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CAPÍTULO 1: INJUSTIÇA, GÊNERO E EDUCAÇÃO

1.3 Desenvolvimento moral, justiça e gênero

1.3.1 Diferenças de gênero, desempenho escolar e relações sociais na escola alguns

Alguns estudos têm apontado a própria escola como um espaço que contribui para fortalecer e recriar diferenças de gênero entre crianças e adolescentes na medida em que produz expectativas e papéis distintos entre meninos e meninas e que estes podem, algumas vezes ressentir-se disto apontado tais situações como injustas.

Carvalho (2003), demonstrou que nas últimas décadas houve uma inversão no número de anos de escolaridade no que se referiu ao sexo dos(as) alunos(as): na década de 1960, os homens tinham menos de três anos de escolaridade média enquanto as mulheres tinham dois anos. Ao longo de quarenta anos, quando o acesso à escola foi ampliado, foram aumentando também os anos de escolaridade, cerca de seis anos de escolaridade numa média nacional. No entanto, realizando um recorte por sexo, percebeu-se que o número de moças, entre 15 e 19 anos de idade, era quase o dobro de rapazes.

Segundo Carvalho (2003), três podem ser as explicações correntes sobre o fracasso escolar e sua relação com o gênero. Numa primeira explicação, o fracasso escolar estaria associado diretamente ao trabalho infantil. No entanto, segundo a autora, pouco se conhece sobre o trabalho infantil no Brasil, que é, na maioria das vezes um trabalho informal e ilegal; além disso, sobre o trabalho realizado pelas meninas existiriam muitas hipóteses contraditórias.

Uma segunda explicação, em Carvalho (2003), recaiu sobre a idéia de que as meninas se adaptariam melhor à escola do que os meninos, o que se associaria ao fato de que as meninas já viriam docilizadas ou “domesticadas” de suas famílias, daí serem mais calmas, mais silenciosas. No entanto, Carvalho (2003) afirma que os resultados encontrados

em seus estudos contradizem esta noção: as professoras colocaram os meninos em dois pólos: ou são muito inteligentes ou dão muito trabalho, enquanto as meninas ficariam num termo mediano: nem tão inteligentes, mas, não trabalhosas.

Carvalho (2003) provoca a partir destes dois primeiros pontos uma discussão interessante:

Com esse tipo de explicação a gente se exime da culpa, mas a gente também não pode fazer nada, o menino tem que trabalhar e vai mal na escola e ponto final. O menino é agressivo porque a família ensina a ser assim, e as meninas são obedientes e passivas porque já chegam assim na escola. Não se cria um espaço para refletir sobre qual é a responsabilidade da escola nessa conversa: no que nossa própria atitude como educadoras, como educadores, as relações entre as crianças na sala de aula, no pátio de recreio, no que tudo isso contribui para a formação desses modelos de feminilidade e de masculinidade diversificados. É claro que isso está o tempo todo em construção. Está em construção para nós, adultos, quanto mais para as crianças. Não vem pronto de casa, ao contrário, está sendo elaborado na escola também. Por exemplo, a relação entre ser masculino ou feminino com ter um caderno bonito, ter uma nota boa não foi aprendida em casa, são elementos escolares. Em que medida nossa própria atitude está participando desta construção? (CARVALHO, 2003, p. 190).

Como terceira explicação Carvalho (2003) apontou, a idéia recorrente em trabalhos nacionais e internacionais que consistiu na tentativa de inversão da explicação baseada na passividade das mulheres, na crença da natural passividade das meninas obedientes. A autora apontou por fim, uma necessidade que antecedia a compreensão do(a) aluno(a), que se referiu à discussão sobre a identidade de gênero, sobre os currículos escolares e sobre os materiais didáticos, através da criação de espaços coletivos de reflexão; caso contrário, correria-se o risco da discussão sobre o fracasso escolar masculino tornar-se veículo de pretexto para o reforço de uma identidade masculina que é tomada como superior, isto é, menino branco, heterossexual.

Altmann (1999), realizou um estudo acerca da ocupação dos espaços escolares, através de observações de aulas de Educação Física, dos jogos olímpicos, dos

recreios, das festas escolares, e de algumas aulas de outras disciplinas, de conselhos de classe e da reunião de professores(as), em quatro turmas de 5ª. séries do ensino fundamental de uma escola municipal de Belo Horizonte (MG). Os(as) alunos(as) tinham em média de onze a quinze anos de idade. Altmann verificou que os locais de difícil acesso ou aqueles com entradas restritas eram mais freqüentados por meninos do que por meninas. Percebeu que o esporte, particularmente o futebol, foi uma das formas pelas quais meninos exerciam o domínio dos espaços da escola. As meninas resistiam a esta dominação através de outros jogos e brincadeiras, como, por exemplo, pular corda ou jogos musicados. Nos jogos olímpicos, Altmann (1999) verificou que as posições de comando eram exercidas, essencialmente, pelos meninos: “meninas somente eram capitãs nas equipes femininas e, ainda assim, esta função era subalterna à do técnico, que era um menino” (ALTMANN, 1999, p. 160). As figuras e os nomes das equipes também faziam referência à violência, o que carregava, implicitamente, a idéia de que o mundo dos esportes era dominado pela virilidade, cabendo às meninas apenas adaptar-se. Outro dado relevante apresentado neste estudo referiu- se as diferentes estratégias adotadas por meninos e meninas no tangente à transgressão em relação às normas escolares. Altmann evidenciou que a transgressão de normas, explícitas ou não, era uma condição para a ocupação de determinados espaços escolares e que os meninos faziam isto mais freqüentemente que as meninas. Analisando as fichas de acompanhamento dos alunos a autora verificou que, de forma, geral os meninos desobedeciam mais às regras disciplinares do que as meninas. Percebeu-se, também, que enquanto os meninos usavam como estratégia a transgressão as meninas usavam a não transgressão. (In)conscientes de que o bom comportamento era desejado pela escola, as meninas tornavam-se cúmplices da professora, mantendo-a informada de tudo o que ocorria na sala, e utilizavam isso como forma de conseguir a defesa e a solução dos problemas, por parte da professora, em alguma situação em que não tivessem condição de resolver; além disso, costumavam tomar uma

atitude proibida na ausência da professora, como, por exemplo, dançar, correr pela sala, pular, bater os dois pés na parede conforme nos relata Altmann.

Segundo Altmann (1999), estas estratégias adotadas pelas meninas foram discutidas por Julia Stanley (1995 apud Altmann 1999). Segundo Stanley, a tranqüilidade ou a docilidade das meninas não seriam um traço característico de sua personalidade e sim uma resposta à escola e seus mecanismos de subordinação. Portanto, o obedecer das regras das meninas seria uma estratégia adotada para se ir bem na escola, já que os professores apreciavam tal comportamento como uma espécie de requisito para o bom desempenho escolar; o que leva-nos a concluir que a própria escola oferece, em seu processo de socialização, tal docilidade.

O que estes estudos têm em comum é a relação entre a construção de identidades de gênero, suas dimensões e suas relações com os processos escolares, educativos. A escola é palco de uma diversidade de experiências que envolvem relações de poder, de hierarquia e de papéis e funções. Ela, a escola, é responsável, também, pela construção das diferenças de gênero. E contribui para esta formação através de diferentes mecanismos e formas, evidentes ou não, aceitos ou não.

Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos – tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela tinham acesso. Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas (LOURO, 1997, p. 57).

Ainda sobre o processo de construção do sujeito Louro (1997) afirma que:

O processo de “fabricação” dos sujeitos é continuado e geralmente muito sutil, quase imperceptível. Antes de tentar percebê-lo pela leitura das leis ou

dos decretos que instalam e regulam as instituições ou percebê-lo nos solenes discursos das autoridades (embora todas estas instâncias também façam sentido), nosso olhar deve se voltar especialmente para as práticas cotidianas em que se envolvem todos os sujeitos. São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as palavras banalizados que precisam se tornar alvos de atenção renovada, de questionamentos e, em especial, de

desconfiança. A tarefa mais urgente talvez seja exatamente essa: desconfiar

do que é tomado como “natural” (LOURO, 1997, p. 63, grifo da autora).

É preciso, portanto, estar atento aos processos formativos enquanto espaços de intercâmbios e de construção de múltiplas identidades, crenças, concepções e de formação humana. E a escola é um dos espaços sociais, talvez um dos mais importantes tendo em vista que é um espaço onde a criança passa grande parte do tempo e onde as possibilidades de interação com outras crianças sejam maiores, que forma ao mesmo tempo em que produz diferentes formas de lidar, enfrentar, submeter e construir diferentes percepções, concepções, idéias e valores acerca de questões como o gênero e a injustiça.

Percebe-se então, com estes estudos, que diferentes expectativas se constroem com relação à escola, aos alunos, aos professores, ao processo de escolarização e com relação, também, às dinâmicas que neste espaço se estabelecem. Que meninos e meninas constroem suas crenças, os modos de relacionar com as outras pessoas, com as situações, a partir de referenciais que são partilhados na e pela escola. Os sentidos e os sentimentos construídos em relação à escola passam, portanto, por construções mentais e simbólicas que são ancoradas em diferentes, múltiplas e complementares identidades de gênero e nos papéis que cada um ocupa nesta dinâmica.