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1.3 SISTEMA JURÍDICO – ELEMENTOS ESTRUTURAIS

1.3.3 A Jurisprudência

A jurisprudência caracteriza-se como elemento que compõe e estrutura o sistema jurídico não só porque pode assumir caráter normativo e, portanto, vinculante (CF, arts. 102, § 2º e 103-A), mas fundamentalmente pelo fato inegável de que juízes e tribunais orientam-se por precedentes jurisprudenciais, mesmo que não sejam atribuídos a tais precedentes os aludidos efeitos vinculantes.

Além disso, também as autoridades administrativas, quando fazem a interpretação e aplicação do Direito, levam em consideração a jurisprudência. E isto não só quando se trata de decisão judicial de efeitos vinculantes, mas também em casos em que a jurisprudência consolidou-se num determinado sentido por decisões reiteradas na mesma direção.158

Ademais, ainda que o Direito brasileiro não esteja histórica e originariamente vinculado à doutrina do precedente, oriunda do sistema do common law anglo-saxão, mesmo assim não há como negar que tribunais, juízes e autoridades administrativas orientam-se por precedentes, e isto não propriamente em razão da autoridade do precedente, ou da hierarquia do órgão de origem, mas principalmente em razão da força de convicção que decorre da justificação de fundamentabilidade e da

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O Poder Executivo Federal expediu Decreto que possibilita à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional determinar as matérias em que fica dispensado o dever de recorrer, mediante parecer fundamentado aprovado pelo Ministro da Fazenda, nos casos em que haja jurisprudência reiterada e uniforme dos Tribunais Superiores. Nesse sentido é o disposto no art. 5º do Decreto nº 2.346, de 10 de outubro de 1997, que assim estabelece:

“Art. 5º Nas causas em que a representação da União competir à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, havendo manifestação jurisprudencial reiterada e uniforme e decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, em suas respectivas áreas de competência, fica o Procurador-Geral da Fazenda Nacional autorizado a declarar, mediante parecer fundamentado, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda, as matérias em relação às quais é de ser dispensada a apresentação de recursos.”.

justiça contida nos precedentes, e até mesmo da autoridade intelectual, científica e moral, daqueles que compõem o órgão do qual advém o precedente.

Mesmo que se possa ainda discutir, a despeito desse contexto, o caráter

da jurisprudência como fonte do Direito,159 o fato é que não se pode negar que a

jurisprudência condiciona não só a interpretação e aplicação do Direito, mas também a atividade do legislador, visto que não são raras as disposições de lei que vêm para consagrar – e, nesse ponto, às vezes até desnecessariamente – uma posição ou um direito que decorre da jurisprudência firmada nos tribunais.

A doutrina reconhece na jurisprudência dois modelos distintos de atuação. Um subordinado, em que o juiz aplica normas gerais ao caso concreto, e outro

autônomo, envolvendo o poder de criar regras jurídicas nas lacunas do ordenamento.160

Na verdade, no Direito brasileiro, os juízes não só aplicam as normas aos casos concretos, mas também não podem deixar de decidir, nesses casos concretos, alegando lacuna, omissão ou obscuridade da lei, estando em certos casos, autorizados

legalmente a proceder quase como se fossem legisladores.161

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ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica – A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 264 e 267. Na obra referida, embora o autor não aprofunde a discussão da jurisprudência como fonte do Direito, não deixa de referir, de certo modo, o caráter normativo na utilização do precedente. Eis suas palavras (op. cit. p. 268): “O uso de um precedente significa a aplicação da norma que subjaz à decisão do precedente. ‘O Direito do precedente é também um Direito de normas’. A questão é o que se deve considerar como norma, do ponto de vista do precedente.” (O destaque é do autor).

160

REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito – Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Ed. Saraiva, 1994, p. 70. A respeito dessa temática o autor assim se pronuncia: “Vêm daí duas espécies de modelos jurídicos jurisdicionais: uns subordinados, ou de segundo grau, na medida em que consubstanciam aplicações in concreto daquilo que in abstracto se configura no modelo legal; e outros autônomos, e são os modelos jurisdicionais por excelência, cuja existência decorre da correlação de dois princípios jurídicos fundamentais, a saber: a) o juiz não pode deixar de sentencia a pretexto de lacuna ou obscuridade da lei; b) quando a lei for omissa, o juiz procederá como se fora legislador.” (Os destaques em itálico são do original).

161

Nesse sentido, podem-se citar os seguintes exemplos da legislação brasileira, sem pretensão de exaustividade:

“Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-lei nº 4.657/1942, alterado pela Lei nº 12.376/2010:

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Nessa linha de raciocínio, é de se reconhecer que não são incomuns situações em que a jurisprudência modifica e até mesmo cria direito, como, v. g., no Direito Tributário, em que um determinado fato, tido antes por tributado, passa, posteriormente, em razão de uma decisão jurisprudencial, a não ser mais tributado, o que pode ocorrer por variados fundamentos jurídicos.

Um exemplo característico que pode ser lembrado, nesse sentido, é o da locação de bens móveis, em que o STF entendeu que locação não se caracteriza como Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.

Art. 127. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.

Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.

Art. 1.109. O juiz decidirá o pedido no prazo de 10 (dez) dias; não é, porém, obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna.

Código de Processo Penal:

Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

Código Tributário Nacional:

Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:

I - a analogia;

II - os princípios gerais de direito tributário; III - os princípios gerais de direito público; IV - a equidade.

§ 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. § 2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.

Consolidação das Leis do Trabalho:

Art. 8º As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

Parágrafo único. O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.

Lei nº 9.099 de 20 de setembro de 1995:

Art. 6º O juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.”

prestação de serviço, embora a jurisprudência anterior da mesma Corte entendesse

que locação era prestação de serviços.162 A partir desse precedente do STF, a

jurisprudência, inclusive a do STJ, passou a entender que a locação de bens móveis não é mais tributada porque não é prestação de serviços tributável pelo ISSQN municipal.163

Na verdade a jurisprudência é a chamada norma de decisão, que decorre da interpretação e aplicação do Direito, levada a efeito no caso concreto pelo Judiciário, diferente da norma jurídica de decisão elaborada pela dogmática que decorre da interpretação e aplicação do Direito feita pelos juristas, que, embora também possa ser decisória quanto à escolha de um conteúdo de significado entre muitos, podendo ser

formulada tanto de modo abstrato,164 como de modo concreto diante de fatos reais ou

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Recurso Extraordinário nº 116121/SP. Relator Min. Octávio Gallotti, Rel. p/o acórdão Min. Marco Aurélio. Julgado em 11 out. 2000, maioria, DJU de 25 mai. 2001, p. 17. Disponível em: <http://www.stf.gov.br> Acesso em: 22 mar. 2006. A ementa do acórdão referido está assim redigida: “TRIBUTO - FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS - CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável - artigo 110 do Código Tributário Nacional.” Observe-se que anteriormente a jurisprudência da Corte Máxima era no sentido de que o mesmo fato era tributado pelo imposto municipal, conforme se vê pelo seguinte precedente: “ISS - LOCAÇÃO DE BENS MÓVEIS, EXPRESSAMENTE INCLUIDA NO ITEM 52 DA LISTA DE INCIDENCIA. 'IN CASU', CARACTERIZADA COMO LOCAÇÃO DE MÓVEIS E NÃO 'LEASING'. CONCEITO DE 'SERVIÇOS'. ART. 18, PARAGRAFO 5. DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO PREQUESTIONADO; ART. 24, II, NÃO VIOLADO. CABIMENTO PELA ALINEA 'C' INDEMONSTRADO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Recurso Extraordinário nº 113383/SP. Rel. Min. Oscar Correa. Julgado em 22 mar. 1988, unânime, DJU de 29 abr. 1988, p. 9849. Disponível em: <http://www.stf.gov.br> Acesso em: 22 mar. 2006.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial nº 615161/PB. Rel. Min. Eliana Calmon. Julgado em 01 set. 2005, unânime, DJU de 19 set. 2005, p. 269. Disponível em: <http://www.stf.gov.br> Acesso em: 22 mar. 2006. A ementa do acórdão tem o seguinte teor: “TRIBUTÁRIO – ISS – LOCAÇÃO DE BENS MÓVEIS – ILEGALIDADE – OFENSA AO ART. 565 DO CC – PRECEDENTE DO STF NO RE 116.121/SP. 1. O Decreto-lei 406/68 (com a redação dada pela LC 56/87), contemplou, no item 79 da Lista de Serviços anexa, a locação de bens móveis como passível de incidência do ISS. 2. O STF, no julgamento do RE 116.121-3/SP, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da exigência, restando assentado que a exigência de ISS sobre locação de bem móvel contraria a Lei Maior e desvirtua institutos de Direito Civil. 3. Segundo o Código Civil, na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição, enquanto que a prestação de serviços envolve diretamente o esforço humano. 4. Recurso especial conhecido em parte e provido.”

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GUASTINI, Riccardo. L’interpretazione dei documenti normativi. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2004, p. 85/86. Analisando a chamada ‘interpretação doutrinal’ e a ‘interpretação judicial’ o autor

imaginários.165 É claro que a norma assim formulada pela doutrina não é vinculante, a não ser que seja adotada por um juiz ou por um funcionário administrativo.

Assim, a jurisprudência, considerada ou não como fonte do direito – a questão é irrelevante, no ponto, para efeito deste estudo – é elemento que produz, altera e recompõe o sistema operando por dentro, à maneira autopoiética, como parece ser de constatação evidente pelo que foi exposto.

É de ressaltar, por fim, que, seja como fonte do Direito, seja como elemento interpretativo que contribui para formulação de normas jurídicas, a jurisprudência tem, nessa medida, um papel modificativo do Direito e por isso tem influência e é importante para a configuração dos limites do poder regulamentar, especialmente no que respeita ao controle judicial dos atos da Administração.