• Nenhum resultado encontrado

A LEGISLAÇÃO DE TUTELA DAS “COISAS DE INTERESSE ARTÍSTICO OU HISTÓRICO”

A “invenção” do “patrimônio urbano” já foi objeto de sérios estudos, que identificaram razões e personagens envolvidos no processo de surgimento de uma nova sensibilidade conservadora no confronto com o contexto dos monumentos e inteiras áreas de tecido urbano antigo1.

Como bem resumiu Pane, os motivos da origem desse novo olhar, na Itália, são “complexos e múltiplos”, podendo ser constatadas, dentre outros aspectos, as transformações urbanas sofridas pelas cidades, particularmente no momento subsequente à unificação nacional (1861), percebidas como empobrecedoras e danosas por literatos, estudiosos e cultores da arte e da arquitetura2. Nesse país, que vive, com atraso, a Revolução Industrial, também serão experimentadas iniciativas de renovação e ampliação urbanas ao gosto haussmanniano, destruindo muralhas e áreas inteiras de tecido urbano antigo para a passagem de avenidas retas, constantemente isolando monumentos para sua “valorização” 3. Uma transformação alimentada, em um primeiro

momento, pelo desejo de construir uma imagem urbana comum às cidades que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

1 Abordam esse assunto, entre outros:

VASSALLO, Eugenio. Centri antichi 1861-1974, note sull’evoluzione del dibattito. Restauro, quaderni di restauro dei monumenti e di urbanistica dei centri antichi, anno IV, n. 19, maggio-giugno, 1975.

FONTANA, Vicenzo. Origini del concetto di centro storico in Italia (1860-1931). Quaderni PAU, anno II, n. 2, luglio-dicembre 1992, p. 93-108.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, editora UNESP, 2001. “A invenção do patrimônio” é nome de um dos capítulos do livro no qual a autora se dedica ao assunto.

GIAMBRUNO, Mariacristina. Verso la dimensione urbana della conservazione. Firenze: Alinea, 2002.

2 PANE, Andrea. Dal monumento all’ambiente urbano: la teoria del diradamento edilizio. In: CASIELLO, Stella. La cultura del restauro. Teorie e fondatori. Venezia: Marsilio, 1996, p. 293.

3 Vassallo, op. cit., p. 8-9, cita o plano que o município de Roma redige em 1873 e o plano Poggi para Florença, de 1884. Sobre a interpretação que Vassallo faz da lógica burguesa dos “isolamentos”, ver p. 11- 12.

compunham a Itália unificada e, em um segundo momento, pela hegemonia do saber higienista4.

Vassallo e Pane nos ajudam a perceber, citando trechos de artigos de Camillo Boito (de 1883) e Luca Beltrami (1892), como, no final do século XIX, na Itália, já se inicia uma preocupação com o contexto dos monumentos e com a arquitetura “menor”, fazendo- se referência a expressões como “ambiente do monumento” e “ambiente artístico”. Boito fala em “conservar o ambiente dos monumentos”, e Beltrami indica um preconceito existente em associar a memória de uma localidade a um número restrito de monumentos, e faz referência aos elementos que “compõem a vaga e indefinida expressão daquele ambiente artístico que envolve os nossos monumentos e os completa, e nos conduz a uma verdadeira compreensão da arte” 5.

Zucconi, por sua vez, acompanhando artigos da revista Nuova Antologia, na qual são publicados os artigos de Boito e Beltrami acima referidos, identifica indícios de como, no final do século XIX, se começa a falar de identidade histórico-artística dos centros urbanos e do problema da sua tutela.

Para ele,

“de arte e de história sempre se falou, sobretudo nas páginas de Nuova

Antologia; dessa vez, contudo, as descrições vêm geralmente associadas a um problema novo, às políticas de salvaguarda. Também de salvaguarda se discute faz muito tempo, mas até então se falou sobretudo de bens móveis e imóveis, de pinturas e de edifícios individuais; a partir do final do século XIX, começa-se a falar de cidade, de identidade histórico-artística dos centros urbanos e do problema da sua tutela: comparecem os primeiros artigos que desejam uma tutela séria daquilo que vem naquele momento definido como ‘ambiente artístico’”6.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

4 Pane, 1996, op. cit., p. 294-295.

5 Boito, apud Pane, 1996, op. cit., p. 296, e Beltrami, apud Vassallo, op. cit., p. 11. Textos originais em italiano, respectivamente de Boito e Beltrami: “serbare ai monumenti l’ambiente” e “[…] in ogni città il compito di riassumere le vicende o di ricordare la prosperità di altre epoche viene riservato al ristretto numero dei monumenti più importanti sui quali esclusivamente si concentra l’attenzione e l’amor proprio dei cittadini […]. Tutto il resto delle memorie le quali pur essendo meno appariscenti sono gli elementi che compongono la vaga ed indefinita espressione di quell’ambiente artistico che avvolge i nostri monumenti e li completa, e ci conduce a una vera comprensione dell’arte. […]”.

6 ZUCCONI, Guido. La città contesa, 1999 (1989), op. cit., p. 93 a 94. Texto original em italiano: “Di arte e di storia si è sempre parlato, specie sulle pagine di ‘Nuova Antologia’; questa volta però le descrizioni

Fontana, ao abordar o tema das “origens do conceito de centro histórico na Itália” a partir de 1860, mostra, ainda, um Carlo Cattaneo crítico do projeto Beccaria de 1838 para a praça do Domo de Milão, pela uniformidade e monotonia, e defendendo, como interpreta Fontana, uma ideia na qual a praça aparece, em função do Domo, como uma “roupa talhada” para uma determinada pessoa7.

É importante mencionar ainda, nesse contexto, o movimento de estruturação administrativa da tutela8 e o surgimento das Associações Artísticas, que dedicam tempo e atenção ao reconhecimento e à catalogação da arquitetura civil, dita “menor”9.

Percorrendo os primeiros números do Anuário da AACAR, encontra-se, no rendiconto

morale de 1900, uma sugestão dos sócios, a condessa Maria Pasolini e o arquiteto Moraldi, de que a associação mantivesse interesse pela “conservação dos lugares pitorescos e do ambiente tradicional e histórico”.10

Se, como visto acima, com apoio de Vassallo, Fontana, Pane e Zucconi, já havia na Itália do final do século XIX uma nascente sensibilidade para o tema do “ambiente”11,

na legislação voltada para as “coisas de interesse artístico ou histórico” essa noção aparecerá de forma explícita – com inclusão da palavra “ambiente” - apenas em 1939, na lei de 1o de junho de 1939, n. 1.089. Nas leis que a antecederam durante o século

XX12, havia referência a outras duas palavras, “perspectiva” e “luz” (prospettiva e luce). !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! spesso vengono associate ad un problema nuovo, alle politiche di salvaguardia. Anche di salvaguardia si discute da molto tempo, ma fino allora si è parlato sopratutto di Beni mobili ed immobili, di dipinti e di singoli edifici; dalla fine dell’Ottocento, si inizia a parlare di città, di identità storico-artistica dei centri urbani e del problema della loro tutela: compaiono i primi articoli che auspicono uma seria tutela di quello che viene allora definito ‘ambiente artistico’.”

7 Fontana, op. cit., p. 94.

8 Ver RAGUSA, Andrea. Alle origini dello stato contemporaneo. Politiche di gestione dei beni culturali e ambientali tra ottocento e novecento. Milano: FrancoAngeli, 2011.

9 Pane, 1996, op. cit., p. 295.

10 GIOVENALE, G.B. Rendiconto morale dell’anno MCM. Annuario Associazione Artistica fra i Cultori di Architettura. Roma, anno VII – MDCCCXCVIII – all’anno XI – MCMI, p. 47, 1901. Texto original em italiano: “conservazione dei luoghi pittoreschi e dell’ambiente tradizionale e storico”.

11 Das consequências operativas dessa nova sensibilidade interessam, nesse capítulo, aquelas derivadas da preocupação com o “ambiente” do monumento e não aquelas derivadas da preocupação com inteiras zonas de tecido antigo e que originarão reflexões sobre como criar estratégias de intervenção urbana nestas. Estou me referindo, neste último caso, à “teoria do desbastamento”, idealiza por Giovannoni, como referido anteriormente. Sobre o assunto, ver Pane, 2005, op. cit., assim como PANE, Andrea. Il piano di risanamento per Bari Vecchia, 1931. In: GIAMBRUNO, Mariacristina. Per una storia del Restauro Urbano, piani, strumenti e progetti per i centri storici. Novara: Città Studi, 2007, p. 21-30. Ver, ainda, GIAMBRUNO, Mariacristina, Una sana teoria ben applicata: il piano di risanamento di Luigi Angelini per Bergamo Alta, 1936-60. In: ibid., p. 31-38.

12 ITALIA. Lei n. 185, de 12 junho de 1902, que dispõe sobre a conservação dos monumentos e dos objetos de antiguidade e arte.

ITALIA. Lei n. 364 de 20 de junho de 1909, que estabelece e fixa normas para a inalienabilidade das antiguidades e belas artes.

Estas, quando apareceram pela primeira vez, refletiam, respectivamente, uma preocupação com o direito ao usufruto da vista para um bem considerado “monumento” e com a iluminação deste e das obras de arte contidas no seu interior. Não se observava ainda uma clara valorização das relações formais, volumétricas e cromáticas com o contexto que o cercava.

Deve-se, contudo, chamar a atenção para o fato de, antes de 1939, Gustavo Giovannoni já haver contribuído para operar uma nova interpretação dos termos “luz e perspectiva”, contidos na lei, associando-os ao “ambiente” do monumento, e, assim, ajudando a incorporar essa noção nas práticas de tutela. Uma participação que começa pouco tempo depois de sua entrada no Conselho Superior de Antiguidades e Belas-Artes, ainda na década de 1910, como será visto adiante, e que ajudará na consolidação desse novo significado para os velhos termos. Uma construção que será validada pelos tribunais italianos, abrindo um antecedente na jurisprudência sobre o assunto, muito antes da Lei n. 1.089 ser aprovada.

Esse percurso legislativo e judiciário lança luz sobre o momento de gênese da “tutela indireta” na legislação italiana e sobre a contribuição de Gustavo Giovannoni nesse processo de ampliação da salvaguarda, do monumento individualizado ao monumento e seu “ambiente”. Traz, sobretudo, aspectos inéditos dessa contribuição, já que a historiografia costuma referenciar as contribuições de Giovannoni às leis de que participa diretamente (como membro ou presidente das comissões de elaboração - caso das legislações voltadas para a proteção das “belezas naturais” e “belezas panorâmicas”13) ou que “inspira” (como a lei urbanística de 194214). Faz uso, para tanto,

também de fontes inéditas, como uma carta de Corrado Ricci à AACAR, solicitando um parecer sobre o significado das noções de “luz” e “perspectiva” na legislação vigente. Adentra, ainda, registros parlamentares, como as atas das sessões, pareceres ministeriais de Giovannoni, além de registros jurisprudenciais.

A tutela proposta por Giovannoni, como será visto, será permeada pelos imbricados conceitos de “relação” entre os componentes de um espaço público, de “percepção”, de “harmonia” e de “estilo”, naquele momento adotados por personagens que leem e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! ITALIA. Lei n. 688 de 23 de junho de 1912, que traz modificações à lei de 20 de junho de 1909, n. 364, para as antiguidades e belas artes.

13 Zucconi, 1997, op. cit., p. 44, e Ventura, 1995, op. cit., p. XXVI.

14 Ventura, 1995, op. cit., p. XXI, observa que Giovannoni foi um dos “maiores promotores e inspiradores” dessa lei, como referido anteriormente.

pensam a cidade como uma obra de arte, a exemplo de Camillo Sitte e Charles Buls, como apontado na introdução da tese, interlocutores privilegiados de Giovannoni.