• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1: INJUSTIÇA, GÊNERO E EDUCAÇÃO

1.1 A justiça/injustiça segundo alguns teóricos e suas contribuições

A justiça faz parte de um corpus de questões recorrentes aos debates e reflexões dos indivíduos que é datado desde o próprio princípio da formação do pensamento humano. São inegáveis as evidências que formam os quadros de reflexão sobre o que é justo ou injusto em determinadas culturas, sociedades, classes sociais e povos. Este é um tema que está presente nas conversas cotidianas das pessoas e, em algumas situações, as discussões sobre a justiça ou sobre os tipos de tratamento justo a determinadas pessoas ou situações se evidenciam de forma mais acentuada, como é o caso, por exemplo, das recorrentes ondas de violência, dos crimes bárbaros, dos escândalos políticos. Através destas situações, evidencia- se a revolta da população ante a impunidade e a falta de controle por parte das instituições sociais diante da violência, do medo e da corrupção. No entanto, o que temos assistido cotidianamente faz-nos (re)pensar sobre a eficácia destas instituições, dos valores que marcam as vivências sociais e as normas que regem o viver diário.

Diante deste quadro, a justiça e o estudo da justiça merecem um aprofundamento na medida em que estão, intrinsecamente, relacionados à grande parte das questões que rodeiam o construir humano e as interações sociais.

De acordo com Rodrigues, Assmar e Jablonski (1999), ainda que de formas diferentes, as respostas e os conceitos que se constroem acerca da justiça se baseiam na necessidade de um tratamento justo no que se refere aos diferentes espaços da vida social.

O estudo da justiça, enquanto um fenômeno psicossocial, complexo e multifacetado, empresta significado a uma série de manifestações grupais ou individuais, que marcam a vida das pessoas em sociedade. Pode-se mesmo afirmar que tanto os movimentos reivindicatórios organizados e os atos contestatórios de natureza puramente individual quanto os conflitos sociais e os atos de violência grupal e pessoal podem ser explicados, em certa medida, por um elemento comum: a percepção de injustiça subjacente

a todas essas instâncias (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 1999, p. 291).

Assim, a partir de Rodrigues, Assmar e Jablonski (1999), é possível afirmar que foi em 1961 que surgiu a Psicologia Social da Justiça, a partir da obra de George C. Homans: Social behavior: Its elementary forms, fazendo assim, com que a justiça assumisse um ramo específico dentro da Psicologia Social cujo enfoque era o de evidenciar a importância que os valores, crenças, sentimentos e concepções das pessoas sobre o que se considerava justo/injusto tinham sobre as ações e sobre as interações humanas. Nesse sentido, a principal preocupação voltou-se para o sentido subjetivo que a justiça assumia nas interações sociais e que não estavam necessariamente vinculadas a fontes teóricas.

Ainda de acordo com, Rodrigues, Assmar e Jablonski (1999), o desenvolvimento da pesquisa e da teoria sobre a justiça data da década de 40 e este percurso histórico pode ser evidenciado por meio de quatro fases.

A primeira fase esteve relacionada ao conceito de privação relativa, isto é, se buscou explicar o grau ou o nível de satisfação e insatisfação do sujeito para com a distribuição dos bens ou serviços em função da comparação entre o que ele tinha e o que julgava ou sentia merecer. A segunda fase foi caracterizada pelo estudo da justiça distributiva que se desencadeou em duas grandes áreas; uma delas foi a percepção de injustiça, que tratou da concepção que as pessoas tinham sobre injustiça e como achavam ser justa a distribuição de bens entre elas e os outros; e a outra área foi sobre a reação de injustiça que investigava como as pessoas reagiam a situações em que se percebiam injustiçadas por outras. A terceira fase relacionou-se aos estudos sobre a justiça processual ou a justiça dos procedimentos, que buscavam analisar a justiça dos meios utilizados para se resolver um determinado conflito ou de processos de repartição entre os envolvidos na situação.

A fase mais recente, e com pouco desenvolvimento, é a fase da justiça retributiva, cujo foco central é a preocupação em como as pessoas reagem à infração das regras ou leis e como deveria ser a atribuição de responsabilidades. A ênfase recai, portanto, nos sistemas de punição e sanções.

Diante disso, duas principais abordagens teóricas enfocam a justiça: a unidimensional e a multidimensional.

As teorias sobre a justiça que se sustentam na abordagem unidimensional adotam como princípio básico, único, a eqüidade; isto é, a justiça é entendida como proporcionalidade, de modo que cada um deve receber algo de acordo com seu merecimento, sua colaboração ou sua contribuição em relação aos outros.

Podem ser enquadrados neste tipo de abordagem os estudos de Homans (1961 apud Rodrigues; Assmar; Jablonski, 1999), que enfocavam os casos nos quais os indivíduos se sentiam injustiçados por não receberem a quantidade de recompensas que acreditavam merecer quando se comparavam com outros; ou os estudos que analisavam as conseqüências da ausência de eqüidade nas relações humanas de troca, como os de Adams (1965 apud Rodrigues; Assmar; Jablonski, 1999).

Além disso, a partir da década de 70, com Walster e colaboradores (1978 apud Rodrigues; Assmar; Jablonski, 1999), o campo de ação desta teoria, antes limitada ao contexto das organizações do trabalho, foi ampliado e a teoria da eqüidade passou a ser uma teoria geral da justiça, utilizada para explicar as interações sociais. Sua versão da teoria representava uma tentativa de integração de um complexo de “formulações da teoria da troca social, teoria da dissonância cognitiva, teoria psicanalítica e teoria comportamental” (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 1999, p. 303), por isso poderia vir a ser uma teoria geral do comportamento social. O núcleo central da teoria de Walster pode ser apresentado por um conjunto de quatro pontos essenciais: a) os sujeitos tentariam maximizar seus

resultados considerando as recompensas e os custos; b) os grupos poderiam maximizar a recompensa coletiva, de modo que os indivíduos que mais colaborassem seriam recompensados e aqueles que contribuíssem menos seriam punidos, eqüitativamente, por aumento de custos; c) uma situação de iniqüidade levaria o sujeito a uma tensão psicológica que seria proporcional ao tamanho da iniqüidade; e, esta tensão poderia ser sentida pelo vitimizador através do medo de retaliação e, pela vítima através da perda de auto-estima

(distress); d) a tensão que resultaria da iniqüidade conduziria o sujeito a tentar diminuir ou

eliminar a tensão de modo que a eqüidade pudesse ser restaurada, de forma real, através da mudança da distribuição percebida dos recursos; ou através da distorção psicológica da percepção da situação injusta por meio da distorção da realidade com base nos elementos cognitivos.

Assmar (1995b apud Rodrigues; Assmar; Jablonski, 1999) realizou uma pesquisa no Brasil que investigou se vítimas e beneficiários de uma situação injusta se diferiam no julgamento e na reação a uma mesma situação em que foram, respectivamente, prejudicados e favorecidos por uma decisão iníqua. Os resultados da pesquisa demonstraram que os sujeitos brasileiros não julgavam as situações de injustiça com a intensidade predita pela teoria da eqüidade e que os sujeitos que se beneficiaram da injustiça a julgaram de forma menos injusta do que em relação aos sujeitos que foram vítimas da injustiça. O grau de interação dos sujeitos não provocou diferenças nos julgamentos, mas, revelou reações distintas das enfocadas pela teoria.

De modo geral as críticas em relação à teoria da eqüidade foram relacionadas por Mikula (1980 apud Rodrigues; Assmar; Jablonski, 1999), a partir de duas linhas: uma delas enfocou a extensão e o valor superestimados da justiça nas relações sociais; e a outra linha tratou de abordar o caráter exclusivo com que a norma da eqüidade era tratada nas situações em que a justiça poderia ser prevalecente.

De outro lado, as teorias sobre justiça que se apóiam numa abordagem multidimensional, abrangem uma gama variada de formas simultâneas de se fazer justiça em uma determinada situação, onde cada uma destas formas pode ser justa de acordo com a situação em questão. Esta concepção de justiça foi resultado de um movimento surgido entre os psicólogos sociais em reação à idéia de que a eqüidade seria o único princípio válido para a análise e solução dos problemas que envolviam a justiça.

Um dos autores que contribuiu significativamente com este tipo de abordagem foi Deutsch (1975/1985 apud Rodrigues; Assmar; Jablonski, 1999), que conceituava a justiça como a distribuição de bens e condições que interfeririam no bem-estar das pessoas afetando aspectos sociais, econômicos, psicológicos e fisiológicos. Além disso, Deutsch acreditava que determinados valores definiam a justiça e por isso concentrou seus esforços na verificação da escolha dos valores predominantes na determinação dos vários sistemas sociais de distribuição de bens.

Segundo Rodrigues, Assmar e Jablonski (1999), no Brasil foram realizadas várias pesquisas sobre justiça distributiva, a partir da perspectiva multidimensional, que tiveram por objetivo investigar a preferência pela eqüidade, igualdade ou necessidade e suas correlações com as variáveis psicológicas e situacionais. De forma geral, os resultados podem ser sintetizados a partir das seguintes tendências: a primeira das tendências revelou a preferência pelas distribuições igualitárias dos recursos; de outro lado, a escolha da eqüidade foi mais freqüente quando se tratou da prescrição de repartições iguais de recompensas entre os participantes. Foram poucos os indícios que apontaram a possível relação entre os traços de personalidade e a escolha da base de valores que regulassem a distribuição dos bens entre os integrantes de um certo grupo.

A partir da década de 70, quando começaram os questionamentos acerca da exclusividade das distribuições de recursos como finalidade das questões sobre justiça, os

teóricos passaram a defender, também, a idéia de que as questões sobre justiça envolviam os procedimentos através dos quais a justiça podia se estabelecer.

De modo geral, as teorias da justiça processual postulavam que as pessoas se interessariam pelos modos e processos através dos quais os resultados seriam distribuídos pelos membros de certos grupos. Deste modo, além de avaliar os resultados, se levaria em consideração os processos de tomada de decisão que eram utilizados na formalização destes resultados.

Foram representantes deste tipo de pensamento Thibaut e Walker (1975 apud Rodrigues; Assmar; Jablonski, 1999), que apresentaram a teoria do controle da justiça processual. Segundo eles, as pessoas agiriam segundo seus próprios interesses quando estivessem em interação com outras e julgariam a justiça dos procedimentos apreciando o grau de controle direto, quando se tratasse dos resultados, e controle indireto para a solução de impasses gerados pelos conflitos.

Além desses modelos de justiça apresentados há uma teoria sobre a justiça que se baseia na fenomenologia da injustiça na vida cotidiana. No entanto, são poucos os estudos que vão nesta direção e há pouca disponibilidade dos estudos que abordam a sensibilidade diferencial à injustiça relacionada às vítimas e aos vitimizadores. A linha argumentativa desta teoria está relacionada ao modo que as pessoas pensam e se sentem quando estão de frente a situações injustas e como isso orienta suas ações, levando em consideração o relato das pessoas sobre experiências vividas no cotidiano, solicitando que elas evidenciem seus pensamentos e sentimentos em relação ao ocorrido.

Mikula (1985 apud Rodrigues; Assmar; Jablonski, 1999), partilhando deste tipo de interpretação teórica da justiça, a partir dos conteúdos relatados pelos participantes de suas pesquisas sobre situações de injustiças vivenciadas, propôs um sistema de classificação dos tipos de injustiças, analisando as relações entre cognição, emoções e ações evidenciadas

pelos sujeitos. Os resultados indicaram que as pessoas utilizaram a palavra injustiça de forma mais livre e mais ampla do que os psicólogos sociais fazem, apesar de terem comparecido eventos que estiveram coerentes com a descrição científica. Os tipos de injustiça mais relatados foram os de acusação sem justificativa, ou atribuir responsabilidades não devidas; depois apareceram a avaliação injusta ou o não reconhecimento de esforços empreendidos, e, a violação de promessas. Percebeu-se, também, que poucos indivíduos conseguiram restaurar a justiça e continuaram a sentir a injustiça por algum tempo depois do ocorrido; isto demonstrou que apesar de não negar a ocorrência da injustiça, os sujeitos descartaram a possibilidade de intervir diretamente no sentido de ação contra a injustiça vivida. As principais emoções relacionadas às injustiças que os sujeitos apresentaram foram: raiva, ódio, indignação, e secundariamente surpresa, desamparo e tristeza.

A presente pesquisa pode ser enquadrada nesta forma de investigar a justiça. Nosso foco foi as injustiças ocorridas no dia-a-dia de crianças e adolescentes de diferentes tipos de escolas, tal como sentidas e relatadas por eles(as) através de queixas observadas ou por meio de respostas dadas ao questionário que aplicamos. Analisamos estes dados apoiadas, também, na Teoria das Representações Sociais que nos embasaram, teórica e metodologicamente, para uma leitura contextual, social e cultural.

1.2 Contribuições das teorias de Piaget e Kohlberg para os estudos sobre