito em texto anteriores, os parâmetros da harmonização. E, nesse sentido, desenvolve a ideia da “continuidade com as formas preexistentes”111, que

situamos anteriormente. Ele volta ao tema do significado do “estilo”, apoiado pela ideia do filósofo e historiador positivista Hippolyte Taine sobre os “elementos permanentes”, que, segundo Giovannoni, ajudaria a explicar como, na mesma região ou na mesma cidade, “manifestações de arte muito distantes e diferentes continuaram a manter um caráter local, quase se pode dizer, um ar de família”.112 Essa natural continuidade teria sido quebrada a partir do século XIX e, nesse sentido, Giovannoni critica, em ordem cronológica, “o pedantesco neoclássico”, as “frias imitações estilísticas” e as “confusas tendências individuais contemporâneas”113, e reputa essa discussão como sendo mais

séria se se pensa nos “velhos monumentos” e nas “condições de harmonia por esses exigida”. Sugere, enfim, a definição de parâmetros de controle, enfatizando a primazia da cidade e do coletivo em detrimento da arquitetura e do indivíduo: “a arquitetura não pertence apenas a quem a produz ou a quem a paga, mas também à cidade da qual vem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

110 Ibid., p.11. Texto original em italiano: “condizioni architettoniche individuali di stile, colore, di ornato”. 111 Ibidem.

112 Ibidem. Texto original em italiano: “ […] quelli che il Taine ha chiamato gli elementi permanenti, pei quali nella stessa regione o nella stessa città manifestazioni lontanissime e differentissime d’arte, hanno continuato a mantenere un carattere locale, quasi può dirsi, un aria di famiglia.”

113 Sobre a relação de Giovannoni com a Arquitetura Moderna ver PANE, Andrea. Il vecchio e il nuovo nelle città italiane: Gustavo Giovannoni e l’architettura moderna. In: FERLENGA, Alberto; VASSALLO, Eugenio; SCHELLINO, Francesca. Antico e nuovo, architetture e architettura. Padova: Il Poligrafo, 2007. Ver, ainda, CABRAL, Renata; ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. Roberto Pane, entre história e restauro, arquitetura, cidade e paisagem. Entrevista com o arquiteto Andrea Pane. Risco, São Carlos, n.15, p. 99-104, 1o semestre de 2012.

O tema da relação entre “antigo e novo” adquire grande peso nos anos cinquenta, envolvendo personagens como Giulio Carlo Argan, Roberto Pane, Bruno Zevi, Ernesto Nathan Rogers, Antonio Cederna e Cesare Brandi. Ver Vassallo, op. cit., p. 54-59.

fazer parte e vem refletir, sobre seus elementos, o sentimento que emana das suas linhas”114.

Além da citação a Taine, acima referida, acrescente-se aquela a Robert Vischer feita alguns anos depois, quando Giovannoni se arrisca numa discussão no campo da estética, como anota Pane115.

Por fim, defendendo a ideia de que cada caso é um caso, Giovannoni indiretamente reafirma a importância do Conselho Superior e de sua análise colegiada.