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3.2 TENSÃO, RESISTÊNCIA NEGRA E ARTICULAÇÃO URBANA NO QUILOMBO

3.2.1. A investigação e preparação do plano de destruição

No processo investigativo, o conde da Ponte infiltrou homens da sua confiança com a missão de vigiar negros e examinar prováveis locais, a fim de descobrir rotas de fugas e acolhimentos de escravos fugidos (APEB, Setor Colonial. Carta à várias autoridades, nº 163, ano 1803-1808, fl. 97-98). Ao constatar, sem dificuldades, as numerosas organizações de “quilombos” nas matas que cercavam a cidade, o governador inicia o plano de destruição.

Tal plano e posterior ação requereram cuidados especiais, de maneira que a execução do plano foi documentada detalhadamente em carta encaminhada para o visconde de Anadia, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. Também em cartas enviadas ao Desembargador Ouvidor Geral do Crime, Sr. Cláudio José Pereira da Costa, o que possibilitou o desvelar de uma história de luta e resistência negra dos habitantes do Cabula contra as mazelas da escravidão. Evidenciando estratégias de sobrevivência de um povo que subverteu os parâmetros impostos pela sociedade escravista, na busca de uma tênue liberdade, fato que foi rechaçado durante anos pela historiografia tradicional.

De acordo com a compreensão do contexto sociopolítico da época, os planos que culminaram com a destruição dos quilombos do entorno soteropolitano, em especial o caso do Cabula, fez parte da política de controle aos escravos

implementada pelo conde da Ponte desde o início da sua gestão205. Ao que indica a documentação existente tratou-se de uma missão sigilosa, em que só as partes diretamente relacionadas tomaram conhecimento dos planos. O perfil secreto da missão instiga o levantamento de algumas hipóteses, como a força que as comunidades chamadas de quilombos ganharam ao longo dos anos, ocasionando temor à camada social hegemônica, que ao se deparar com a necessidade de enfrentamento, buscou a precaução nos preparativos da destruição. Vale lembrar que conforme foi discutido no capítulo anterior, na Bahia, antes de 1807, ocorreu outras manifestações de resistência escrava por meio da formação de quilombos.

O conde da Ponte, em carta encaminhada ao visconde de Anadia, exemplifica algumas situações de resistências ocorridas na Bahia que não poderiam ser repetidas, como um fato ocorrido em 1795, no governo de D. Fernando José de Portugal. Cita ainda, a importante ação do seu governo na destruição de um grande quilombo no ano de 1806, chamado Oitizeiro, que localizado nas proximidades do Rio de Contas, na Comarca de Ilhéus, surpreendeu a sociedade escravocrata baiana devido a sua organização, relações sociais e aos meios de existência

adotados, que contava com articulação comercial com o meio urbano206.

Outra questão que inspira cuidados no planejar de uma missão de destruição a comunidades resistentes pode estar relacionada a grande quantidade de negros advindos da África que adentraram a cidade do Salvador, desde o final do século XVIII e principalmente no início do século XIX, o que pode ter despertado medo de revoltas, articulações e circulação de informações para as áreas periféricas do entorno da cidade. Caso os planos de destruição aos ajuntamentos fossem difundidos, poderia fazer com que os "calhambolas", como são chamados os habitantes dos quilombos, se preparassem para o enfrentamento com as forças militares ou instigar ao desmembramento dos quilombos investigados com novos atos de fugas. Na verdade, a proximidade dos quilombos com o centro urbano representava um perigo real, pois uma resistência mais forte e preparada da parte

205 O artigo do historiador João José Reis intitulado: Dono da Terra Chegou, Cento e Cincoenta Acabou? Notas sobre

Resistência e Controle dos Escravos na Bahia, que Recebeu a Família Real em 1808, é um dos trabalhos que melhor discute a questão das políticas de controle de escravos impostas pelo conde da Ponte.

206 Para aprofundar em leituras sobre o quilombo do oitizeiro, verificar artigo: REIS, João José. Escravos e coiteiros no

quilombo do Oitizeiro – Bahia, 1806. In. REIS e GOMES (Org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Verificar também o repositório de documentos do blog Pesquisando a história, que socializa a “devassa quilombo do Oitizeiro”, disponível em: http://uranohistoria.blogspot.com.br/2015/07/devassa-quilombo-do- oitizeiro.html

dos quilombolas poderia colocar em risco os habitantes da cidade, bem como a própria escravidão.

Os constantes casos de fugas de escravizados, insubordinação e ousadia dos que continuavam na condição de cativos caracteriza uma perda do controle governamental e senhorial diante dos atos de “rebeldia”, leia-se resistência dos negros. Para que houvesse uma retomada do controle, as medidas a serem adotadas deveriam surpreender o oponente e, portanto, os planos não poderiam correr o risco de serem difundidos. Desde a concepção do plano de extermínio e aprisionamento houve discrição e temor por parte do conde da Ponte, isso fica evidente, pois o comando da missão só foi confiado ao responsável um dia antes da data agendada para a destruição, como indica um trecho da carta encaminhada ao visconde de Anadia

Mandei chamar no dia 29 de Março deste ano com o disfarce, e cautela necessária o Capitão-mor de Entradas e Assaltos do termo desta Cidade Severino da Silva Lessa, e com firmeza lhe protestei que me ficava desde aquela hora responsável pela dispersão de tais quilombos, para a qual diligência lhe prestaria todo auxilio que me requeresse, não pense Vossa Excelência que ele deixasse de tremer ao ouvir esta minha resolução, e nada mais me respondeu, que partia a executá-la, mas que ficava perdido (AHU. Conselho Ultramarino. Brasil-Bahia. Cx. 149. n. 29815. Ano 1807).

De acordo com o trecho citado, é evidenciada a importância e perigo da

missão, uma vez que o já experiente207 Capitão de Entradas e Assaltos deixou claro

seu temor e, nas palavras do conde da Ponte, tremeu ao ouvir a proposta confessando que “ficava perdido” diante da situação imposta. O sentimento de insegurança do Capitão Severino da Silva Lessa pode ser explicado pelas condições apresentadas pelo conde da Ponte. Seria um ataque imediato, sem tempo para planejar a estratégia mais adequada para a destruição dos ajuntamentos, principalmente em áreas ruralizadas, consideradas de alta periculosidade. Além disso, a área do Cabula já era conhecida como um território de resistência negra.

A preocupação das autoridades com os residentes do Cabula e seus atos de acolhimento a negros foragidos não era novidade. De tal maneira que, no ano de 1780, o então governador D. Fernando José de Portugal nomeou, por meio de carta

207 Considera-se o Capitão Severino da Silva Lessa experiente, por este ter sido nomeado para o cargo desde 1780, atuando

também nessa localidade do Cabula.

patente, o Sr. Severino da Silva Lessa para o cargo de Capitão de Entradas e Assaltos do Distrito do Cabula e demais freguesias como Pilar, Santo Antônio - que já inclui a localidade -, Pirajá e Brotas, com o argumento de que era necessário “evitar-se os continuados roubos, que cometem os negros foragidos, não só dessa cidade, mas os dos engenhos do seu recôncavo, juntando-se para isso em quilombos, dos quais fazem as maiores hostilidades” (AHU. C. A. Cx. 71, n. 13.649 – 13.650. Ano 1788). Complementando, o governador tece elogios ao referido capitão do mato, informando que este

[...] já havia ocupado este posto, com inteira satisfação, tendo antes servido de Porta Estandarte da Cavalaria Auxiliar desta guarnição, com honrado procedimento; e por esperar, que daqui em diante continuará muito conforme a boa confiança, que dele faço. (AHU. C. A. Cx. 71, n. 13.649 – 13.650. Ano 1788).

Logo após essa nomeação, seguiu-se outra. Utilizando-se do mesmo argumento, D. Fernando José de Portugal indicou o Sr. Innocencio de Campos para o cargo de Sargento-mor de Entradas e Assaltos do distrito do Cabula (AHU. Conselho Ultramarino (Brasil-Bahia). 005, Cx. 191, n. 14031. Ano 1790). Como se a fama da localidade não fosse suficiente, pelo que se verifica nas fontes disponíveis, as poucas informações obtidas na véspera da missão foram passadas pelos homens de confiança do governador.

O local escolhido pelos negros para a formação dos arraiais, denominado de quilombo do Cabula, instiga a suposição de que o favorecimento para morada oculta foi potencializado pelo rico suporte ecológico, o que pode ter ocasionado receio no Capitão de Entradas e Assaltos. Por outro lado, tratava-se de uma localidade que, embora fosse de difícil acesso em relação ao centro urbanizado da cidade, possibilitava certo dinamismo e trânsito de pessoas, abastecimento em relação às necessidades básicas como alimentos, vestuários, ferramentas para o trabalho dentre outros.

Nesse sentido, a comunidade do Cabula não se configura como um quilombo isolado, mas como arraiais integrados sutilmente ao contexto urbano. Essa sutil integração do quilombo ao centro urbanizado de Salvador reforça a ideia do conde da Ponte em manter o máximo de sigilo da missão, que já se mostrava perigosa. Não por acaso, ao assumir a liderança da expedição o Capitão de Entradas e Assaltos organizou sua força de combate, requisitando ao governo a formação de

um grupo especial e bem armado, que só ficou sabendo da missão no dia da execução. Esse grupo foi composto por oitenta homens selecionados da tropa de linha, oficiais do mato e cabos de polícia (AHU. Conselho Ultramarino. Brasil-Bahia. Cx. 149. n. 29815. Ano 1807).

Afirma-se que se tratou de um grupo especial, porque não era comum até o momento, nos planos de destruição a quilombos baianos, a participação da tropa regular compondo o grupo de combatentes. No aniquilamento do quilombo do Buraco do Tatu, mencionado no segundo capítulo, foram utilizados duzentos homens bem armados, dentre eles “granadeiros, índios da aldeia de Jequiriça e elementos que se ofereceram” para fazer parte do grupo (PEDREIRA, 1962, p. 586). Na destruição ao quilombo do Oitizeiro foram utilizados cinquenta homens nativos Kiriris, residentes da vila de Nossa Senhora de Nazaré da Pedra Branca, comandados por um Capitão de Entradas e Assaltos (REIS, 1996). Além disso, a ordem régia de 1799 informou que a utilização de tropas regulares deveria ocorrer apenas nos casos de grande força dos quilombos.

[...] Fica sua alteza real certo, a vista do oficio nº 511, de que Vossa Senhoria dará as competentes providencias para a extinção dos quilombos tão prejudiciais à segurança e interesses dessa capitania; assim como fica convencido de que é mais conveniente ao publico e a real fazenda, que estes ajuntamentos sejam atacados pelos Capitães de Assaltos, devendo auxiliá-los à Tropa Regular no único caso de uma absoluta necessidade pela força do Quilombo.

Palácio de Queluz em 13 de agosto de 1799. D.Rodrigo de Souza Coutinho. (APEB, Ordens Régias. n. 88, ano 1793 – 1799. fl. 22).

As tropas regulares eram as únicas pagas, por isso, a recomendação de que seus homens só fossem utilizados em casos de extrema necessidade. Assim, a audaciosa missão de destruição quase que simultânea aos ajuntamentos localizados no entorno do centro urbano, representou um momento importante para que o governo mostrasse mais uma vez sua intenção de controle das relações escravistas. Além disso, o porte do grupo, dos equipamentos e armamentos solicitados confirmam a complexidade, importância, periculosidade, necessidade de eficácia da missão e, principalmente, a força desses arraiais, dentre eles o Cabula.