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3 O TRABALHO DO ARTESÃO NO TEMPO E NO ESPAÇO: ARTE, INVENÇÃO, RESISTÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA

3.3 A DIVISÃO DO TRABALHO, DOM, HABILIDADE, ÓCIO PRODUTIVO, ASTÚCIA, BRICOLAGEM E TECNOLOGIA

3.3.5 A invenção da tradição icoaraciense pela inspiração em peças arqueológica

As implicações que permeiam o uso de referências ancestrais na cerâmica paraense produzida em Icoaraci determinaram o desenvolvimento de técnicas de pintura e de desenho em particular. Portanto a definição das etapas na confecção de peças está diretamente vinculada à inserção desses grafismos pré-coloniais. Ao mesmo tempo, as novas elaborações de peças utilitárias associam a referência ao grafismo como um diferencial na produção, assim como acrescentam ao tema elementos que exigem uma compreensão sob vários aspectos, desde os reflexos de determinada forma de produção de artefatos na reafirmação de uma identidade, até a definição de critérios que os identifiquem como raros ou exóticos na classificação do artesanato como produto de venda.

O recorte histórico que compreende a década de 1960 até os dias atuais é o período em que a forma de produzir cerâmica em Icoaraci se altera, incluindo entre as técnicas apreendidas na produção de peças utilitárias, o desenho e a pintura inspirados nos desenhos e pinturas arqueológicos. Essa peculiaridade na produção contemporânea em Icoaraci-Belém e Ponta de Pedras-Marajó é resultado da iniciativa de dois homens. No Marajó, o padre italiano Ângelo Rivato, em Icoaraci, o Mestre Cabeludo. Nas duas localidades já havia produção de fogões de barro, panelas, penicos e alguidares, com a diferença que, enquanto em Ponta de Pedras as peças eram feitas apenas para uso doméstico, em Icoaraci já existia uma produção voltada para venda, haja vista a produção que incluía material de construção e as utilitárias confeccionadas pelos espanhóis.

Foi exatamente na busca de diversificação de atividades lucrativas para os munícipes que o padre Ângelo Rivato trouxe uma escultora da Itália, Madre Ovídia Dias, para ensinar as técnicas de uso da argila na confecção da cerâmica. Esse aprendizado foi acompanhado pelo acesso a cacos e peças inteiras de cerâmica que afloravam na superfície das terras marajoaras. A entrada do torno em Ponta de Pedras, segundo informações dos artesãos do local, foi na década de1970, quando foi convidado um artesão Icoaraciense para ensinar o uso do torno. Sem informações precisas, é sugerido que o padre Rivato foi o incentivador do uso do grafismo marajoara nas novas peças produzidas.

Quanto a Icoaraci, é evidente o papel de Mestre Cabeludo na mudança da produção de cerâmica utilitária para cerâmica decorativa em 1964. Foi a inspiração no desenho de uma peça impressa no livro “Na Planície Amazônica”, editado em 1926, de autoria de Raimundo Moraes e a sua reprodução em um alguidar, o marco fundador de um processo produtivo que inclui até hoje a criação de várias peças com inspiração em grafismos arqueológicos. Com essas criações e na tentativa de replicar os modelos ancestrais, o artesão passou a trabalhar na olaria do fundo do quintal com a ajuda de seus familiares, copiando traços diversos tanto da cerâmica marajoara, quanto tapajônica e maracá (TAVARES, 1997).

É corrente na fala de outros Mestres Ceramistas, o legado de Antonio Cabeludo, pois sua invenção foi repassada aos outros artesãos que observavam essa nova forma de fazer cerâmica e passaram a produzir na mesma linha, peças de decoração com traços de uma cultura milenar, da qual nunca tinham ouvido falar (FIGUEIREDO; TAVARES, 2006). Conforme registro historiográfico, descrito anteriormente, foram vários os fatores que favoreceram a concentração de oleiros no bairro do Paracuri. Para os artesãos, aquela produção incluía-se na categoria de utilitário (telhas, tijolos, panelas, potes e alguidares), e a cerâmica com grafismo indígena foi identificada como decorativa, possui outra finalidade, hoje o utilitário (para uso doméstico) está sendo produzido de forma mais elaborada, como as louças esmaltadas (xícaras, copos, garrafas) e os refratários(panelas e travessas).

É recorrente associar o modo de fazer cerâmica em Icoaraci com a produção da fase marajoara pré-colonial com suas figuras mitológicas e, a confecção de vasilhas, vinculando aos mesmos motivos ritualísticos, mas as observações feitas por Schann (2006) sintetizam as implicações do uso do termo “Marajoara” para identificar três situações em tempo e espaço diferentes:

A Cultura Marajoara pré-colonial, descoberta e estudada por arqueólogos; o originário do Marajó incluindo a cultura do caboclo e do vaqueiro residentes no local; o estilo estético de inspiração arqueológica apresentada na cerâmica produzida em Icoaraci e Ponta de Pedras (SCHANN, 2006, grifo nosso).

Essa síntese facilita identificar a produção do grupo de artesãos de Icoaraci, mas é prudente lembrar que essas situações se entrelaçam e se confundem em virtude do uso do grafismo com inspiração na fase marajoara pré-colonial também por artesãos originários do Marajó. Os primeiros dados da pesquisa sugerem que este entrelaçamento aconteceu pela coincidência de ações semelhantes, relacionadas à produção de cerâmica que incluiu a

temática arqueológica no mesmo período, nas peças produzidas tanto em Icoaraci quanto em Ponta de Pedras.

Embora os artesãos, sejam de Iocaraci ou Ponta de Pedras, utilizem símbolos encontrados nas peças arqueológicas, os desenhos não traduzem as mesmas referências e compreensão de mundo da produção pré-colonial, com suas funções específicas como as urnas destinadas aos rituais funerários, estatuetas com suas representações divinas e os grafismos com formas simbólicas em objetos domésticos. O que se observa é uma tendência originada pelo turismo e acatada pelo turista, em relacionar os desenhos atuais aos mesmos significados que arqueólogos interpretam através de suas pesquisas, como por exemplo: uma caneca com o grafismo da cobra, muito presente no grafismo marajoara pode ser vendida como objeto que simbolize a fertilidade.

A reprodução desses desenhos não se configura como continuidade dessas mesmas visões, no entanto contribui para uma identidade com referência a essa ancestralidade indígena, notando-se que essa contribuição é espontânea e livre dos usos que se tentou dar a ela em outras relações que estabeleciam o grafismo marajoara como fator de identidade da região amazônica, conforme análises recentes encontradas em SARAIVA (2011). Se a cerâmica confeccionada em Icoaraci é Icoaraciense, a confeccionada atualmente no Marajó pode ser identificada como marajoara, ambas com referências a grupos ancestrais que segundo registro arqueológicos, predominaram na área do Marajó(PA) a partir do século V em assentamentos no centro da ilha, a oeste do lago Arari, expandindo-se cultural e demograficamente para o norte e leste da ilha e seu desaparecimento antecede a conquista europeia (BARRETO, 2010).

Ressaltar a habilidade do pintor de cartazes e placas Antonio Farias Vieira, Mestre Cabeludo, é de certa forma patentear um estilo e uma forma de produção que se multiplicou entre os artesãos que se aperfeiçoam na produção de réplicas principalmente tapajônicas e marajoaras, com destaque ao Mestre Cardoso, reconhecido pela pesquisa sobre essas formas ancestrais e esmero na confecção das réplicas, assim como à proliferação no bairro do Paracuri de composições ou inserções de traços indígenas misturados a traços que remetem a elementos peculiares da paisagem regional, contextualizados na realidade local.