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3 O TRABALHO DO ARTESÃO NO TEMPO E NO ESPAÇO: ARTE, INVENÇÃO, RESISTÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA

3.3 A DIVISÃO DO TRABALHO, DOM, HABILIDADE, ÓCIO PRODUTIVO, ASTÚCIA, BRICOLAGEM E TECNOLOGIA

3.3.4 Divisão do trabalho, associativismo, mercado

Os artesãos do Paracuri anseiam por mecanismos que propiciem o escoamento da sua produção. Ao turismo foi atribuída a venda de grande quantidade de peças no próprio bairro do Paracuri na década de 1980, apesar da falta de dados que comprovem a existência de um fluxo de turistas ao local de produção. Em pesquisa anterior pôde-se verificar que essa atribuição ao turismo se confunde com a visita de caminhões que saíam abarrotados de peças no período entre final da década de 1970 e meados da década de 1980, assim como com a participação de artesãos em feiras e exposições organizadas por órgãos do turismo ou ainda com a contratação de artesãos para trabalhar fora do estado. O que fica evidente é que existiu um fluxo de revendedores que compravam em grande quantidade para vender em outros estados. Posteriormente, essa demanda sofreu importante queda, para a qual concorreram vários fatores, inclusive a exportação de know how com a contratação de artesãos para trabalhar em outros estados (TAVARES, 1996).

Ratificamos essa afirmação com a história do Sr. Anísio, o qual se identifica como empreendedor e, conta que veio da Bahia para instalar-se em Icoaraci na década de 1980, por conta da grande demanda de compradores de cerâmica existente na época. O Sr. Anísio ainda hoje possui uma loja e uma olaria conjugadas, localizadas na travessa Soledade, principal via de concentração de lojas para venda do produto. Sua olaria possui estrutura que inclui todos os equipamentos necessários à produção, onde trabalham 08 pessoas, 08 horas por dia.

Esse empreendedor baiano foi representante comercial em Salvador e começou a trabalhar com cerâmica há 30 anos, a partir do contato com a produção de Icoaraci, através de um amigo. Primeiro comprava e levava para comercializar em Salvador. Posteriormente, com o grande sucesso da venda e o colapso entre demanda e oferta, provocada pela capacidade de produção dos artesãos, contratados por ele, resolveu se mudar para Icoaraci e montar uma cerâmica. Comprou a estrutura de produção, aprendeu a fazer cerâmica com os artesãos locais, na convivência e com treinamento, apesar de ressaltar que não domina todas as etapas em virtude da dificuldade, diz que se especializou em agregamento ou agregação.

Ele não se considera ceramista e sim empreendedor, gosta de trabalhar com cerâmica, gosta de mostrar o trabalho produzido pelo artesão, por isso ainda está na cerâmica. Hoje se queixa da queda na venda que ele atribui à falta de turistas e falta de políticas públicas para área. A trajetória do Sr. Anísio se difere de outras aludidas no decorrer do trabalho, porém,

consegue resumir várias questões que permeiam a situação e o pensamento dos ceramistas de Icoaraci:

1) Avaliações sobre investimento público, propostas de planejamento para o turismo que

segundo o mesmo exige investimento do município e do estado em divulgação das potencialidades que levará o turista que visita Belém à Icoaraci; afirma que essa atividade é a principal alternativa para resolver o grande problema do artesão, que é a venda das peças. 2) A transmissão de saberes e a referência aos mestres ao falar do conhecimento adquirido, aprendido no próprio bairro do Paracuri, com as pessoas do local, inclusive com os que já morreram como o Antonio Cabeludo.

3) O processo produtivo e as habilidades afirmando que não se encontra com facilidade

um artesão que realize todo o processo da confecção de cerâmica em Icoaraci.

4) Políticas públicas e atuação do SEBRAE em anos passados, que, segundo o Sr. Anísio,

estão ligadas à capacitação através de cursos para administração dos negócios, que influenciam no resultado de seu trabalho hoje.

5) A falta de alcance das políticas de salvaguarda, quando o entrevistado afirma nunca ter

ouvido falar de ações públicas voltados para salvaguarda do saber tradicional, contido no fazer cerâmica icoaracience.

As questões enfatizadas mostram claramente a coexistência entre um mundo que possibilita avaliar um fenômeno socioeconômico que é o turismo e ao mesmo tempo, conviver com um processo produtivo onde o conhecimento é transmitido na convivência. As relações estabelecidas somam-se a outras especificidades no grupo.

Em pesquisa anterior foi possível identificarmos a existência de 07 associações, e hoje permanecem apenas três, que se organizam basicamente em torno da venda (TAVARES, 1996). Na relação de trabalho há associativismos de várias formas, mas encontramos com mais frequência, a associação pelo vínculo familiar. Irmãos, pais e filhos trabalham em regime cooperativo, sem a existência de patrão, embora essa união ser por vezes só espacial ou por conta de encomendas. Existem olarias em que cada membro é dono de seu material e desenvolve um tipo de peça, com encomendas próprias. Nesses casos, os artesãos envolvidos dividem os pagamentos de água, luz e outras despesas que são repassadas para o dono da Olaria.

Apesar de as encomendas serem praticamente individuais, os serviços são divididos por habilidade. Portanto, se uma encomenda é feita ao especialista em levantamento da peça, este vai inevitavelmente, precisar das habilidades do barreirense, do boleiro, do desenhista, do

nicador, do bornidor (brunidor), no entanto percebe-se que o dono, algumas vezes o pai, ou irmão mais velho, conhece um pouco de todas as etapas. Uma situação nova na produção no bairro do Paracuri é a existência de um grupo que se especializou em serviços específicos, mas não tem vínculo com as olarias, nem familiar. Esses artesãos são chamados para trabalhar, conforme a necessidade.

Na divisão do trabalho, tem o oleiro, tem os meus dois irmãos, um trabalha como oleiro também. São dois oleiros, eu e outro irmão, o outro trabalha na fase de acabamento e o outro trabalha na fase de desenho e os outros cinco eles trabalham também no desenho e parte de acabamento, como pintura, desenho, bornição. São dois oleiros e o restante é acabamento, pintura e desenho. Nós trabalhamos em grupo (Henoque, 2011).

Na olaria cada trabalhador tem seu espaço, suas ferramentas de trabalho e se sentem responsáveis por elas e pelo trabalho, apesar de existir um horário estabelecido, também há uma flexibilidade, o importante é que dê conta da encomenda, conhecendo a capacidade dos artesãos que trabalham comigo eu posso aceitar ou não encomenda de determinada quantidade de peças.(Ciro,2012)

São muitas funções dentro da produção. Especificamos em dois quadros a divisão do trabalho conforme as etapas no processo de feitura da cerâmica: o primeiro inclui as etapas necessárias para confecção das peças, desde o cuidado com a matéria prima, da retirada até seu beneficiamento, a modelagem da peça, o desenho, a pintura e os processos térmicos que se intercalam em todo o processo entre a secagem e a queima, incluindo as habilidades relacionadas. O segundo quadro inclui o uso, a confecção de instrumentos e equipamentos para realização de cada etapa.

Quadro 1 – tarefas e etapas da produção

ETAPAS DA PRODUÇÃO TAREFAS/SERVIÇOS HABILIDADES/FUNÇÕES

Matéria Prima Retirada

Limpeza

Preparo da Argila

Barreirense Boleiro

Modelagem Fazer (levantar) a peça no torno, em

placas, e no rolinho (acordelamento).

Oleiro

Torneador

Desenho Desenhar, Nicar Desenhista

Pintura Brunir, Pintar, Encaliçar Brunidor(bornidor),Pintor

Queima Fazer forno, queimar Forneiro

Quadro 2 – instrumentos e equipamentos do processo produtivo

ETAPAS DA

PRODUÇÃO

EQUIPAMENTOS FERRAMENTAS

MATERIAIS CONSTRUÍDOS PELO ARTESÃO

Matéria Prima Talhadeira, Pá,

Transporte Amassador Maromba

Arame, Peneiras, Liquidificador

- Instrumento feito com pedaços de arames com

plástico ou pano velho nas pontas para limpeza; - Amassador feito com camburão velho;

- Maromba construída por artesão

Modelagem Torno de Chute

Torno elétrico Palheta, Piota

- Piota: rodela de madeira para levantamento de peças grandes no torno;

- Raspadores;

- Torno em mesa de madeira com eixo mecânico;

- Palheta

Desenho Torno de pintura

Raspador Esteque Compasso

- Esteque - feito com raios de bicicletas, raios de sombrinha, capas de canetas com clipes e grampos;

- compasso de madeira Pintura

Polimento

Brunidores manuais e elétricos, Pincéis, tintas, buchas

- Escovas dentárias velhas;

- Escova de enceradeira e motor de máquina de lavar

Queima Forno Caieira

Noborigama a gás, elétrico

Todos os fornos, exceto o elétrico, são construídos pelos ceramistas

Fonte: Auda Piani Tavares (2012)

Os resultados da pesquisa sugerem que a reutilização ou reaproveitamento de objetos que iriam para o lixo, como capas de canetas, escovas, rolamentos, motores de eletrodomésticos, raios de sombrinha, raios de bicicleta, incorporam-se tanto ao conceito de bricolagem, utilizado por Levi-Strauss (1976), quanto às astúcias dos consumidores, segundo Certeau (1994). Portanto, não necessariamente reflete uma preocupação com a questão ambiental na perspectiva de minimizar impactos como a redução de resíduos depositados na natureza. O uso da antropologia de Levi-Strauss, como já referimos ao tratar da distinção de saberes, descreve uma ação que não ocorre aleatoriamente, mas apresenta e exige renovação, construções e destruições, testes e experimentos que exigem esforço mental e visões de mundo não conduzidas pelo rigor científico.

O vínculo do ofício do ceramista com a condição dos consumidores, segundo a concepção de Certeau pode ser percebido na ocultação da relação existente nas práticas cotidianas do ceramista como modos de operação e sistemas de ação submetidos por uma

racionalidade que se sobrepõe de forma determinante. O saber do ceramista, concretizado no ofício, é entendido como atividade cultural no âmbito de uma sociedade constituída por outras atividades que se refletem no fazer de um grupo subjugado a uma ordem econômica dominante, porém, não passivo diante da situação em que se encontra.

Na descrição da prática dos artesãos, buscamos, no detalhamento das tarefas, identificar como são feitos a bricolagem, os procedimentos, os efeitos, as possibilidades, os interesses e regras próprias do grupo, ações que se assemelham por sua técnica milenar, mas que não são homogêneas.

Eu busco outros conhecimentos, hoje o jeito de fazer cerâmica mudou muito mas depende muito de cada pessoa. Para turista se vende coisa boa e coisa ruim, coisa feia, sem base nenhuma. Tem grupo que faz qualquer coisa e vende, não se importa com a estética, o artesão pega uma encomenda grande tem que colocar no sol, as miniaturas não tem problema mas as grandes corre o risco de rachar (Josué, 2011).

É notório que as circunstancias e situações também definem o fazer ceramista. O grupo “Candéa” experimenta, conforme as diretrizes do empreendedorismo e percebe que pode inserir-se no mercado, trabalhando com o utilitário, na confecção de pias, garrafas, xícaras, feitos artesanalmente, ou seja, o conhecimento de artesão acumulado no grupo está sendo usado de forma calculada, pensada como agregação de valor.

Nessa mesma linha encontramos outras vertentes como o uso de miniaturas de cerâmica em embalagens. Um exemplo são os estudos de Josué para aliar tradição e estética na confecção de joias que se traduzem na confecção de pingentes de argila, ouro e prata com desenhos arqueológicos e envolvem testes com relação à durabilidade, garantia e esforço intelectual sob vários aspectos.

Foi um desafio, ninguém ainda tinha feito algumas peças de cerâmica como joia e nem faz, eu fiz um teste com algumas peças, mas houve certa discriminação porque é cerâmica, quem compra uma joia cara quer usar porque é bonita mas também tem que ter durabilidade, muita gente disse que não dava certo, porque a cerâmica quebra, todos que viram acharam lindo, mas a joia requer certo cuidado. Até vendi mais resolvi parar eu tinha que dar garantia, continuo fazendo vários estudos agora estou fazendo um trabalho com uma pessoa que participou da expo joia só com os desenhos das serpentes do grafismo marajoaras em prata, o projeto é dela, a gente negociou coisas, porque quem começou fui eu com esse design das joias aqui no Paracuri, tenho que resgatar essa vertente, que é uma coisa muito contemporânea e é nossa daqui, é cultural. A vertente é fazer joias com desenhos arqueológicos. Ficou muito legal, estamos estudando sobre a limpeza da joia, a quebra, vamos conseguir, estou lutando pra isso, já

conseguimos com peças menores revestida de prata, se cair no chão não quebra. Ela (sócia) planejou a parte teórica da arqueologia, mas a parte da resistência eu falei pra ela que precisamos de um forno de teste. A resistência depende da queima, uma joia queimada a 1100 graus em forno elétrico não quebra (Josué, 2011).