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CAPÍTULO 4: RESULTADOS DAS OBSERVAÇÕES: AS INJUSTIÇAS VIVIDAS NAS

4.4 Falas e/ou queixas sobre as relações de gênero e cotidiano escolar

As observações realizadas em salas de 5ª. série do ensino fundamental e 1ª. série do ensino médio que fizemos em escolas particulares e públicas no município de Presidente Prudente (SP), em diferentes disciplinas da grade curricular destas séries, mostraram-nos que em diferentes momentos e situações, ficou evidente que as relações de gênero fazem parte do cotidiano escolar das crianças e adolescentes e que as concepções que se constroem acerca destas relações são múltiplas. Como exemplo podemos descrever as situações em que isto se tornou evidente ou explícito.

A professora demora a chegar. Alunos e alunas ficam na sala, um grupo de meninos canta. Alguns(as) saem da sala; voltam. A conversa e a dispersão continuam. Depois de um certo tempo a inspetora avisa que a professora não vem. Os meninos são os primeiros a saírem da sala. Um menino tem uma bola nas mãos; desce as escadas para o pátio acompanhado de um grupo de meninos; alguns(as) permanecem na sala. Uma menina pergunta para a outra: “Para onde vamos

agora?”. Outras duas meninas vão descendo as escadas e uma delas

fala: “Isso é jogo de macho” e a outra responde: “Deixa de ser

machista”. Dois grupos mistos permanecem na sala: um dos grupos

conversa e o outro grupo escreve alguma coisa, parece um pequeno texto coletivo. Bate o sinal. Aos poucos todos voltam.

(Meninas, aula de Ciências, ensino fundamental, escola particular 1, período matutino)

Uma menina (grávida) começa a falar que não quer trabalhar e que se o pai do filho dela não pagar pensão ele será preso todo mês. A professora vai ao fundo da sala e começa a me falar, espontaneamente, sobre os(as) alunos(as) e pergunta alto quanto anos tem o filho de uma menina e pergunta a idade dela (15 anos de idade) e seu filho (1ano e 3 meses). Pergunta a idade da aluna grávida (15 anos) e fala que a realidade da escola é difícil; fala que uma menina já entrou e saiu várias vezes e que a menina não sabe nada, fala que tem um aluno que é homossexual (faltou hoje), assumido, que tira sobrancelhas na aula, que fala palavrões e que é “um horror”.

(Aula de Matemática, ensino médio, escola pública, período noturno).

A aula de Ética foi também um desses espaços de construção e formação daquilo que se entende, ou vai se entender, como ser homem e ser mulher nas sociedades contemporâneas. A descrição abaixo, de uma aula de Ética, ocorrida numa escola particular, numa das salas de 5ª. série do ensino fundamental nos dá uma idéia de como a escola e seus mecanismos de formação colabora na construção das identidades, dos valores, das crenças e das concepções sobre gênero.

O professor passa a lista de presença e pede que os meninos assinem primeiro. Um menino diz: “Professor você não sabe que é feio?

Primeiro as damas. Professor de Ética e não sabe disto?” O

professor diz “os meninos deixam o material arrumadinho e sai”, diz que é para eles ficarem no pátio. Uma aluna diz: “Como assim?” Outra responde: “Deixa é melhor assim”. Pede que as alunas não peguem materiais porque hoje só vão conversar. Orienta que dependendo da evolução da aula, na próxima aula somente elas ficarão; senão elas sairão e os meninos é que ficarão. Orienta também que elas não precisam ter vergonha porque com vergonha não vai ter jeito para conversar. Pergunta: “A mamãe ou o médico já ensinou

para vocês o que é menstruação?” As meninas não respondem. Ele

diz: “Vocês tem vergonha de falar comigo? De falar sobre isso?” Risinhos tímidos. Ele explica que a idade menstrual varia; explica que é um processo de amadurecimento do ovário, útero e eliminação através do sangramento. Orienta que o corpo muda e que é preciso uma higiene mais séria; esclarece que a idade varia porque depende do corpo e que o aspecto emocional também influencia. Diz que o comportamento pode mudar, que o menino até agora é o “inimigo”, porque arrota, são chatos, empurram e conforme elas vão ficando mocinhas começam a olhar de forma diferente. Avisa que as meninas precisam tomar cuidado com a postura diante dos meninos; que é preciso cuidado e exemplifica com um acontecimento na própria escola: “Veja o exemplo aqui a menina da 5a. que namorava o menino do 1o. colegial, isso foi permitido, a família estava perto,

mesmo assim, influenciou nos estudos porque os dois tiveram que sair da escola”.

Diz que as meninas devem buscar orientação sexual com os mais velhos, pai, mãe ou irmã, falar bastante, mas que devem tomar cuidado com estranhos (colegas da irmã mais velha) porque podem manipulá-las, dar informações e aos poucos tirar proveito da situação, que é preciso evitar armadilhas. Gravidez na adolescência: o professor dá exemplo da novelinha “Malhação” 14 “que mais

deseduca do que educa”. Exemplifica um fato ocorrido na novela

dizendo que a menina ficou grávida, brigou em casa e foi morar com o menino. Ficou como heroína, que não é bem assim que acontece na vida real. Diz que a menina perde bastante coisa, a maioria das liberdades porque ela é quem vai cuidar, já o menino fica com a parte econômica e emocional. Que não é interessante arrumar um namoradinho mais velho, o interessante é que ele tenha mais ou menos a mesma idade. “O mais velho pode incomodar um pouco;

vão querer ter mais liberdade e que vocês tenham também; se descobrir junto é mais interessante. O mais velho pode induzir a fazer coisas que não é hora ainda. É preciso falar sobre isso mesmo que pareça cedo, é melhor falar antes do que aconteça, vai aprendendo aos poucos, o conhecimento é construído assim, devagar, aos poucos”. Pergunta: “Vocês gostariam de falar sobre isso? Têm dúvidas? O professor está conseguindo chegar até vocês? Acha que está na hora de conversar sobre isto? (Risos ingênuos,

14

Malhação é uma novelinha vespertina, voltada para o público adolescente transmitida diariamente pela Rede Globo de Televisão.

silêncio). Não têm o que falar?” O professor orienta que as meninas falem com a professora de Ciências porque ela é uma senhora de confiança e que podem conversar com ela. (Silêncio). O professor continua perguntando se elas conversam sobre isso em casa, com a mãe. As alunas dizem que sim. Professor: “Na escola?”, algumas dizem: “a professora de Ciências”. O professor orienta que as alunas têm que ir ao médico, que geralmente é o mesmo médico que a mãe vai. Diz também que conversarão mais vezes sobre isso e às vezes com os meninos e às vezes não (só as meninas) para se sentirem à vontade. Reforça que não devem buscar informações com estranhos, que os meninos podem se aproveitar e não respeitar as meninas e que estes recebem o nome de pedófilos. “Informação sobre sexualidade e

namoro sempre com pessoas que vocês tem bastante confiança”. O

professor diz que “isso é diferente de um para o outro porque a

religião pode ser diferente, a família é diferente”. Lembra que elas

não devem ir pela cabeça dos outros; que estão começando a ser independentes e por isso não podem ir pela cabeça dos outros. Devem aprender a separar certo do errado, serem cidadãos. Reforça que devem ter comportamento de cidadão, não reproduzindo modelos; que podem vestir o que quiserem, ouvir a música que quiserem e que o mais importante é a postura de cidadão diante disso. Fala outra vez da Malhação: enquanto a menina estava grávida era a heroína e que depois que perdeu o bebê virou a perversa, “olha o jogo de emoções,

aquilo é ficção, uma novela”. Reforça para não reproduzir modelos,

Gisele Bündchen não ficarão iguais a ela. Diz que na escola pode ter a menina mais velha, popular, que tem muitos namoradinhos e as meninas podem querer ser iguais a ela, mas, não vão ser. Esclarece que a pessoa tem que ter estilo próprio porque a beleza está na diferença, se for todo mundo igual não tem graça. Silêncio; risos. O professor alerta que as alunas não têm idade para ficarem fazendo regimes, se tiver alguma doença e tiver que fazer algum tipo de regime deve ser com orientação médica e pergunta qual é o nome da doença que a pessoa come, come e depois vomita e que a pessoa não tem vontade de comer e as alunas respondem; e ele diz que elas já têm informações e que se fizerem coisas e depois ficarem doentes a culpa será delas. Em seguida ele pergunta se é preciso falar mais sobre isso na outra aula, elas não respondem, ele pergunta se durante o ano será preciso falar mais sobre isso e elas dizem que sim, pergunta se querem fazer isso junto com os meninos e elas dizem que não. O professor diz que na próxima aula ele falará com os meninos e que as meninas devem buscar situações, coisas que elas têm dúvidas ou que não têm tempo de conversar com os pais para perguntarem para ele e se tiverem vergonha que escrevam num papel e entreguem ou peçam para lhe entregar que ele vai responder. Bate o sinal.

(Aula de Ética, ensino fundamental, escola particular 1, período matutino).

Conversas no fundo da sala sobre esgoto. Um menino fala que onde ele mora tem ratos que são do tamanho de um cachorro. Em seguida falam que no shopping desta cidade tem um segurança que é gay. Rapidamente começam a falar de um programa de rádio que tem um personagem que é gay e logo após isso começam a falar que em outro programa tem personagens que são favelados. Continuam a copiar a lição e falam deste programa de rádio.

(Meninos e meninas, aula de Inglês, ensino médio, escola pública).

Um menino fala para outro: “Pára de relar em mim. Ta querendo dá

o .... (palavrão) pra mim”?. (Meninos, aula de Geografia, 5ª. ensino fundamental, escola pública).

Na lousa paralela da sala estavam escritos os seguintes dizeres: “ S...

(palavrão). “I want a bofe to me!!!” Eu sou uma lésbica sou sim!!!” “Veia loca”.

(Sala de ensino médio de escola pública).

As descrições acima nos mostram que no cotidiano da escola, nas falas dos(as) alunos(as) e dos(as) professores(as), evidenciam-se as representações que se têm acerca das identidades que foram definidas em termos de homem, de mulher e de

homossexuais. Vimos que a escola é uma dos meios onde tudo isso é discutido: entre os(as) próprios(as) alunos(as) e entre estes e seus professores(as): em duplas, o que é jogo de menino ou de menina é discutido, é reinterpretado, estereótipos são postos à mostra; com quem se deve procurar informações ou com quem se deve contar para se construir conceitos e valores é indicado: ou com os pais, ou melhor, as mães, ou com pessoas de confiança. Além disso, a escola também orienta como meninas e meninos devem se comportar, como devem agir, como podem ver e entender aquilo que a televisão passa sobre gravidez, adolescência, bom caráter, responsabilidades, privações, sentimentos, enfim, sobre os mais variados assuntos.

De tudo isso apreendemos alguns elementos que nos informam como isso se passa no dia-a-dia escolar.

As referências sobre gênero estão estampadas nas paredes das escolas, nas falas cotianas, nas atividades esportivas, nas rodinhas de colegas ou nas relações professor- aluno, e isso se traduz como um painel de imagens e construções simbólicas que expressa, implícita e por vezes explicitamente, os desejos e anseios sobre o corpo, sobre o sexo e a sexualidade. E, nos relata o que se espera das vivências sexuais nos dias de hoje; nos informa como são descritos os padrões das identidades sociais esperadas ou não.

De acordo com Duveen, as múltiplas identidades têm um papel importante nas formas de organização e construção do Eu e das relações sociais e escolares.

Ora, representações de gênero, exatamente porque se referem a uma dimensão central de organização e poder social, carregam conseqüências também centrais para nossas definições de Eu. Nós não podemos pensar em nós mesmos como neutros em relação aos campos dos gêneros: de uma forma ou outra, nós sempre pensamos em nós mesmos como homens ou mulheres, e essas identidades sociais emergem exatamente à medida que internalizamos representações de gênero (DUVEEN, 2000, p. 268).

Vemos assim que a escola, além de ser um espaço, ideal ou real, onde os saberes histórica, social e culturalmente construídos são veiculados, é, também, uma agência formadora de valores. Ela delimita os espaços, as noções e crenças através de diferentes mecanismos: através de currículos, dos conteúdos, das metodologias de ensino, das relações interpessoais, das relações de poder inerente ou impregnadora das práticas e fazeres cotidianos de professores(as) e de alunos(as), ou ainda através de um instrumento eficiente e naturalizante das estruturas em que se desenvolvem os saberes que veiculam as atitudes: a linguagem. Todos estes espaços são formadores e informadores dos processos que engendram e tornam instituídas e instituintes as facetas que produzem a diferença. A linguagem manifesta através da fala, do diálogo, da conversação, é manifesta também através daquilo que não dizemos e, também daquilo que ocultamos, do não-dito.

De acordo com Louro (1997):

(...) tão ou mais importante do que escutar o que é dito sobre os sujeitos, parece ser perceber o não-dito, aquilo que é silenciado – os sujeitos que não

são, seja porque não podem ser associados aos atributos desejados, seja

porque não podem existir por não poderem ser nomeados. Provavelmente nada é mais exemplar disso do que o ocultamento ou negação dos/as homossexuais – e da homossexualidade – pela escola. Ao não se falar a respeito deles e delas, talvez se pretenda “eliminá-los/as”, ou, pelo menos, se pretenda evitar que os alunos e as alunas “normais” os/as conheçam e possam desejá-los/as. Aqui o silenciamento – a ausência da fala - aparece como uma espécie de garantia da “norma” (LOURO, 1997, p. 67- 68, grifos da autora).

Ainda sobre o ouvir e sobre o compreender os processos de formação de identidades ressaltamos a importante atitude dialógica do(a) professor(a) e da escola na busca de respostas para diferentes questões, pedagógicas e didáticas, que se entremeiam à questão do gênero.

Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou a menina pobre, a menina ou o

menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas, a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo de entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me a escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o

outro a merecer meu respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível

(FREIRE, 1996, p. 136, grifos do autor).

Percebemos, a partir de Louro (1997) que a escola é um lócus de formação das diferenças, quer por enaltecer aspectos que elevem a individualidade, quer pelo reforçamento de identidades coletivas que devem ser internalizadas como normas. E isso ocorre de diferentes maneiras: pelos mecanismos que veiculam e atestam a forma de se comportar diante de si e dos(as) outros(as); pela perpetuação de imagens e crenças construídas em torno de determinados papéis e funções sociais pré-determinados; via conteúdos e currículos escolares, via disciplinamento, regulamentação de valores. Enfim, a escola é um espaço normatizador.

Portanto, se admitimos que a escola não apenas transmite conhecimentos, nem mesmo apenas o produz, mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades étnicas, de gênero, de classe; se reconhecemos que essas identidades estão sendo produzidas através de relações de desigualdade; se admitimos que a escola está intrinsecamente comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que faz isso cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se acreditamos que a prática escolar é historicamente contingente e que é uma prática política, isto é, que se transforma e pode ser subvertida; e por fim, se não nos sentimos conformes com essas divisões sociais, então certamente encontramos justificativas não apenas para observar, mas especialmente para tentar interferir na continuidade dessas desigualdades(LOURO, 1997, p. 85-86).

Diante disso, pensamos que estes estudos como este poderão auxiliar na interpretação dos modos de ver a escola e suas relações e os sentidos que meninos e meninas constroem deste espaço; na percepção que marca as possíveis diferentes interpretações acerca de situações de injustiça e de conflito e a forma como meninos e meninas resolvem estas

situações, verificando quais as estratégias ou caminhos são escolhidos ou determinados para os diferentes grupos.

Acreditamos que as representações construídas por estes(as) alunos(as) auxiliarão nas discussões e reflexões acerca dos processos reguladores que se formam dentro da escola e os mecanismos que se utilizam na construção das atitudes disciplinatórias, na resolução de conflitos de situações injustas e de que forma isso se relaciona com a construção das diferentes identidades dos(as) alunos(as).

CAPÍTULO 5: RESULTADOS DO QUESTIONÁRIO: AS REPRESENTAÇÕES