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Empreender uma construção aproximada do quilombo do Cabula, com significações coletivas, não é tarefa fácil. Principalmente quanto se pretende articular

uma construção historiográfica convencional à história pública com aporte social. Nesse sentido, objetiva-se não só apresentar o espaço e seus prováveis acervos, mas acima de tudo a interação dos sujeitos sociais, sua vivência e conflitos. Isto é, uma dimensão da vida social dessa comunidade (BARROS, 2005). No âmbito dessa dimensão histórica, buscar-se-á abordar os modelos e mecanismos aproximados de organização social dessa comunidade, como a hierarquização social, códigos e comunicação social; os grupos e suas possíveis relações; a vivência em uma comunidade que vincula práticas do núcleo urbanizado da cidade e adapta ao contexto ruralizado; as relações de sociabilidades como religiosidade, festejos culturais e atividades desenvolvidas em prol da manutenção comunitária.

Diante do exposto, sublinha-se que raras são as bibliografias que discutem sobre o referido quilombo, com riqueza de detalhes que conduzam a construção de um design cognitivo para o desenvolvimento do museu virtual. Dentre essas, destacam-se as produções do historiador da escravidão João José Reis, que pautado na dimensão da história social apresenta efetiva contribuição sobre a história de resistência negra no Cabula em momentos distintos.

Outros estudos foram importantes para uma compreensão inicial sobre a temática, mas não apresentaram um aprofundamento satisfatório para construção de um museu virtual, como por exemplo o artigo "Os quilombos de Salvador" escrito por Manoel Antônio Santos Neto, estudioso dos movimentos pela emancipação dos negros, publicado no ano de 1984 na revista marxista "Princípios". De semelhante produção, o artigo "Os quilombos baianos", autoria de Pedro Tomás Pedreira, publicado na revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, no ano de 1862. Essas obras difundiram apenas um perfil generalizado sobre o quilombo do Cabula, respaldadas em um único documento, a carta no qual o governador geral do período, D. João de Saldanha da Gama Mello e Torres Guedes de Brito, 6º conde da Ponte, narrou a organização e ato de destruição do quilombo ao Visconde de Anadia, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos.

As demais obras consultadas, apresentaram informações lacônicas sobre a localidade do Cabula, como retalhos, que demandou esforço para pensar em uma lógica de comunidade. Todavia, mesmo as mais breves das informações bibliográficas consultadas instigaram novas investigações em fontes manuscritas e impressas em suas variadas tipologias documentais: ordenações Filipinas, cartas

expedidas ao rei de Portugal, cartas régias, cartas do governo a várias autoridades, correspondências recebidas de autoridades diversas, documentos do Conselho Ultramarino (também pelo Projeto Resgate), alvarás, portarias, escrituras de compra e venda de terras e cartografia histórica.

A priori, a pesquisa foi organizada por período, sendo considerado 1805-1809 – momento de vigência do governo do Conde da Ponte, que abarcou a destruição do quilombo do Cabula. Esse governante foi considerado um dos mais cruéis e intolerantes nas estratégias de controle, perseguições e punições aos escravizados. Suas ações não se restringiram às missões de ataques e destruições a quilombos, mas envolveu a proibição de batuques, acossamentos às práticas consideradas como feitiçaria, controle de horário de circulação de negros pelas ruas da cidade do Salvador, dentre outras (REIS, 2008).

Durante a fase de coleta da documentação, leituras e primeiras análises observou-se que o período estabelecido inicialmente seria extenso, devido ao curto tempo disponível e considerando a proposta da tese, em que a construção histórica, embora complexa, faz parte de uma abordagem mais ampla e interdisciplinar, que ainda contempla o desenvolvimento de um museu virtual em coletividade e para aplicabilidade dos sujeitos engajados na mobilização do turismo de base comunitária. Optou-se, então, por direcionar a busca dessas fontes para o ano de destruição do quilombo (1807) e anos posteriores. De fato, foi uma estratégia de pesquisa mais eficiente, pois a riqueza de conteúdo dos manuscritos passou a nortear a investigação. Primeiro porque aperfeiçoou o trabalho, segundo porque um documento remetia a outros documentos, que em alguns casos retrocedia ao contexto do período principal da investigação.

Na análise inicial das fontes ficou evidenciado que na dinâmica da administração do Conde da Ponte a comunicação entre governo e metrópole foi intensa, de forma que os principais documentos utilizados para o pensar histórico sobre o quilombo do Cabula foram as cartas expedidas ao rei e as ordens ou cartas régias. As primeiras foram significativas por relatar detalhes das operações, tanto em sua fase de planejamento, quanto execução e desfecho. As ordens régias demonstravam principalmente o retorno positivo da coroa para as ações empreendidas pelo Conde da Ponte.

Além das fontes mencionadas, que representaram a comunicação transatlântica, também a rede de comunicação interna auxiliou no desenvolvimento

da compreensão sobre a história do Cabula de forma mais aprofundada. As mais significativas foram as correspondências emitidas do governo para autoridades diversas, tais como para o capitão de entradas e assaltos, Severino da Silva Lessa; para o desembargador ouvidor geral do crime, Sr. Cláudio José Pereira da Costa; para o tesoureiro da câmara do senado, Francisco Pereira Álvares e para o sargento-mor das ordenanças da repartição norte.

As fontes oficiais analisadas (cuja grafia, para as citações diretas, foi atualizada), embora arraigadas de concepções punitivas e depreciativas, próprias da camada social dominante da época, revelaram nas entrelinhas a vivência e dinâmica social dos residentes do Cabula, que ficou mais completa no momento em que a pesquisa foi ampliada para a busca de documentação cartográfica. Os cartogramas utilizados são aproximadamente dos anos de 1850 e 1940139. Eles foram basilares para apresentar a delimitação espacial da localidade durante a existência do quilombo e mesmo após sua destruição. Muitas áreas indicadas nos manuscritos como em cartas e registros de escrituras de compra e venda de terras, puderam ser identificadas no cartograma, graças às poucas mudanças no uso e ocupação das terras do Cabula até a segunda metade do século XX.

Foram essas fontes manuscritas e cartográficas que analisadas e associadas às leituras da bibliografia disponível, ao diálogo constante com pesquisadores da corrente da nova historiografia da escravidão e moradores das comunidades, possibilitaram a construção da história de resistência negra da próxima seção.

3.2 TENSÃO, RESISTÊNCIA NEGRA E ARTICULAÇÃO URBANA NO QUILOMBO