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Os instrumentos de controle da tutela dos “panoramas-visual”

Com base na Lei de 1922 para a proteção das “belezas naturais”, as superintendências se viram com o poder de tutelar a vista para “belos panoramas”1, tendo de criar práticas a fim de operacionalizar o controle de sua integridade.

Em janeiro de 1925, o superintendente de arte medieval e moderna da Campânia, Gino Chierici2, propõe vincular terrenos fronteiriços a ruas como a Tasso e a Alessandro Manzoni à Lei de 1922, para que a vista a partir delas não fosse obstruída3. Como

assinala Parpagliolo, em 1931, para enfrentar a lacuna existente na lei vigente - de não haver um instrumento para proteger áreas que abarcavam terrenos de mais de um proprietário (como visto no capítulo anterior) – a superintendência da Campânia notificou diversos deles, individualmente4. O resultado gráfico desse projeto de tutela foi uma planta com marcação e numeração das propriedades ao longo das referidas ruas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

1 Sobre a proteção legal de panoramas anteriormente à Lei de 1922, particularmente em Nápoles, ver SAVORRA, op. cit.

2 Sobre Chierici, ver CASIELLO, Stella. La cultura del restauro a Napoli tra la fine del sec. XIX e l’inizio del XX e l’influenza del pensiero di Giovannoni. Restauro, XII, n. 68-69, 1983, p. 7-143. Ver, ainda, PICONE, Renata. Restauri a Napoli tra le due guerre: l’opera di Gino Chierici 1924-1935. In: CASIELLO, Stella (org.). La cultura del restauro. Teorie e fondatori. Venezia: Marsilio, 2009. 4° ed., p. 315-337. Ver também AMORE, Raffaele. Gino Chierici: tra teoria e prassi del restauro. Napoli: Edizioni scientifiche italiane, 2011.

3 Como assinala SAVORRA, op. cit., além dessas, fez o mesmo com a rua Aniello Falcone, com o Corso Vittorio Emanuele e a via Posilippo.

4 PARPAGLIOLO, Luigi. Intorno alla legge in difesa delle bellezze naturali e del paesaggio. Disponível em: <http://eddyburg.it/article/articleview/2185/1/236>. Acessado em 25 de outubro de 2011. Publicado originalmente em Le Vie d'Italia, febbraio 1931. Ver página 4: “per alcuni luoghi di maggiore responsabilità sono stati pregati gli uffici periferici di raccoglierne i nomi dei proprietari, i confini, i numeri catastali degli immobili compresi in una scena panoramica: naturalmente centinaia, ed abbiamo proceduto a centinaia di notificazioni. Esempio, la nuova via Manzoni a Napoli, […]”.

(Fig. 7), assim como uma lista com dados cadastrais de cada terreno e os respectivos nomes dos proprietários.

Fig.7 Trecho da planta C.ne Napoli S.ne Chiaia

. Escala 1:2000. Napoli, 1925. Assinada por Gino Chierici. Com marcação do perímetro dos terrenos a serem vinculados (em verde e azul) e respectiva numeração (em vermelho). Fonte: ACS, MPI, DIV. II, 1940-1945, B. 52 (Classifica 2 Bellezze Naturali, titolo Napoli).

Na gestão da tutela, as plantas acima referidas e respectivos registros cadastrais aparecem como importantes instrumentos de controle. Chierici, em livro intitulado Per

la tutela delle bellezze naturali della Campania5, também de 1925, publicação pensada como o primeiro volume de uma série organizada pela Direção-Geral de Belas-Artes6, anota que esses instrumentos ajudavam a superintendência a “exercer uma vigilância prudente e contínua”7. Na área “vinculada”, como previa a lei, ficava proibido executar obras sem a

passagem pela superintendência e subsequente autorização do Ministério da Instrução Pública mediante sua estrutura consultiva.

A lei, por sua vez, ao não definir regras fixas para a proteção dos “panoramas-visual”, permitia uma abordagem “caso a caso” ou, nas palavras de Chierici, “vez a vez”8. Ele entende que não haveria sentido em dispor regras gerais, já que um panorama se configura não como uma realidade em si, mas a partir do olhar do “observador”:

“Estabelecer, por exemplo, que o ponto mais alto do edifício não deva ultrapassar o plano da rua é um erro grosseiro, já que, no que diz respeito à vista da paisagem, a altura do obstáculo deve ser em relação à distância do observador.”9

As palavras de Chierici parecem em grande sintonia com aquelas de Giovannoni observadas nos capítulos anteriores, sobre a importância do “observador”. A partir desse entendimento, compreende-se a razão de o livro de Chierici ser pleno de fotografias, a revelar os panoramas a partir do olhar do observador-fotógrafo (Fig. 8).

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5 CHIERICI, Gino. Per la tutela delle bellezze naturali della Campania. Roma: Bestetti & Tumminelli/Ministero della Pubblica Istruzione, 1925.

6 Criada em 1923 (decreto de 16 de julho, n. 1.753) e nesse momento presidida por Luigi Parpagliolo. 7 CHIERICI, op. cit., p. 21. Texto original em italiano: “riesce ad avere sott’occhi [...] gli elementi necessari per formarsi un primo criterio sull’importanza di una domanda di concessione e sulla serietà di una protesta e per esercitare una sorveglianza oculata e continua”.

8 Ibidem. 9 Ibidem.

Fig. 8 Fotografia da primeira página do texto de Chierici.

Fonte: CHIERICI, 1925, op. cit. Disponível na Biblioteca Bruno Molajoli, Napoli.

A fotografia, mais do que como uma simples ilustração, apareceria na prática de tutela como importante instrumento para verificação de possíveis danos aos panoramas. Em 1925, chega à Junta da Comissão Central para as Antiguidades e Belas-Artes do

Ministério da Instrução Pública um caso que nos permite exemplificar esse uso. A superintendência de Nápoles, ao analisar pedido de construção de um projeto no Corso Vittorio Emanuele10 que já tinha sido aprovado na comissão edilícia municipal, decidiu

exigir uma redução da altura da edificação. A Junta, tendo em mãos a defesa do construtor particular, decide em favor da superintendência, dando o parecer de que “a maior elevação solicitada impediria, mesmo que parcialmente, a vista da admirável colina de Posillipo”11.

Em meio ao processo encontrado no Arquivo Central do Estado, consta uma fotografia (Fig. 9) tirada de um ponto de vista mais alto do que o nível do terreno da futura casa, capturando uma imagem que abarca o terreno da construção, as edificações e vegetações vizinhas e o mar, ao fundo. A abertura da lente é menos ampla do que aquela que se poderia obter a partir do parecer da Junta que, depois de enviar representantes in

loco12, refere-se à importância da manutenção da vista para a colina de Posillipo, que não aparece na fotografia. Não sabemos precisar a autoria da imagem, mas, de qualquer forma, vale assinalar que ela constitui um instrumento básico para uma espécie de construção de cenários que auxiliaria o processo decisório. Em caneta vermelha, constrói-se ao mesmo tempo o cenário da altura mais baixa permitida pela superintendência e aquele da altura que constava no projeto.

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10 Sobre a proteção panorâmica dessa via, anterior à gestão de Chierici, ver Chierici, op. cit.

11 ITALIA. MINISTERIO DELLA ISTRUZIONE PUBBLICA. Giunta della Commissione Centrale per le Antichità e Belle Arti. Adunanza del 13 agosto 1925. Parecer assinado pelo Ministro Fedele, pelo vice- presidente da Junta e pelo secretário. Fonte: ACS, MPI, DIV. II, 1940-1945, B. 52 (Classifica 2 Bellezze Naturali, titolo Napoli).

Texto original em italiano: “la maggiore sopraelevazione richiesta verebbe a togliere, sia pure parzialmente, la vista della mirabile collina di Posillipo.”

12 A visita da Junta é assinalada na carta do construtor G. Mascoli, de Napoli, 6 maggio 1925, a Spett. Comississione Centrale Antichità e Belle Arti – Ministero della P.I., Roma. Fonte: ACS, MPI, DIV. II, 1940-1945, B. 52 (Classifica 2 Bellezze Naturali, titolo Napoli).

Fig.9 Fotografia com sinalização, em caneta vermelha, da altura permitida pela superintendência e da altura solicitada pelo proprietário.

Fonte: ACS, MPI, DIV. II, 1940-1945, B. 52 (Classifica 2 Bellezze Naturali, titolo Napoli)

É possível que os quadros montados a partir de fotografias tenham entrado no cotidiano da prática de aprovação de projeto em pontos ou zonas de interesse panorâmico.

Há um recurso feito pelas senhoras Francesca e Aida Francati, em Nápoles, no qual questionam, junto ao Ministério, a decisão da superintendência de não permitir o acréscimo de área no último pavimento de edifício de sua propriedade. Neste caso, verifica-se que os próprios requerentes enviam fotografias à superintendência, contendo, em vermelho, ensaio do que seria esse acréscimo de altura, dialogando com o órgão estatal a partir do uso das mesmas ferramentas de representação.

Por entender que as fotografias dos proprietários foram tiradas de um ponto de vista que não possibilitava “uma visão suficientemente clara do estado dos lugares”13, o

superintendente Armando Venè14 realiza outras três e encaminha todas à Consulta pela !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

13 Correspondência de 3 de novembro de 1936 do superintendente Venè ao Ministério da Educação Nacional. Protocolo 9578, objeto “Napoli – Ricorso delle Signore Franceca e Aida Francati”. Frente e verso. Assinado. Fonte: ACS, MPI, DIV. II, 1940-1945, B. 52 (Classifica 2 Bellezze Naturali, titolo Napoli). Texto original em italiano: “una visione dello stato dei luoghi abbastanza chiaro”.

14 A longa carreira de Venè nas superintendências remonta ao ano de 1914, quando foi admitido no Concorso per titoli ed esami al posto di Architetto nel ruolo dei monumenti, musei, gallerie e scavi di antichità. Ele assume a direção da superintendência de Nápoles em 1935 e permanece até 1939. Para dados biográficos sobre Venè ver CARUGHI, Ugo. Armando Venè. In: MINISTERO PER I BENI E LE ATTIVITÀ

Tutela das Belezas Naturais, nesse momento presidida por Giovannoni. Encontram-se no Arquivo Central do Estado quatro dessas fotografias, sendo duas dos proprietários (Fig. 10) e duas do superintendente (Fig. 11 e 12). As duas primeiras, tiradas de um ponto de vista mais próximo à edificação, que exclui o entorno e o panorama; e as duas últimas, de pontos de vista que permitem englobar também a paisagem. Com o foco estritamente “arquitetônico”, as fotos dos proprietários deixavam de ser um instrumento de controle paisagístico. A decisão da Consulta (assinada por Giovannoni) repete os argumentos do superintendente e nega o requerido acréscimo.

Fig. 10 Uma das duas fotografias do edifício das senhoras Francati entregues pelo arquiteto das senhoras. Fonte: ACS, MPI, DIV. II, 1940-1945, B. 52 (Classifica 2 Bellezze Naturali, titolo Napoli).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! CULTURALI; DIREZIONE GENERALE PER IL PATRIMONIO STORICO ARTISTICO ED ETNOANTROPOLOGICO; CENTRO STUDI PER LA STORIA DEL LAVORO E DELLE COMUNITÀ TERRITORIALI. Dizionario Biografico dei Soprintendenti Storici dell’Arte (1904-1974). Bologna: Bononia University Press, 2007. p. 630-633.

Fig. 11 e 12 As duas fotografias do edifício das senhoras Francati feitas pela superintendência. Fonte: ACS, MPI, DIV. II, 1940-1945, B. 52 (Classifica 2 Bellezze Naturali, titolo Napoli).

Além da fotografia, desenhos com marcação de linhas de visada também foram encontrados no Arquivo Central do Estado. No caso de um pedido de autorização de reforma em Agrigento, que chega ao Ministério em dezembro de 1938, vê-se esse tipo de representação sendo utilizado para mostrar adequação às disposições da Lei de 1922 quanto à tutela das belezas panorâmicas. Giovannoni, em texto desse mesmo ano, como visto no capítulo II, explica que a proteção dos “panoramas-visual” se daria justamente pela definição de “faixas de visuais” entre as quais a vista deveria ser protegida, e isso significava definir “raios” tanto no sentido horizontal como no vertical. Nesse caso particular, o requerente mostra, em corte (Fig. 13), que a construção existente já bloqueava, por ser inclinada, a vista, quase tanto quanto seria bloqueada pela nova construção.

Fig. 13 Corte A-B do projeto de adaptação e reforma de edificação de propriedade do Sr. Guido Mirabile a fins de “verificação das variações da visibilidade panorâmica da Praça S. Giuseppe”. A partir do desenho de uma pessoa, o observador, há duas linhas tracejadas, indicando a linha de visada. A de baixo refere-se àquela que tangencia o ponto mais alto da coberta da edificação existente e a de cima, àquela que tangencia a cumeeira da coberta proposta na reforma. Escala 1:100.

Fonte: ACS, MPI, DIV. II, 1940-1945, B. 25.

Na planta (Fig. 14), por sua vez, mostra-se como, nas proximidades, havia diversos outros pontos para o usufruto do panorama.

Fig. 14 Plano geral do projeto de adaptação e reforma de edificação de propriedade do Sr. Guido Mirabile. Os pontos de 1 a 4 mostram possibilidades de pontos de observação a partir da praça, nas proximidades da referida edificação.

Percebe-se, pelos exemplos dados, que existia a prática do controle da vista para certos panoramas, o que implicava, sobretudo, o controle da altura das edificações que poderiam impedir essa vista. Essa prática gerou instrumentos de controle e construção de cenários que incluiu a base fotográfica e o desenho sobre essa base. Quando representados por meio do desenho, esses cenários, por vezes, incorporaram a representação de uma “escala humana” e de cones visuais.

Os instrumentos de controle e planejamento da tutela dos