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2.1 ‘GENE’ COMO CONCEITO INSTRUMENTAL

2.4. MÜLLER E STADLER: OPINIÕES DIVERGENTES A PARTIR DE EXPERIMENTOS SEMELHANTES

2.4.1. A INTERVENÇÃO COMO CRITÉRIO PARA O REALISMO

As habilidades de intervenção e manipulação de entidades inobserváveis no laboratório são critérios suficientes para se acreditar em suas existências? Ou a variedade de modelos teóricos, muitas vezes incompatíveis, a respeito destas entidades gera fortes dúvidas de que algum destes modelos poderia representar precisamente a realidade? Na tentativa de discutir estes problemas, apresentaremos sucintamente duas respostas igualmente bem elaboradas, embora divergentes. Escolhemos tratar nesse trabalho de Hacking e van Fraassen por apresentarem versões avançadas e reconhecidas de realismo e anti-realismo, respectivamente.

Como vimos, a posição realista de Hacking é baseada num exame da prática experimental. Para ele, uma solução satisfatória do problema do realismo científico será possível se a preocupação for menos focada na teorização cientifica e mais focada na experimentação. Esta mudança de foco seria o suficiente para sermos realistas com respeito da existência de algumas entidades inobserváveis, mas não enfraqueceria criticas anti-realistas com respeito às verdades das teorias que postulam aquelas entidades.

O realismo de entidades de Hacking pode ser sumarizado na seguinte frase: “Se você pode borrifá-los [tratando de elétrons], então eles são reais” (pp. 22). Ele estava se referindo a uma situação experimental específica, que teve como objetivo detectar a existência de cargas elétricas fracionários, chamadas de quarks. No experimento em questão, a carga de uma esfera de nióbio era alterada por meio do borrifo de pósitrons ou elétrons sobre elas. Diante deste tipo de intervenção, Hacking afirma ter se tornado um realista de entidades, porque se é possível borrifar uma entidade teórica, isso indica que ela é real.

Neste sentido, a possibilidade de intervir sobre, ou manipular uma entidade é considerada um critério válido para se estabelecer sua existência, ainda que ela seja inobservável. Este é o argumento central do realismo de Hacking.

Podemos traçar, então, um paralelo entre as posições realistas de Hacking e Müller, visto que, no caso deste último, as mutações induzidas por radiação eram consideradas evidência suficiente para que Müller alegasse a existência dos genes, uma entidade inobservável, mas que podia ser manipulada pelo pesquisador. É evidente que este paralelo possui certo limite de semelhança que não pode ser extrapolado. Isto é, podemos usar o exemplo do sucesso de Müller para exemplificar a teoria de Hacking, mas não podemos de forma alguma tomar suas idéias como equivalentes. Em especial, Hacking teria certamente menos confiança do que o geneticista nas descrições oferecidas pelas teorias a respeito do

experimento. Hacking é um anti-realista de teorias e, como tal, não aceita as teorias como verdadeiras. Sua posição realista se limita – é importante reiterar – a um realismo de entidades. Müller, por sua vez, parece ter sido um realista tanto de teorias, quanto de entidades.

Por sua vez, van Fraassen oferece um exemplo de posição anti-realista elaborada e complexa. Para ele, a situação experimental não implica comprometimento com a existência das entidades. Quando solicitado a avaliar o argumento de Hacking, van Fraassen respondeu invertendo a ordem das frases: “Se eles são reais, então você pode borrifá-los” (Arabatzis, 2006, pp. 250). Provavelmente, ele quis dizer que se pode usar a expressão ‘borrifar elétrons’ como a melhor descrição disponível de uma dada situação experimental, mas que não há necessidade de se comprometer com a crença de que elétrons existem por esta razão. As entidades inobserváveis são ficções, podendo ser reais ou não, independentemente do critério da intervenção. A posição de Stadler é mais próxima desta visão, ainda que não seja equivalente a ela. Stadler considerou o conceito de gene apenas em termos operacionais, não depositando confiança sobre a existência de um referente material do conceeito. É possível dizer, também, que a posição de Stadler decorre de cautela com relação à verdade das teorias sobre os genes, assim como sobre a própria existência dos genes.

Adicionalmente, além da posição realista, outro argumento de Müller se contrapõe às idéias de van Fraassen. O geneticista alegou que a situação experimental do período, as quais não permitiam inferências satisfatórias a respeito da natureza dos genes, era apenas uma dificuldade técnica, que não era impeditiva para uma interpretação do gene como uma entidade material. Isto é, para Müller, os genes estavam naquela situação, como entidades teóricas, apenas temporariamente, mas seu status seria esclarecido à medida que a investigação sobre as suas bases materiais avançassem. Van Fraassen (2007) considera este tipo de argumentação uma ‘trapaça’, explicando sua posição com o seguinte exemplo imaginário: “Tenho um pilão com socador, feito de cobre e que pesa mais ou menos um quilo. Eu deveria dizer que ele é quebrável porque um gigante poderia quebrá-lo?” (pp. 42). Ele quer dizer que qualquer circunstância futura é hipotética e, portanto, não pode ser usada como argumento explicativo.

Esta discussão, inspirada nas divergências entre Müller e Stadler, ficaria incompleta se não dedicássemos pelo menos algumas linhas modestas para a discussão da relação entre teoria e experimentação. O exemplo destes dois pesquisadores ilustra que o cientista é tanto um teorizador quanto um experimentador, isto é, a experimentação não é sempre e apenas uma decorrência direta da teoria e nem a teoria da experimentação. A relação entre teoria e

experimentação que nos é mais comum e intuitiva é a idéia indutivista de que as teorias científicas são derivadas automaticamente da experimentação por um experimentador, esta idéia é alvo de muitas críticas, as quais apontam principalmente o caráter inevitavelmente preconceituoso e parcial de qualquer experimentador humano (Chalmers 1993). Popper, Feyerabend e Kuhn são exemplos de filósofos da ciência que argumentaram contra esta noção indutivista ingênua da relação entre teoria e observação. Para eles, as proposições de resultados experimentais dependem da teoria, isto é, de que proposições de resultados experimentais são sempre interpretações de fatos observados à luz de teorias (Chalmers 1993, Dutra 2009).

Hacking, por sua vez, argumenta que, assim como Popper, por exemplo, defendia, a teoria pode preceder a experimentação, mas o inverso também ocorre, ou seja, a experimentação também pode preceder teoria. Ele apresenta alguns exemplos elaborados e incomuns de ambas as situações possíveis (como de William Herschel e a radiação infra- vermelha, ver Hacking pp. 176).

Segundo van Fraassen, na construção de uma teoria, a experimentação tem uma importância dupla e, do mesmo modo, a teoria tem um duplo papel na experimentação. A experimentação deve testar a adequação empírica da teoria e guiar a continuação de sua construção ou sua complementação. Por sua vez, a teoria tem o papel de fornecer bases para a formulação de questões a serem respondidas e orientar a elaboração dos experimentos para responder àquelas questões.

Diante desta diversidade de visões, podemos concluir que a comparação de Stadler e Müller – que, conforme analisamos, apresentam práticas experimentais similares, mas divergem na elaboração de suas teorias sobre gene – é mais um exemplo histórico que ilustra a complexidade da relação entre teoria e experimento. Conseqüentemente, devemos ter cautela com noções simplistas muito comuns, como, por exemplo, a idéia de que a teoria está subordinada ao experimento, ou a falsa noção de que a relação entre a verdade das teorias e a existência das entidades que elas postulam é tão automática quanto parece para o realismo senso comum. Concordamos também que uma ênfase exclusiva no critério de manipulação falha em capturar a variedade de critérios válidos que podem ser empregados para avaliar a realidade de uma entidade inobservável. Adicionalmente, este episódio da história da Genética também ilustra um argumento ao qual Kuhn deu bastante atenção. Muitos fatores são responsáveis pela aceitação de teorias científicas, além do bom desempenho dos experimentos. Fatores sociais, como a formação dos cientistas, psicológicos, como os hábitos

de pensamento de uma comunidade de pesquisadores, entre outros, podem influenciar as decisões que os cientistas tomam a favor ou contra determinada teoria. (Dutra 2009).