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5 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA

5.6 A jurisdição constitucional na realidade jurídica e política brasileira

As teorias que buscam analisar, criticar e justificar a jurisdição constitucional precisam ser confrontadas com a realidade jurídica e política brasileira, em especial com o esboço delineado pela Constituição Federal de 1988.

O denominado constitucionalismo popular do autor norte-americano Jeremy Waldron não guarda correspondência com o controle judicial de constitucionalidade estabelecido na Constituição de 1988, bem como com a própria história das instituições políticas e jurídicas nacionais.

Diversamente da Constituição dos Estados Unidos, a Constituição do Brasil de 1988 expressamente estabelece a jurisdição constitucional quer na modalidade do controle abstrato-concentrado realizado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme a alínea “a” do inciso I do art. 102, quer na espécie concreta-difusa, empreendida por todos os juízes segundo dispõe o art. 5o, XXXV.

Embora não se deva idealizar o Poder Judiciário, não se pode também fazer o mesmo com o Poder Legislativo, ainda mais no Brasil no qual existe uma crise de representatividade do parlamento (SARMENTO; SOUZA NETO, 2012).

Talvez sua única contribuição pátria seja lembrar que a constituição nem é um documento exclusivamente jurídico, a demandar apenas uma interpretação realizada por experts jurídicos, mas um fenômeno também sociológico, cultural e político, cujo procedimento interpretativo envolve todos os cidadãos (STAMATO, 2009)

Na conhecida passagem de Peter Häberle (2000, p. 5): “Quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos co-interpretá-la. Toda atualização da Constituição, por meio de qualquer indivíduo, constitui, ainda que parcialmente, interpretação constitucional antecipada”.

Por outro lado, pode parecer à primeira vista que essa discussão acerca da legitimidade do controle judicial de constitucionalidade é irrelevante no caso brasileiro pois consagrada explicitamente no texto constitucional. Ocorre que, em razão do déficit de legitimidade da jurisdição constitucional, mesmo positivada ela precisa ser reafirmada diuturnamente, como um “plebiscito diário” (ENTERRIA, 1979 apud SAMPAIO, 2002).

Assim, embora a jurisdição constitucional brasileira não necessite de justificativa legal, “[...] encontram-se em aberto questões relativas ao seu alcance e profundidade, uma vez que elas não podem ser resolvidas por inteiro por meio de regramentos abstratos e prévios à prática jurisdicional” (MORO, 2004, p. 110).

A teoria procedimentalista de Ely sofre severas críticas de sua pretensão restritiva da atuação do Poder Judiciário o qual caberia funcionar como uma “orientação antitruste” sem qualquer valoração substantiva das leis. Michael Dorf e Laurence Tribe (2007, p. 37) expõem que mesmo a premissa procedimentalista de Ely não escapa de uma análise substantiva ao, por exemplo, analisar a igualdade de acesso político, pois “decidir que classe de participação demanda a Constituição requer uma teoria dos valores e dos direitos plenamente substantiva”.

Ademais, a teoria procedimentalista, em especial de vertente habermesiana, supõe uma “sociedade definitivamente emancipada”, diversamente da realidade de exclusão social brasileira, onde não teríamos ainda um espaço público consistente de deliberação, mas uma legislação que em geral espelha não a vontade geral, mas a própria exclusão social nacional (STRECK, 2014).

A Constituição Federal de 1988, de evidente natureza compromissória, é impregnada de diversas normas fundamentais substantivas, inclusive de direitos sociais, que extrapolam uma relação direta com o processo de deliberação política conforme preceituado pela teoria procedimentalista.

Sem embargo, a teoria procedimentalista tem a relevância de ressaltar a equânime participação popular no processo de uma deliberação pública racional, afastando-se teses

elitistas da jurisdição constitucional, e pode ser aproveitada para graduar a intensidade da intervenção judicial na decisão política (MORO, 2004).

Caberia à jurisdição constitucional brasileira, portanto, levar a sério esses direitos fundamentais consagrados no texto constitucional, mesmo que contrariando a vontade momentânea da maioria, o que redunda necessariamente numa abordagem substancialista da jurisdição constitucional.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal não pode cair na tentação de se transformar de maneira antidemocrática na “mais alta instância moral da sociedade” a quem competiria a interpretação dos valores e dos direitos da comunidade (MAUS, 2000).

Também esse excesso de “paternalismo estatal” pelo Supremo Tribunal Federal poderia levar à perda da autonomia pública, “ao gozo passivo de direitos” por parte dos cidadãos que enfraqueceria a mobilização política popular (HABERMAS, 2003, v. 1).

Sem embargo, como bem ressalta Lenio Streck (2014), diversamente da Alemanha e dos Estados Unidos, o grau de inefetividade do texto constitucional na realidade brasileira tornou a jurisdição constitucional praticamente indispensável para realizá-lo.

Assim, o Poder Judiciário no Brasil vem se transformando numa “nova arena pública”, para além do modelo clássico “sociedade civil-partidos-representação-formação majoritária”, no qual os procedimentos políticos cedem lugar aos processos judiciais (BURGOS et al., 1999).

Talvez a principal crítica ao modelo de jurisdição substantiva de Dworkin seja a figura do “Juiz Hércules” que pela sua virtude identificaria os direitos fundamentais e os aplicaria como “carta de trunfo” contra a maioria. Um juiz que não participaria de um diálogo com a sociedade. “Suas narrações construtivas são monólogos. Ele não conversa com ninguém, a não ser com seus livros. Não tem nenhum enfrentamento. Não se encontra com ninguém” (MICHELMAN, 1994 apud SAMPAIO, 2002, p. 87).

No Brasil estão sendo adotadas medidas para fortalecer a legitimidade do Supremo Tribunal Federal, como a audiência pública e o amicus curiae, que expressam uma abertura da Corte Constitucional para um diálogo com a sociedade.

Bem anota Daniel Sarmento e Souza Neto que tensão entre o Poder Judiciário e a democracia existe porque a restrição às maiorias pelo Poder Judiciário seria justificada em nome do ideal democrático na proteção dos direitos fundamentais, mas seu excesso pode se revelar antidemocrático, por sufocar o povo na sua liberdade de autogovernar. Mas, no Brasil, “a dificuldade democrática pode não vir do remédio – o controle judicial de constitucionalidade – mas de sua dosagem” (SARMENTO; SOUZA NETO, 2012, p. 36).