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3.2 O texto: leitura literária e comunicação

3.2.2 A carta ao filho

3.2.2.3 Nous n’avons pas besoin de stèle

Os dois últimos parágrafos da carta sintetizam, de certa forma, o estado de espírito da família sem terra e sem teto que, paradoxalmente, não está triste. O pai vê a invasão como uma arbitrariedade covarde, prevalece, nele, um sentimento de, ao mesmo tempo, humilhação frente às demandas dos novos proprietários e de vacuidade da violência:

Notre bagage est léger; un sac de farine et un peu d’olives. La foudre peut descendre. Elle foulera les sables mêlés de pierres brisées et d’arbustes abattus. Elle tombera dans le vide, étranglée par des serpents de la haine. Tu te rends compte, mon fils, ils demandent aux enfants de cette terre de venir travailler pour le compte de « nouveaux propriétaires » ! C’est la seule fois où j’ai pleuré. Je sais, tu n’aimes pas les larmes; excuse-moi si les miennes ont coulé. Mais la honte s’est amassée dans mon corps comme les pierres, comme les jours, comme les prières.

Assim, da mesma forma que o pai sente-se humilhado por pedirem que os “filhos dessa terra” trabalhem para os “judeus vindos da Rússia”, vê o conflito com certo desprendimento de quem tem muito pouco ou quase nada a perder: “Notre bagage est léger (...) La foudre peut descendre. Elle foulera les sables mêlés des pierres brisées et d’arbustes abattus. Elle tombera dans le vide (…)”. A “foudre” (relâmpago) pode remeter a armas de fogo, à guerra, mas ela recai sobre nada, ou melhor, ela cai sobre as “pierres brisées” e sobre os “arbustos abattus”. Como vimos, há uma aproximação entre os elementos da natureza e o povo árabe, da mesma forma que a

tecnologia, representada pela máquina, está associada aos israelenses. Dessa forma, podemos compreender pedras e arbustos como o próprio povo árabe após os sucessivos ataques, o que reforça a idéia de covardia manifestada pelo texto.

Há ainda, nesse parágrafo, mais uma referência ao filho: “Je sais, tu n’aimes pas les larmes; excuse-moi si les miennes ont coulé.”. Trata-se de alguém orgulhoso, forte, que não aceita as lágrimas talvez por ser sinal de fraqueza. Esse traço de caráter do filho é respeitado pelo pai que se desculpa por ter chorado. Podemos pensar nesse filho como um combatente, um soldado que enfrenta as adversidades.

Finalmente, no último parágrafo, o pai despede-se do filho:

Notre terre battue par l’acier qui écrase les petits lézards, je la vois sur ton front comme une étoile, un rêve urgent qui nous rassemble. Tout change de nom. La main métallique efface les écritures sur nos corps. Des racines d’arbres attestent. Nous n'avons pas besoin de stèle. Notre mémoire est un peu de sable suspendu à la lumière. Elle est haute entre tes doigts. Nous t’embrassons où que tu sois.

Esse trecho do texto conclui a carta, sintetizando o resultado da destruição da aldeia, da expulsão e, em um contexto maior, dos sucessivos conflitos armados para aquele povo. Mais uma vez, a máquina esmaga a natureza, retomando a metáfora para israelenses e árabes. O “acier” e a “main métallique” remetem à matéria de que é feita a máquina, “les petits lézards” e “les écritures sur nos corps” são a natureza e o povo da aldeia, ao mesmo tempo, pois o uso dos pronomes possessivos ao longo de todo o texto, além de ações de seres em princípio inanimados, como as nuvens teimosas e o sol que estremece, promove a construção de uma grande entidade coletiva, um “nous” que reúne povo, animais, terra, árvores, nuvens, céu, sol. A carne e a terra formam um mesmo órgão repleto de marcas, de cicatrizes e de feridas recentes. Porém, o resultado da ação da máquina é, segundo o pai, o fortalecimento dessa coletividade: “Notre terre battue par l’acier, je la vois sur ton front comme une étoile, un rêve urgent qui nous rassemble.”. A idéia de que a ação de violência atribuída ao outro acaba por gerar a necessidade de um sonho coletivo.

Também é por meio do emprego dos possessivos que podemos formular uma hipótese para a localização do filho: “Je la vois sur ton front comme une étoile (...) Notre mémoire est un peu de sable suspendu à la lumière. Elle est haute entre tes doigts.” Assim, a oposição entre “nous” e “tu” faz com que nós remeta à terra e você remeta ao céu, hipótese formulada pela constituição do campo semântico (estrela, suspenso, alta) associado às palavras tua fronte e teus dedos. O filho, no céu, assiste ao que se passa na terra. Essa hipótese pode ser confirmada pelo emprego da palavra “stèle”, mais uma vez, é a polissemia que amplia as possibilidades de leitura de um mesmo trecho: “Nous n’avons pas besoin de stèle. Notre mémoire est un peu de sable suspendu à la lumière.”. A palavra “stèle” (estela) significa pedra funerária. No contexto, porém, está fortemente relacionada à estrela na fronte do filho. Ainda que, em francês, o dicionário30 não registre “stèle” como um sinônimo de “étoile” (relação existente na língua portuguesa entre as palavras estela e estrela31), o adjetivo “stellaire” (do baixo latim “stella”) remete ao que é relativo às estrelas. Nesse sentido, ainda podemos estabelecer uma relação entre “stèle” e a estrela de David, símbolo do judaísmo. Assim a frase “Nous n’avons pas besoin de stèle” pode significar que não precisam de pedras funerárias, cuja função é registrar a existência de alguém que já morreu; pois “notre mémoire est un peu de sable suspendu à la lumière (...) haute entre tes doigts”. A lembrança dos mortos é forte, manifestada pela própria natureza: areia, estrela, nuvem, céu. Ela não precisa de inscrição na pedra: “La main métallique efface les écritures sur nos corps”. Fechando o texto, o inusitado, em uma carta tradicional: “Nous t’embrassons où que tu sois”; sem que haja qualquer referência a um próximo encontro, nem demandas por notícias do filho. Uma das soluções possíveis para o que compreendemos ser um problema de leitura do texto é que o filho esteja morto. Como se trata de um texto literário, não podemos (nem devemos) afirmar isso como a resposta

30

Fonte consultada: Le Petit Robert. Paris: Ed. Le Robert, 1996.

31

Fonte consultada: Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

definitiva para tal questão, apenas uma hipótese formulada a partir de algumas índices presentes no texto.