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A leitura em crise: a hegemonia do oral no ensino do FLE

2.3 O que é ler em língua estrangeira?

2.3.1 A leitura em crise: a hegemonia do oral no ensino do FLE

Ao longo do último século, o papel da leitura no ensino do FLE foi algo muito controverso. Com as linhas teóricas que se sucederam na didática, a prática da leitura, inicialmente, consistia no próprio objetivo do ensino do FLE. Posteriormente, foi posta em segundo plano para ser relativamente reabilitada ao sabor das correntes teóricas que lhe atribuíam maior ou menor importância.

Ler durante uma longa época da história do ensino do FLE era a própria finalidade do ensino para a metodologia gramático-tradução ou tradicional. Essa metodologia data, segundo Cornaire (1999:4) do final do século dezesseis e foi vigente na Europa e nos Estados Unidos até a década de 1950. No Brasil, esteve em uso até, aproximadamente, a década de 1970, embora não maneira homogênea, pois ela permanecia acoplada a novas metodologias, sendo utilizada, por exemplo, para os níveis avançados.

A premissa teórica que norteava esta metodologia era a de que as palavras formavam a estrutura da língua – haveria uma estrutura universal comum às línguas que difeririam apenas em seu léxico – e que o aprendizado por meio dos clássicos da literatura e da filosofia asseguraria o conhecimento da língua em sua melhor expressão.

Segundo Germain (1993) esse modelo de metodologia estava calcado no modelo de ensino de línguas mortas (grego e latim) cujo objetivo era a aprendizagem da leitura de textos fundadores do pensamento ocidental, objetivo (no caso destas línguas) que se mantém até hoje.

A leitura que se praticava então era do tipo linear, semasiológica (partia-se da palavra para o sentido) e a explicação de texto (exercício escolar tipicamente francês) ou a tradução finalizavam a lição. O método tradicional privilegiava a tradução de palavras para a compreensão do sentido, estabelecendo-se uma relação simétrica entre as palavras do francês e do português promovendo, assim, um esvaziamento de aspectos semânticos e contextuais vitais para a construção de sentido.

A leitura sofreu, entretanto, um revés importante a partir da segunda metade do século vinte, quando novas necessidades e novos modelos teóricos conformam novas metodologias para o ensino de línguas estrangeiras.

A premência de fazer com que soldados americanos pudessem comunicar-se em outras línguas, no contexto da Segunda Guerra Mundial, fez da compreensão e expressão orais o eixo em torno do qual se organizava o ensino de línguas estrangeiras. Baseada nos princípios de estímulo-resposta emprestados da psicologia comportamental (com base nos trabalhos de Skinner), a metodologia áudio-oral, desenvolvida primeiramente para o exército, sai das casernas norte-americanas e ganha espaço das salas de aula na Europa e América Latina. Enquanto a denominação gramático-tradução revela a primazia do escrito, a áudio-oral, traduz, pelo contrário, a prioridade da fala em detrimento da leitura.

Assim, para esta metodologia, a leitura estava atrelada à fala: ler bem significava ter uma boa pronúncia, pois a leitura era um treino para os alunos que aprendiam o sistema fonológico da LE. Nesse contexto, a especificidade da compreensão escrita nem poderia ser considerada pelo fato de não haver propriamente construção de sentido, comunicação: a leitura era um desdobramento da fala, um treino de pronúncia.

Paralelamente à metodologia áudio-orla na Europa, desenvolveu-se, desde meados dos anos 1950, inspirada pelas formulações teóricas de Petar Gubérina (cf. GERMAIN, 1993:53), a metodologia audiovisual, conhecida como structuro-globlal-audio-visual (SGAV). Como o nome indica, mantinha- se a tônica sobre o oral. Houve, porém, uma transformação na percepção da

língua que deveria ser compreendida globalmente estimulando-se outros sentidos além da audição. Partia-se de uma imagem representando uma situação de comunicação à qual eram associados diálogos. A atividade de leitura continuava atrelada à expressão oral. Ela aparecia quando o aluno já deveria, em princípio, dominar o sistema fonológico e, assim, treinar a entonação, as ligações entre consoantes e vogais, o ritmo etc. Isso significa que a leitura permanecia mais como uma prática do oral. E assim o foi durante as demais gerações audiovisuais, que priorizaram cada vez a expressão oral e a comunicação, baseando o ensino nos atos de fala e nas situações comunicativas.

Uma nova corrente, nos anos 1970, foi responsável por uma mudança na abordagem do ensino do FLE. Centrava-se, então, o olhar sobre as estruturas de conhecimento do mundo do sujeito. Era necessário criar automatismos, mas sem que o tratamento da informação pelo aluno fosse negligenciado. O sentido recuperava lugar de destaque e, com ele, a leitura voltava a ser contemplada não mais como um reforço da fonética, mas como atividade de compreensão. No entanto, não havia diretivas específicas sobre a maneira como a leitura deveria ser trabalhada e sua atividade consistia apenas, naquele momento, na verificação da compreensão por meio de perguntas sobre o sentido do texto. Segundo Cornaire (1999:7):

Apesar dessa dificuldade e do papel não muito destacado que teve a abordagem cognitiva na época, o recuo permite ver a contribuição que ela trouxe para o ensino de línguas e para o ensino da escrita em particular. Ela parece, entre outras, estar na origem desse vasto movimento de centração sobre o aprendiz e da ênfase dada ao desenvolvimento da compreensão, ou seja, da apropriação do sentido de um texto.

Ainda nos anos 1970, foi a abordagem comunicativa que gerou a grande mudança na didática das línguas estrangeiras. O objetivo da comunicação passou a orientar os conteúdos a serem apreendidos. Nesse contexto, os documentos autênticos foram incorporados aos métodos de FLE, e, ao serem trabalhados em sala de aula, simulavam uma situação de comunicação real.

Para compreender o processo pelo qual a leitura passou a ser considerada em sua singularidade e complexidade nas metodologias de FLE, tornando-se um dos objetivos do ensino-aprendizagem do FLE, é preciso identificar o momento em que os teóricos dessa área interessaram- se por tal atividade, em que contexto tal evento se deu. Vemos que uma conjuntura histórica permitiu que se desenvolvesse uma pedagogia do escrito. A crise de uma metodologia de ensino do FLE, os desenvolvimentos teóricos em diferentes áreas e a pressão de grupos específicos pelo ensino da leitura em FLE foram fatores decisivos para que, nos anos 1970, importantes obras fossem publicadas a respeito da compreensão escrita. Desenvolvida primeiramente para o público dos cursos de francês funcional, a metodologia conhecida com o nome genérico de abordagem global17 foi relativamente absorvida pela metodologia comunicativa e a leitura passou a ser contemplada em boa parte dos novos métodos para ensino do FLE então publicados.