• Nenhum resultado encontrado

Com tudo o que foi exposto até aqui já se pode vislumbrar como a lei antiterrorismo brasileira possui um perfil eminentemente simbólico, que sua vigência encerra questões sensíveis que vão muito além do simples enquadramento jurídico- penal para uma conduta considerada ilegal. Precisa-se, portanto, de um aprofundamento da temática, levando-se em consideração as normas e o Estado no contexto da sociedade contemporânea. A lei é um instrumento de poder do Estado. Os Homens cunharam as leis para, além de administrar os conflitos, garantir a sua posição de domínio, o controle de uns (mais poderosos) sobre os outros (menos poderosos). Preleciona Zaffaroni e Pierangeli (2011, p.62) ―O certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados‖. As leis garantem a existência do Estado e, conforme lição de Paulo Bonavides (2014, p.68) que nos traz algumas concepções sociológicas de Estado, em sentido amplo, como toda sociedade humana onde há diferença entre governantes e governados, e em sentido restrito como grupo humano fixado em determinado território, onde os mais fortes impõem aos mais fracos sua vontade. Ainda, por uma perspectiva marxista, o Estado é compreendido como fenômeno histórico passageiro, oriundo da aparição da luta de classes, desde que, da propriedade coletiva se passou à apropriação individual dos meios de produção (BONAVIDES, 2014, p. 69). Nas palavras de Michel Foucault (2013, p. 262) ―A lei e a justiça não hesitam em proclamar sua necessária dissimetria de classe.‖. A consequência histórica de toda forma de controle estatal é que a lei expressa o domínio de uma classe dominante sobre as subalternas. Nessa dinâmica, é comum o surgimento de diplomas legais simbólicos como aferiu Neves (2013, p. 32) ―são legislações simbólicas aquelas caracterizadas por uma hipertrofia da sua função simbólica em detrimento da concretização normativa‖, na mesma linha o autor aponta o modelo tipológico de Kindermann como sendo bastante frutífero em termos teóricos, no qual existem três tipos de legislações simbólicas: a) cujo conteúdo confirma valores sociais; b) cujo conteúdo serve para atestar a capacidade de ação do Estado; e c) cujo teor busca adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios (KINDERMANN, 1988, p. 234; 1989, p. 269, apud NEVES, 2013, p. 33), dar-se-á uma explicação mais aprofundada sobre cada um adiante, mas por ora, basta indicar ao leitor que os diplomas legais podem ter esse viés

simbólico em contraposição ao seu quinhão concretizador de dinâmicas sociais. O Brasil tem demonstrado ser um país onde a lei é produto de um processo legislativo primoroso em conceber leis sem conformação com a realidade.

No tocante às leis simbólicas do primeiro tipo, é comum que o legislativo se depare com situações em que deve decidir sobre que valores deverá adotar na concepção de uma nova lei, nesses casos não é raro que ocorram embates entre grupos sociais que defendem esse ou aquele conjunto de valores, nesse contexto, a suposta ―vitória legislativa‖ de um dos grupos é tomada como se tal grupo fosse ―superior‖ ou predominante, deixando-se de lado a eficácia normativa da lei em questão. De tal modo, os grupos buscam influenciar o poder legislativo criando, assim, proibições formais ao que contraria o seu conjunto de valores, além de garantir a permissividade ou obrigatoriedade daquilo que se alinha a ele, tornando o ato legislativo a manifestação de seus interesses (NEVES, 2013, p. 33-36). Desta feita, toma-se, dentre outros, como melhor exemplo, aquele apontado por Marcelo Neves sobre a Lei Seca norte-americana (que vigorou entre 1920-1933), ao citar a obra de Gusfield (GUSFIELD, 1986 [1963], esp. pp. 166 ss.; 1967, pp. 176 ss., apud NEVES, 2013, p. 33-34) o autor mostra que havia uma verdadeira ―queda de braço‖ entre os dois principais grupos envolvidos, de um lado, os nativos/protestantes, que eram à favor da lei; do outro, os imigrantes/católicos contrários a ela, a disputa estava longe de pautar a eficácia instrumental da norma, mas serviria como um atestado de superioridade do grupo ―vencedor‖, garantindo-lhe maior respeito social, sendo assim um símbolo de status.

Por conseguinte, aborda-se aquele que talvez seja o grande responsável pela evidente reprovação da classe política no Brasil, afinal de contas boa parte das ações governamentais brasileiras passam por essa forma de emular a solução de um problema ou crise pela pretensa e folclórica criação ou reformulação de uma lei, garantindo ao público que algo foi feito, com isso, pretende-se fortalecer ―a confiança dos cidadãos no respectivo governo ou, de um modo geral, no Estado.‖ (KINDERMANN, 1988, p. 234; HEGENBARTH, 1981, p. 201, apud NEVES, 2013, p. 36), tem-se aqui, portanto, uma forma de legislação simbólica distinta da anterior, pois ―Nesse caso, não se trata de confirmar valores de determinados grupos, mas sim de produzir confiança nos sistemas político e jurídico.‖ (KINDERMANN, 1988, p. 234, apud NEVES, 2013, p. 36); deve-se ir além, para tanto, buscar entender o jogo de interesses e as pressões a que está sujeito o Estado-Legislador se torna

fundamental. Partindo-se dessa mínima compreensão, tem-se que ―O legislador, muitas vezes sob pressão direta do público, elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas.‖ (NEVES, 2013, p. 36), isso implica dizer que através da legislação-álibi o governo procura eximir-se da pressão popular ou se demonstrar sensível às demandas dos cidadãos (NEVES, 2013, p. 36-37), obviamente cada situação apresentará, por conveniência, uma resposta em um ou noutro sentido, mas raramente se apresentará uma solução de fato.

Assim, por aprofundamento, deve-se notar a dinâmica político-eleitor de forma empírica, como na situação apresentada por Marcelo Neves (2013, p. 37) ao abordar o tema ―Nos períodos eleitorais, por exemplo, os políticos prestam conta do seu desempenho, muito comumente, com referências à iniciativa e à participação no processo de elaboração das leis que correspondem às expectativas do eleitorado.‖, tamanha é a verossimilhança com o cotidiano nacional que muitas leis levam, de fato, o nome de seus patrocinadores. Disso resulta que ―É secundário, então, se a lei surtiu os efeitos socialmente ‗desejados‘, principalmente porque o período da legislatura é muito curto para que se comprove o sucesso das leis então aprovadas.‖ (KINDERMANN, 1988, p. 234; 1989, p. 269, apud NEVES, 2013, p. 37), ou seja, qualquer compromisso material assumido pelo candidato acaba se tornando uma demanda meramente formal na prática, pois o ―Importante é que os membros do parlamento e do governo apresentem-se como atuantes e, portanto, que o Estado- Legislador mantenha-se merecedor da confiança do cidadão.‖ (NEVES, 2013, p. 37), diante disso, fica evidente a tese central do simbolismo legal amplamente presente no seio da legislatura pátria. Como chega a concluir Neves (2013, p. 40) ―[...] o emprego abusivo da legislação-álibi leva a ‗descrença‘ no próprio sistema jurídico, [...]‖, talvez essa seja a contrapartida política do chamado ―jeitinho brasileiro‖, o que traz a sensação de fracasso, na verdade, é constatar que essa realidade já se naturalizou, tornou-se parte inerente da nossa cultura dita republicana, em arremate, tornando-se evidente que a legislação não corrobora para a positivação de normas jurídicas, o direito como sistema de garantias e regulamentação fica desacreditado, daí que a opinião pública declina, com as pessoas se sentindo enganadas, por consequência os políticos se tornam cínicos (KINDERMANN, 1989, p. 270, apud NEVES, 2013, p. 41), resta saber se em nosso país a lógica não seria justamente a

contrária, sendo os atores políticos figuras cínicas que distorcem o sistema, enquanto o Direito mantém a superestrutura funcionando apesar disso.

Some-se ao que já foi exposto uma segunda forma de legislação-álibi que, de forma mais rebuscada, se conecta com os discursos de emergência e estará, de certo modo, estruturado o ambiente legal propício para aquilo que se pretende provar neste trabalho com relação a lei antiterrorismo. Retomando-se o que foi apresentado até aqui, de modo geral, as leis simbólicas que se manifestam na forma de atestado da capacidade de ação do Estado, ou legislação-álibi, funcionam pela incidência de uma pressão pública por meio da qual se dará uma resposta legal (meramente formal) no intuito de ganhar a simpatia do povo, ou de simplesmente calá-lo, entretanto, essa forma genérica não é a única, evidencia-se a legislação- álibi, também, em face da insatisfação gerada na população por dados acontecimentos ou mesmo da emergência de questões sociais, pois, muito frequentemente se exige do governo uma solução imediata; em que pese nesses casos, geralmente, a impossibilidade de se chegar a uma resposta adequada por meios normativos, sendo assim, a edição da lei serve como álibi do legislador perante a população que exigia uma reação do Estado (NEVES, 2013, p. 37).

Tal fenômeno ocorre em qualquer ramo do direito, mas tem uma importância significativa para o Direito Penal, haja vista o que já foi exposto anteriormente sobre o punitivismo na sociedade brasileira, quanto a isso temos que ―No Direito Penal, as reformas legislativas surgem muitas vezes como reações simbólicas à pressão pública por uma atitude estatal mais drástica contra determinados crimes.‖ (SCHILD, 1986, p. 198, apud NEVES, 2013, p. 38), nesse ponto, chega-se ao cerne do que se pretende expor em relação a Lei Antiterrorismo no Brasil e a sua função simbólica, porém, faz-se necessário passar ao terceiro tipo de legislação simbólica para conclusão do raciocínio.

Em suma, o terceiro tipo são os casos em que existe um conflito entre grupos políticos acerca de um problema cuja resolução não provém da atividade legiferante, pelo contrário, é a confiança na ineficácia da referida lei que repousa o seu teor simbólico. A solução para o problema fica para depois, havendo um acordo tácito entre os grupos antagônicos pela ocasião; o diploma legal, portanto, serve como uma espécie de ―armistício‖ ou ―trégua‖ protelando a solução do problema social subjacente. (NEVES, 2013, p. 41). Nesse sentido, pode-se considerar que há um grande número de leis brasileiras que servem a esse propósito, deixando de tratar

questões complexas ou polêmicas pela edição de normas que não possuem qualquer eficácia, adiando sempre a solução para um futuro incerto.

De tal modo, a questão do terrorismo no Brasil, como se viu, vinha sendo debatida desde a abertura democrática com a Constituição Federal de 1988 que já trazia em seu texto passagens que davam conta do assunto, não existia, porém, um interesse tão urgente na sua definição legal até o 11 de setembro de 2001, quando se modificou consideravelmente o cenário político mundial em torno do tema, assim, o Brasil deu início aos trabalhos necessários com propostas legislativas que datam de 2002, mas que nunca tinham chegado à concretização de um diploma legal válido, o tema encontrava guarida sob as leis de Segurança Nacional (Lei nº 7.170 de 1983) e de combate ao crime organizado (Lei nº 8.250 de 2013), pois desde a redemocratização o terrorismo não fazia parte do vocabulário nacional, mas, de repente, passava-se a uma óbvia necessidade de tipificá-lo, com grande pressão externa para que se fixasse o tratamento legal que seria dado ao terrorismo de qualquer forma; em contrapartida, as jornadas de junho de 2013, pouco antes da Copa do Mundo de 2014, demonstraram o quanto de indignação pública estava represada na população brasileira, com protestos nunca antes vistos, bancos privados e prédios públicos foram atacados, grandes veículos de imprensa foram hostilizados, e mesmo assim não se conseguiu criar o clima necessário para a aprovação de uma lei sobre o terrorismo, ―[...] o país recepcionou a Copa do Mundo de Futebol de 2014 sem uma legislação que tratasse claramente da temática terrorista. Dois anos depois, quase às vésperas dos Jogos Olímpicos, finalmente entrou em vigor a Lei 13.260 de 2016.‖ (CHUY, 2018, p. 25). Há aqui uma impressão, ou mesmo um mero indício de que a promulgação da lei foi adiada até o último instante, pois esta serviu, de fato, como resposta a uma imposição externa baseada na sediação de eventos esportivos internacionais, não se tratava de um interesse estratégico brasileiro, mas sim de uma forma do Estado brasileiro atestar sua capacidade de ação e se desviar das pressões externas que vinha sofrendo.

Para muitos, entretanto, esta não é a razão, mas sim um conjunto de pressupostos, pois ―O terrorismo segue desafiando a lógica da racionalidade e impondo o aperfeiçoamento das instituições encarregadas de combatê-lo. Integra a categoria restrita dos supercrimes.― (CHUY, 2018, p. 09), ou seja, infere-se que para se combater os ditos ―supercrimes‖ é necessário que haja a categorias das ―super- leis‖, dessas que podem relativizar garantias processuais penais como as da

principiologia estabelecida por Luigi Ferrajoli (2014, p. 89-92) em função de uma noção ―superior‖ de segurança, como no caso da técnica de criminalização de atos preparatórios, por meio de tipos de perigo abstrato, que julgam ser absolutamente justificada (CHUY, 2018, p. 09-10), além de considerarem a necessidade de se aproximar o tipo penal do terrorismo aos princípios da taxatividade e da proibição de proteção deficiente (CHUY, 2018, p. 23), porém, há uma crítica subjacente ao esforço de justificar mais uma lei penal repressiva, segundo Almeida et al (2017, p.156, apud CHUY, 2018, p. 38) parte da doutrina se opõe ao caráter emergencial dado à referida legislação, fato que teria tolhido um debate maior e mais amplo sobre a matéria, de tal modo que a lei possui ―duvidosa aptidão para fazer frente ao terrorismo, mas hábil a intimidar (e, em alguns pontos, até mesmo facultar a criminalização de) manifestações políticas e movimentos sociais e congêneres‖.

Essa divergência de entendimento acerca da novel lei tem fundamento e é motivo de debates na academia, no escorço deste trabalho, tratou-se de frisar argumentos tanto à favor, quanto contrários, para que se chegasse à síntese necessária aqui exposta. Deixa-se aqui um apontamento feito por Zygmunt Bauman (2008, p. 141), sendo a guerra verdadeira (e possível de ser vencida) contra o terrorismo aquela que não se perfaz com as cidades e vilas já semidestruídas do Oriente Médio sendo obliteradas, mas sim aquela na qual as dívidas dos países pobres do mundo forem perdoadas, quando os mercados do Ocidente se abrirem a seus principais produtos e a educação for patrocinada para todas as crianças que hoje estão privadas de qualquer tipo de escola, além de outras medidas semelhantes forem tomadas e implementadas. Corroborando-se, assim, do conjunto de justificativas e críticas levantadas até aqui, mesmo sem o exaurimento do tema, a crença de que a Lei antiterrorismo no Brasil tem mais força em relação ao seu papel simbólico do que como resposta suficiente para sanar as questões de fundo que suscita, gerando desconforto no seio da sociedade brasileira, a lei tem se demonstrado mais como um pretexto jurídico para prisões arbitrárias que um veículo de concretização democrática, finalidade a que deveriam se fiar todas as leis no Estado Democrático de Direito.

Documentos relacionados