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O processo histórico de demonização das entidades

No documento OS DEUSES DA ÁFRICA NO INFERNO UNIVERSAL (páginas 81-100)

CAPÍTULO III – O afro no inferno universal

2- O processo histórico de demonização das entidades

Num contexto de escravidão, os negros trazidos da África, em sua maioria sudaneses (iorubás, nagôs, jejes e fanti-achantis) e bantos (que tiveram maior influência na cultura brasileira), veem-se em situação de opressão diante de um regime que não lhes confere status de pessoa.26 Diante do modelo dominador da família patriarcal, resta-lhes conservar os valores e tradições culturais trazidos da África, “um passado que a brutalidade e o cotidiano não podem apagar.”27 Com a

religião não foi diferente. Os termos calundu (de origem banto), batuque e batucajé designavam toda espécie de dança coletiva, cantos, músicas acompanhadas por instrumentos de percussão, invocação de espíritos, sessões de possessão, adivinhação e cura mágica.28 Os calundus são até o séc. XIX a forma de culto africano relativamente organizado, antecedendo às casas e terreiros de candomblé. O culto às divindades africanas era, originariamente, feito às escondidas nas matas e senzalas. Com a abolição da escravatura e a República em 1889, os negros acabam na periferia das cidades, nos cortiços e marcados por grande segregação racial, fruto da europeização da população e da mão de obra.

Os terreiros (...) tornaram-se também núcleos privilegiados de encontro, lazer e solidariedade para negros, mulatos e pobres em geral, que encontraram neles espaço onde reconstituir suas heranças e experiências sociais, afirmando sua identidade cultural. 29

A “família de Santo” foi a forma de organização que substituiu os grupos de referência dos negros e mulatos, destruídos pelo regime escravagista.

A religião do Candomblé, propriamente dita, incorpora elementos vários de origem africana (em sua maioria), indígenas e do catolicismo. Admite um ser supremo

26 Cfr. SILVA, V. G.: Candomblé e Umbanda. Caminhos da Devoção Brasileira, São Paulo, Ática, 1994, pp.

26- 30.

27 Ibidem, p. 30. 28 Ibidem, p. 42. 29 Ibidem, p. 56.

e Criador, Olorum (nagôs), Zambi ou Zaniapombo (bantos). Tal ser não é representado em tem culto organizado. Abaixo de Olorum, estão os Orixás. O pai e chefe de todos os orixás é Oxalá. É ele quem recebe todas as homenagens feitas a Olorum. É identificado no sincretisno com Jesus Cristo (Senhor do Bom Fim na Bahia). Abaixo de oxalá estão outras divindades, os Orixás. Estas várias divindades são representadas por objetos (água, pedras, contas, pedaços de ferro), considerados residências favoritas dos Orixás; ou então por insígnias (por exemplo, o machado alado de Xangô), mas nunca por figuras humanas. Os humanos, porém, são possuídos pelas divindades, e quando isso acontece são designados Oxês. Cada orixá tem sua maneira de dançar (de fazer dançar os que o recebem) e seus alimentos próprios. 30

Aparece, portanto aqui uma característica fundamental do Candomblé: a integração, seja ela de indivíduos com relação ao grupo, seja como forma de unir os negros à sua origem, ou mesmo proporcionar identidade social. Integra também o homem com a natureza e o cosmos regidos pelos orixás, numa relação harmônica. Não há aqui uma divisão para cultos de bem e mal, orixás bons e maus, candomblé benéfico e maléfico. O mesmo não se pode dizer da Umbanda.

2.1. Pré-demonização na Umbanda.

A Umbanda, como culto organizado, “teve sua origem nas décadas de 1920 e 3031, quando Kardecistas de classe média do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, passaram a mesclar com suas práticas elementos das tradições religiosas afro- brasileiras, e a professar e defender publicamente essa “mistura”, com o objetivo de torná-la legitimamente aceita, com o status de uma nova religião.” 32 Ela exprime uma

tentativa de reorganização consciente das religiões africanas, desfiguradas desde o século passado e que resistiam sob a forma da chamada macumba (São Paulo e Rio de Janeiro). A macumba passou a chamar-se umbanda, assumindo uma nova fase de

30 Cfr. CNBB LESTE 1: Macumba - Cultos Afro-Brasileiros - Observações Pastorais, pp. 15 - 17.

31 “Depois de 1930, temos a consolidação do movimento que se esboçava desde o séc. XIX: a

urbanização, a sociedade de classe, tornam-se realidades sociais. ” Cfr. ORTIZ, Renato, op. cit., p. 28. “... a relação Umbanda/sociedade urbano-industrial, não somente se manifesta no momento da emergência da religião, como ainda se conserva no meio atual da sociedade brasileira.” Ibidem p.46.

32 Cfr. SILVA, V. G.: Candomblé e Umbanda. Caminhos da Devoção Brasileira, São Paulo, Ática, 1994, p.

estruturação, onde predominavam as características espíritas, conservando-se do africanismo apenas os elementos compatíveis à vida das grandes cidades. 33

As origens afro-brasileiras da umbanda remontam ao culto às entidades africanas, aos caboclos (espíritos ameríndios), aos santos do catolicismo popular e outras entidades acrescentadas pelo Kardecismo popular.34 Em princípio, existem quatro gêneros de espíritos que compõem o panteão umbandista podendo ser agrupados em duas categorias: a) espíritos de luz: caboclos, pretos-velhos e crianças e b) espíritos das trevas - os Exus.35 O pensamento umbandista, de caráter acentuadamente dualista, se defronta com a ideia proveniente do kardecismo de que há, além dos espíritos puros, espíritos de segunda ordem, que necessitam passar por certas provas. Divide então estes espíritos em espíritos do bem, cultuados pela Umbanda e espíritos do mal, cultuados pela Quimbanda que opera com espíritos imperfeitos que se situam nos confins da escala espiritual.36 “A Umbanda justifica a sua existência com o combate à suposta ação maléfica, exercida pela Quimbanda através de seus Exus quimbandeiros.” 37 “A Quimbanda se apresenta portanto como a

dimensão oposta da Umbanda, ela é sua imagem invertida; tudo que se passa no reino das luzes tem seu equivalente negativo no reino das trevas.”38

Assim, os Exus, tomam uma conotação maléfica, fato que é impulsionado pelo sincretismo com o Diabo. Mesmo entre os umbandistas é comum velo como diabo. O próprio Valdeli Carvalho da Costa, que citamos anteriormente narra um depoimento de uma mãe de santo: “A mulher é tão astuta que enganou o próprio Diabo”, referindo-se a Exu.39 Outra narrativa deste tipo, agora por um babalaô (chefe de terreiro), está no livro do Dr. Boaventura Kloppenburg, também acima citado: “Assim é no terreiro o despacho ou padê de Exu. O deus-demônio é homenageado e logo a seguir se despedem dele para que se vá e não volte mais...”40. Fica clara a

33 Cfr. CNBB: Macumba - Cultos Afro-Brasileiros, CNBB LESTE 1 - Observações pastorais – 1972, p. 21. 34 Cfr. SILVA, V. G.: op. cit., p. 107.

35 Cfr. ORTIZ, R.: op. cit., p. 65. 36 Ibidem, pp. 79-80.

37 Cfr. COSTA V. C.: Umbanda. Os “Seres Superiores” e os Orixás/Santos, São Paulo, Loyola, 1983, p. 96. 38 Cfr. ORTIZ. R.: op. cit., p. 81.

39Cfr. COSTA. V. C.: op. cit., p. 286.

demonização do Exu a própria Umbanda, fato influenciado pelo sincretismo com o demônio católico.

No polo da esquerda, a umbanda (também o candomblé, em menor escala) absorveu a visão cristã que desde o colonialismo europeu na África associou o Exu ioruba ao Diabo, em razão das características já mencionadas (culto à sexualidade, fecundidade, etc.). Assim, enquanto no candomblé Exu é um orixá singular, na umbanda ele designa uma categoria (linha ou legião) que agrupa entidades masculinas (como Exu Veludo, Tranca-Rua, Exu Caveira, etc.) e femininas, conhecidas como pombas giras (Maria Padilha, Maria Molambo, Sete Saias, etc.). Por serem tidos na umbanda como entidades pouco evoluídas ou “anjos caídos”, os exus e pombas giras geralmente estão associados aos vícios e pecados humanos, sendo evi- dente sua relação mítica com as categorias sociais marginalizadas, como prostitutas, malandros, migrantes, etc. 41

A Igreja Católica colaborou, neste sentido, classificando como diabólicos os cultos de origem africana. “Durante as visitações, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição perseguiu e condenou muitos negros por ver seus encontros (com cantos e danças frenéticas) como invocações do demônio, espécies de orgias à semelhança dos sabás europeus. Os transes dos negros eram vistos como demonstração de possessão demoníaca e as adivinhações, sacrifícios e outras práticas eram bruxaria ou, então, “magia negra”.42 Em relação à Umbanda, na Igreja pré-conciliar, a atitude era de

desprezo e rejeição. Temia-se que os católicos, com pouca formação aderissem a ela. A ida a terreiros umbandistas era proibida. O católico deveria ter frente à Umbanda uma atitude de franca e total condenação.43 Uma verdadeira campanha contra os cultos afro-brasileiros é travada à medida que estes ganham destaque devido à adesão de intelectuais, sobretudo depois da semana modernista de 1922, quando a música e a literatura debruçam-se sobre o tema. Surgem as figuras de Jorge Amado, Dorival

41Cfr. SILVA, Vagner Gonçalves da: Concepções Religiosas Afro-Brasileiras e Neopentecostais: uma

análise simbólica. Revista USP, São Paulo, nº 67, p. 159.

42 Cfr. SILVA, V. G.: Candomblé e Umbanda. Caminhos da Devoção Brasileira, São Paulo, Ática,

1994, p.

34.

Caymmi que nas décadas de 1930 e 1940 trarão para a literatura o panteão da Umbanda e também o livro Casa-Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freire entre outros movimentos da pintura, música e literatura. 44 Tais movimentos fazem com que a Igreja pré-conciliar se dedique ao combate do Candomblé, Umbanda e Quimbanda, classificando-os como demoníacos.

2.2. No Cristianismo.

Ao se pensar em cultos de exorcismo na Igreja Universal do Reino de Deus, uma primeira intuição seria lembrar-se dos grandes exorcismos descritos na literatura sobre o assunto ou presentes em inúmeros filmes que abordam a temática. No entanto, o que se vê nos cultos nada tem em comum com os exorcismos clássicos. A resposta para tal se dá na ideia de demônio presente na IURD, que certamente não é a mesma da tradição judaico-cristã.

A tradição cristã herda não só do judaísmo o conceito de demônio. Inúmeras dominações do povo judeu por outros povos fizeram com que conceitos alheios ao judaísmo se infiltrassem na religião judaica. 45 Assim, no cristianismo primitivo, tal ideia, inclusive a do novo testamento vem carregada de elementos culturais que a tradição judaica recolheu ao longo dos séculos.

O conceito de Diabo, na época do Novo Testamento, já estava delineado nos seus aspectos básicos: 1) anjo rebelde expulso da corte celestial; 2) líder de um exército de espíritos maus, anjos decaídos ou demônios; 3) inimigo do bom Deus, submeteu ao seu domínio o mundo material; 4) tenta as criaturas humanas a fim de sujeitá-las ou destruí-las; 5) será derrotado pelo bom Deus no fim dos tempos. 46

Mas é da idade média que nos vem a ideia mais próxima de demônio, trazida até nós pela Igreja Católica Romana. Em tempos de inquisição, a Igreja procurava ver os mais diversos indícios da ação demoníaca em seus fiéis, promovendo o exorcismo e, em casos extremos, libertando o ser humano do poder das trevas através da morte

44 Ibidem, p. 100.

45 Cfr. OLIVA, Margarida: O Diabo no Reino de Deus. Por que proliferam as seitas? São Paulo, Musa

editora, 1997, p. 85.

cruel. Oliva (p. 91) afirma que “Viam-se demônios e ação diabólica por toda parte. Bruxas, feiticeiros, e hereges, judeus eram facilmente acusados de estar a serviço do Diabo”. Assim, instituiu-se um clima de medo, seja do diabo, seja da própria Igreja Católica que, por qualquer indício, podia punir uma pessoa com penas severas a fim de livrá-la do maligno.

A tradição protestante deu ao diabo uma conotação ainda mais poderosa. O fez um ser inteligente e poderoso, que busca o poder de forma sutil, infiltrando-se nas instâncias do poder humano a fim de dominar o mundo. Margarida Oliva, citando O Diabo no Imaginário Cristão de Carlos Roberto Figueiredo NOGUEIRA47 afirma que, segundo Lutero,

Nós somos corpos submetidos ao Diabo, em um mundo onde o Diabo é príncipe e deus. O pão que comemos, a bebida que bebemos, as vestimentas que usamos, até o ar que respiramos e todos os pertences de nossa vida corporal fazem parte de seu império.

Assim, configurou-se uma ideia de demônio perverso, libertino. O terrível e poderoso que tem o poder de se infiltrar na mente humana e possuí-la. Cabe à Igreja fazer saber ao povo quem é o demônio para preveni-lo das consequências de uma possível possessão, bem como cuidar para que todos fiquem livres do mesmo.

O encontro com a religiosidade nas Américas, nesse contexto, causará um impacto sem precedentes no processo de libertação da humanidade dos poderes do Demônio. Há o senso comum de que o diabo, expulso do mundo pelo poder da Igreja, refugiou-se nas Américas. Jean Delumeau, ao tratar da forma com que a igreja via os cultos dos nativos americanos afirma que estes eram tidos como satânicos. Segundo ele, “Os teólogos baseiam essa afirmação numa ideia negra da idolatria. Esta é qualificada de “diabólica”; não é uma forma errônea de religião natural, mas o começo e o fim de todos os males. ”48 O mesmo raciocínio será aplicado mais tarde, quando os

negros oriundos da África realizarem o culto aos seus antepassados no candomblé e umbanda.

47 Cfr. NOGUEIRA. Carlos Roberto Figueiredo: O Diabo no Imaginário Cristão. São Paulo, EDUSC, 2000. 48 DELUMEAU, Jean: História do Medo no Ocidente: 1300-1800, Uma Cidade Sitiada. São Paulo,

A atual doutrina católica sobre o demônio ilustra o abismo que há entre o catolicismo tradicional e o universo demonológico do neopentecostalismo. O concílio Vaticano Segundo (1962-1965), embora não tenha um capítulo sequer dedicado ao tema demônio, cita a figura demoníaca em diversas passagens de suas conclusões. Nelas, o demônio é apresentado como um tentador.

Estabelecido por Deus num estado de santidade, o homem, seduzido pelo maligno, logo no começo da sua história abusou da própria liberdade, levantando-se contra Deus e desejando alcançar o seu fim fora d'Ele. Tendo conhecido a Deus, não lhe prestou a glória a Ele devida, mas o seu coração insensato obscureceu-se e ele serviu à criatura, preferindo-a ao Criador. 49

E ainda:

Um duro combate contra os poderes das trevas atravessa, com efeito. toda a história humana; começou no princípio do mundo e, segundo a palavra do Senhor, durará até ao último dia. Inserido nesta luta, o homem deve combater constantemente, se quer ser fiel ao bem; e só com grandes esforços e a ajuda da graça de Deus conseguirá realizar a sua própria unidade. 50

Como se pode observar, a ideia de um duro combate travado contra o poder das trevas se faz presente na doutrina católica. Além disso, o dêmônio aparece no compêndio das conclusões como aquele que vive enganando e armando ciladas aos cristãos:

Mas, muitas vezes, os homens, enganados pelo demônio, desorientam-se em seus pensamentos e trocam a verdade de Deus pela mentira, servindo a criatura de preferência ao Criador (cfr. Rom.

49 Cfr. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n°13. 50 Ibidem, n° 37.

1,21 e 25), ou então, vivendo e morrendo sem Deus neste mundo, se expõem à desesperação final. 51

Quanto às ciladas:

Esforçamo-nos, por isso, por agradar a Deus em todas as coisas (cfr. 2 Cor. 5,9) e revestimo-nos da armadura de Deus, para podermos fazer frente às maquinações do diabo e resistir no dia perverso (cfr. Ef. 6, 11- 13). Mas, como não sabemos o dia nem a hora, é preciso que, segundo a recomendação do Senhor, vigiemos continuamente... 52

Os documentos presentes no compêndio do Concílio Vaticano II são traduzidos aos fiéis em forma de um catecismo. O catecismo da Igreja Católica procura dar-lhes uma noção mais aprofundada do que vem a ser o demônio. Há a insistência de que o mal existe em forma de pessoa a não somente quando é praticado pelos homens.

A primeira ideia presente no texto é de que o demônio é um anjo decaído.

Por trás da opção de desobediência de nossos primeiros pais há uma voz sedutora que se opõe a Deus e que, por inveja, os faz cair na morte. A Escritura e a Tradição da Igreja vêem neste ser um anjo destronado, chamado Satanás ou Diabo. A Igreja ensina que ele tinha sido anteriormente um anjo bom, criado por Deus. "Diabolus enim et alii daemones a Deo quidem natura creati sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali - Com efeito, o Diabo e outros demônios foram por Deus criados bons em (sua) natureza, mas se tornaram maus por sua própria iniciativa.53

E ainda:

Satanás ou o Diabo, bem como os demais demônios, são anjos decaídos por terem se recusado livremente a servir a Deus a seu

51 Cfr. Constituição Pastoral Lumem Gentium, n° 16. 52 Ibidem, n° 48.

desígnio. Sua opção contra Deus é definitiva. Eles tentam associar o homem à sua revolta contra Deus. 54

Algo que interessa a nosso estudo na doutrina da Igreja Católica Romana é o ato do exorcismo.

De modo geral, toma-se por exorcismo uma simples renúncia feita no ato do batismo, onde o fiel, ou em seu nome os padrinhos caso seja uma criança, renuncia a Satanás e suas obras.

Visto que o Batismo significa a libertação do pecado e de seu instigador, o Diabo, pronuncia-se um (ou vários) exorcismo(s) sobre o candidato. Este é ungido com o óleo dos catecúmenos ou então o celebrante impõe-lhe a mão, e o candidato renuncia explicitamente a satanás. Assim preparado, ele pode confessar a fé da Igreja, à qual será "confiado" pelo Batismo. 55

Há, no entanto, um exorcismo chamado solene, que deve ser praticado somente por sacerdote autorizado, com uma especial atenção aos casos geralmente considerados não uma possessão, mas um problema de ordem psíquica.

Quando a Igreja exige publicamente e com autoridade, em nome de Jesus Cristo, que uma pessoa ou objeto seja protegido contra a influência do maligno e subtraído a seu domínio, fala-se de exorcismo. Jesus o praticou, é dele que a Igreja recebeu o poder e o encargo de exorcizar. Sob uma forma simples, o exorcismo é praticado durante a celebração do Batismo. O exorcismo solene, chamado "grande exorcismo", só pode ser praticado por um sacerdote, com a permissão do bispo. Nele é necessário proceder com prudência, observando estritamente as regras estabelecidas pela Igreja. O exorcismo visa expulsar os demônios ou livrar da influência demoníaca, e isto pela autoridade espiritual que Jesus confiou à sua Igreja. Bem diferente é o caso de doenças, sobretudo psíquicas, cujo tratamento depende da

54 Ibidem, nº 414. 55 Ibidem, nº 1237.

ciência médica. É importante, pois, verificar antes de celebrar o exorcismo se se trata de uma presença do maligno ou de uma doença.56

Assim, o exorcismo passa a não ser mais uma prática corriqueira, mesmo para os sacerdotes católicos, significando que a possessão não é um elemento do cotidiano do católico. A ideia de que uma grande batalha foi travada e vencida por Jesus sobre o maligno sugere que o mal passa a existir nos atos dos seres humanos e não na possessão demoníaca.

Ao contrário, o que se vê na IURD é um cotidiano de exorcismos de entidades de todos os tipos e gêneros. Ao notar que, nos cultos da IURD há muitas manifestações de entidades femininas, se faz necessário destacar outro aspecto importante e bem explorado por Delumeau que foi a demonização do feminino, sobretudo durante a idade média pela teologia cristã. Segundo ele, a mulher é o agente de Satã por excelência. Procura resumir o discurso dos teólogos no seguinte parágrafo:

A ação manifesta dos Malleus, cuja ampla difusão acentuamos anteriormente, viu-se reforçada no final do século XVI e no começo do século XVII por um discurso eclesiástico de múltiplas facetas. E de início os teólogos demonólogos não deixaram de repetir o Malleus. Del Rio assegura que “quanto ao sexo”, o das mulheres é o mais suspeito” que ele é “imbecil” e “repleto de paixões vorazes e veementes”. Dominadas por sua imaginação, “não estando tão bem providas [quanto os homens] de razão nem de prudência, elas se deixam facilmente “decepcionar” pelo demônio.57

Além da posição oficial da Igreja, também a religiosidade popular brasileira tem sua maneira própria de ver o demônio, mais chamado por ela de Diabo. Segundo Margarida Oliva, a cultura popular brasileira já herdou do povo português um demônio diferente do divulgado pela Igreja de Roma. Para ela “havia dois tipos de Diabo soltos

56 Ibidem, nº 1673.

no Velho Mundo. O Diabo erudito e o Diabo popular.”58 Na visão dos populares

portugueses, segundo a autora, Diabo “são os demônios domesticados, familiares, a serviço de bruxas e feiticeiras que os conservam escondidos pelos cantos da casa, ou presos em garrafas ou anéis”.59 Este demônio é trazido para o Brasil e encontrar-se-á

aqui com a cultura indígena e, posteriormente, com a cultura afro. Como Oliva salienta: “trazido para cá, e mergulhado no sincretismo religioso da época colonial, o Diabo europeu se abrasileirou.” 60

Quando escreve “O Diabo na Terra de Santa Cruz”61, Laura de Mello e Souza

procura evidenciar como os elementos presentes nas três culturas (europeia, afro e indígena) somam-se para formar um novo conjunto de práticas ligadas à adivinhação e à cura dos males. Tais práticas foram até mesmo vistas como diabólicas pela Igreja e inquisição.62 Porém, podemos considerá-las como fundamentais para a concepção abrasileirada de demônio.

E assim o demônio brasileiro se firma com características bem mais abrandadas

No documento OS DEUSES DA ÁFRICA NO INFERNO UNIVERSAL (páginas 81-100)