• Nenhum resultado encontrado

A IURD e a domesticação do selvagem

No documento OS DEUSES DA ÁFRICA NO INFERNO UNIVERSAL (páginas 101-105)

CAPÍTULO IV – Do rito à razão

1- A IURD e a domesticação do selvagem

Para quem tem em mente uma ideia clássica de demônio, pode parecer estranho a relação dos seguidores da Universal com o mesmo. Essa impressão de intimidade com o maligno exige reflexão sobre diversos aspectos como, por exemplo, a origem de tal ideia, de como nos tempos atuais ainda pode prevalecer tal pensamento e como a IURD utiliza- se da ideia de demônio para falar a seus fiéis.

Neste sentido, a reflexão de Roger Bastide pode ser muito útil como chave de leitura para a relação da IURD com o demônio. Em seu livro O Sagrado Selvagem e Outros

Ensaios1, Bastide analisa a relação do homem pós-revolução francesa com a religião, onde a separação Estado-Igreja pode nos induzir à falsa ideia de uma cisão: A sociedade segue seu rumo e a religião terá seu lugar na esfera eclesial somente. Na verdade, segundo Bastide, nenhuma sociedade sobrevive sem religião.

O sentimento religioso se distingue do sentimento político; a Igreja se separa do Estado; da mesma forma, o poder judiciário e o pátrio poder tornam-se independentes. Os sociólogos deram a esse movimento o nome de divisão do trabalho social. Durkheim dedicou-lhe a sua tese de doutorado. Mas ele só quis enxergar o aspecto econômico do problema; fazendo isso, reduziu-o.

Essa falha talvez advenha do fato de esse sociólogo sempre ter pensado que a evolução conduzia a uma redução e, no limite, até a uma supressão do sentimento religioso. 2

Ao frequentar um culto na Igreja Universal do Reino de Deus, observamos que em pleno século XXI, ideias mais primitivas a respeito de religião ainda estão presentes. Embora a sociedade tenha evoluído inclusive em seus conceitos religiosos, encontramo- nos com forças religiosas sombrias manifestas sobre a forma de demônio. Mas esse tipo de demônio não é só encarregado de levar o ser humano a fazer o mal: é ele o próprio responsável pela ação má. E se a sociedade está repleta de problemas como a violência, o desemprego, a miséria, é o demônio o primeiro, e talvez o único responsabilizado pelas

1 BASTIDE, Roger: O Sagrado Selvagem e Outros Ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. 2 Cfr. BASTIDE, Roger, op. cit, p. 46.

misérias humanas. E essa capacidade de fazer o mal independe mesmo do envolvimento da pessoa com o demônio. A influência do mal pode mesmo vir de encomendas de terceiros, que oferecem trabalhos a determinadas entidades (demônios). Muitas vezes, o fiel nem sabe que tem determinada atitude por causa do demônio que ele nunca soube possuí-lo.

Na IURD, cada vez mais, Bastide se faz ouvir. Não se pode pensar a sociedade sem a ação de deuses e demônios, sem uma batalha entre o bem e o mal personificados. Segundo o autor, “ocorre que divisão não é divórcio. Pelo contrário. Se os elementos ontem reunidos, hoje separados, já não se conhecem, a sociedade já não pode funcionar: ela deixa de viver.” 3 O religioso é a base de uma análise social feita a partir da realidade

que cerca o fiel da Universal. A sociedade, um campo onde a religião precisa voltar a estar no centro para que haja perspectivas de um futuro onde se possa viver em paz.

Assim, a ideia de que o ser humano, na medida em que avançaria no conhecimento científico deixaria de lado as crenças religiosas cai por terra nessa perspectiva. Na Igreja Universal do Reino de Deus vem à tona uma ideia renegada até mesmo nos domínios do catolicismo, onde o demônio perde toda sua força como argumento moral, sobretudo após o Concílio Vaticano II que reconhece a contribuição das ciências humanas, sobretudo da psicologia, para explicar e amenizar uma gama de fenômenos tidos como demoníacos. É a ideia de demônio ganhando força novamente. É o sagrado que irrompe, ao mesmo tempo, de forma selvagem e domesticada na sociedade.

Selvagem, pela violência com que se manifesta em meio à assembleia; domesticado quando se põe a serviço do pastor no culto.

Assim, o Selvagem de Bastide se evidencia. Durante os cultos ele se mostra terrivelmente selvagem por um lado, pois usa da força, dos gritos, da violência até mesmo brutal. Os pastores usam da humilhação, da dominação, da força mágica das palavras, dos gritos, do poder dos óleos e dos objetos sacros. O demônio não hesita em submeter os seus possuídos ao ridículo. As mulheres possuídas pelas Pombas Giras revelam em público toda sua exuberante sensualidade e não escondem seus rebolados

nem sua libido. Seria humilhante se não fosse pelo objetivo final: a domesticação do selvagem por aqueles que não são possuídos.

A pessoa que é montada por uma divindade ou gênio já não sabe, de fato, o que está fazendo, corre o risco de se machucar, perdeu a consciência dos seus movimentos, principalmente no início da crise ou quando o transe é particularmente violento; é portanto necessário que outra pessoa, que pessoalmente não corre nenhum risco, já que não pode cair em crise, cuide dela. 4

Por outro lado, o demônio que se apresenta nos cultos da IURD não é o mesmo terrível diabo apresentado na idade média. Não vemos Lúcifer ou Belzebu manifestando- se nos cultos de exorcismo. Não é o terrível, poderoso e tenebroso diabo da idade média. Nesse sentido, manifesta-se completamente domesticado. É um demônio do dia-a-dia, que acompanha as pessoas nas funções mais corriqueiras, nas questões amorosas, nas tristezas e alegrias. Também se submete ao pastor, algo que um demônio absolutamente selvagem não o faria.

Na liturgia dos cultos da IURD o pastor tem como objetivo principal a “domesticação do sagrado selvagem”. Como o próprio Bastide ressalta, citando (e contestando) Weber, “toda a nossa cultura é uma cultura de razão, de ciência, do

progresso, que não deixa nenhuma área de nossa vida fora de seu domínio, nenhuma gratuidade possível...” 5 Assim, o responsável por domesticar o selvagem, o pastor, o

utilizará para doutrinar seus fiéis. O que vem das sombras terá, no discurso do pastor, a função de iluminar a assembleia.

E como o faz? Primeiro pela força da palavra. Ao falar em nome de Deus, obriga o selvagem a se manifestar. E no espaço sagrado, o selvagem se torna sagrado. Ao impedir que o demônio use de sua força física, com a “oração de amarração” do demônio, o pastor faz com que o selvagem se harmonize e ocupe seu lugar no culto. Depois é a hora de dar nome ao demônio. Na entrevista feita no palco, a primeira preocupação é dar o

4 Ibidem, p. 239. 5 Ibidem, p. 267.

nome do demônio. Desde a tradição bíblica, no Gênesis, nomear é exercer domínio sobre quem se domina. Pois bem, ao nomear o demônio, mais um passo é dado no processo de domesticação do selvagem.

E os nomes já dizem muito sobre quem se quer domesticar: tranca rua, exu da morte, pomba gira... São demônios que já dizem, em seus nomes, os males que provocam no indivíduo possuído.

O próximo passo é fazer a “teologia” do demônio. O selvagem, domesticado, se torna uma espécie de “ideal cristão às avessas”. Se o demônio faz com que a mulher traia o marido, é sinal que o fiel deve amar sem trair; se faz com que o fiel resista a dar o dízimo à igreja, é sinal que o verdadeiro fiel dá generosamente; se faz com que a pessoa seja invejosa, cultive intrigas e inimizades, o fiel deve agir ao contrário. Assim, o selvagem vai tomando seu lugar na igreja e na sociedade. O selvagem vai se tornando doméstico. E, finalmente, o selvagem sucumbe ao som da fala do pastor. SAI, SAI, SAI. É a irracionalidade sucumbindo ao som da racionalidade. É o poder do oculto destruído pelo poder do público. O selvagem é domesticado.

É essa uma chave de leitura para explicar os novos lugares que ocupam os demônios nos cultos da Universal. Se outrora estavam presentes em todos os cultos, talvez devido à força de sua selvageria na clientela que outrora frequentava a igreja, agora ocupa um lugar mais civilizado, com dia e hora para se manifestar. E mais! Tem também local exato para sua manifestação. Cultos maiores, mais organizados e, em consequência, em menor número também. Se outrora precisavam manifestar toda a sua força selvagem, agora bastam alguns exemplos e poucas entrevistas para que seja um elemento catequético para os fiéis.

O demônio, portanto, aparece cada vez mais domesticado. E cada vez menos os resquícios de sua selvageria têm destaque nos cultos da Universal. Precisa de licença dos encarregados de controlar o sagrado selvagem para manifestar tal selvageria. E tem dia, hora e local para fazê-lo.

Percorrendo esse longo caminho, concluímos que o demônio ou as entidades oriundas dos cultos afro-brasileiros demonizadas na doutrina da Igreja Universal do Reino de Deus, que outrora tinham protagonismo nos cultos da Universal, com todas

as características oriundas do universo afro-brasileiro tomadas como demoníacas, vai deixando de ser protagonista nesse cenário. Mudanças externas à igreja como a ascensão social das classes e a maior visibilidade da igreja acabam suscitando iniciativas internas devido a questões de ordem política ou da necessidade do convívio com a adversidade até mesmo por motivações jurídicas, acrescidas do objetivo empresarial que contempla a expansão e o lucro, transformaram o culto de exorcismo na Universal.

No documento OS DEUSES DA ÁFRICA NO INFERNO UNIVERSAL (páginas 101-105)