• Nenhum resultado encontrado

3.5 Como dar voz à leitura do aluno?

3.5.1 O que escrevem os alunos

3.5.1.2 A percepção do literário

Gostei muito de ler o texto, pois a interpretação dele está além da língua

Aluno.

Antes de passar aos comentários dos alunos, gostaríamos de ressaltar que as informações paratextuais originais do texto de Jelloun foram apagadas. A carta e sua introdução foram redigitadas com a indicação bibliográfica no final do texto. Além disso, nenhuma informação sobre texto e autor foi dada antes de sua leitura.

Como tratamos da leitura literária, queríamos observar se os alunos, com alguns meses de aprendizado do FLE, detectavam o caráter literário de um texto; caso o fizessem, como o percebiam e como o recebiam. Como mencionado acima, vários alunos reconheceram o texto como sendo literário, porém a implicação desse reconhecimento suscitou reações diferentes.

Os alunos, de maneira geral, associam o literário ao uso de metáforas. Se considerarmos que as metáforas veiculam uma carga imagética e que essa carga imagética é uma das possíveis formas assumidas pelo literário, a metáfora constituiria, neste texto, como um de seus principais recursos. Enquanto apenas seis alunos mencionaram as expressões “literário” e ”poético(a)” – VEs de número 2,5,6,12,15,16 –, a palavra “metáfora” aparece em um número maior de VEs. Outro aspecto que foi relacionado a seu caráter literário foi a subjetividade da narrativa:

Utilização de algumas palavras em sentido figurado, caracterizando o texto como literário e muito carregado de subjetividade (VE 2)

(...) não se trata de um texto técnico e sim um texto poético, pois descreve a visão de uma pessoa sobre um episódio dramático que ela viveu (...) Como se trata de um texto poético e de uma descrição pessoal sobre um acontecimento, não consegui associar com outros textos ou informações acerca do tema. Apesar da crise entre árabes e israelenses ser algo recorrente, o texto, para mim, se mostrou muito obscuro. (VE 15)

Percebemos, na VE 15, que a aluna faz uma relação direta entre expressão subjetiva e texto literário. Na VE 2, o aluno busca definir o que seja um texto literário, destacando o uso conotativo das palavras. Nesse sentido, lemos a apreciação manifestada na VE 1 como uma percepção do literário:

Gostei muito de ler o texto, pois a interpretação dele está além da língua. (VE 1)

Entendemos a afirmação “a interpretação (...) além da língua” como, de alguma forma, a essência do próprio literário, cuja materialidade, apesar

de verbal, pode escapar às análises textuais das mais diversas ordens, estando o impacto da leitura por vezes em algum lugar “além da língua”.

Outros alunos buscaram explicitar o que chamaram de uma “poética da guerra” (VE 12). Identificada essa vertente literária da carta, a aluna buscou reconstituir o caminho feito pelo narrador para sua expressão:

(...) ele ( o pai) usa metáforas para colocar sua situação e como a “poética” de uma guerra seria. Ele descreve as máquinas sanguinárias (talvez tanques) pela sua grandeza, brutalidade e brilho; um misto de fascínio e medo. (...)

ele e sua esposa exploram a nostalgia por meio de memórias olfativas e por meio de metáforas para descrever a terra natal. (...) (VE 12)

Assim, de uma maneira ou de outra, a maior parte das VEs sublinha um trabalho sobre a língua que diferencia o texto desta carta ao uso da língua no cotidiano. O comentário recorrente sobre o uso de metáforas é o maior índice dessa percepção. É interessante observar, entretanto, que o recurso à metáfora não é exclusivo da linguagem poética, muito pelo contrário. Segundo Massaud Moisés em seu Dicionário de termos literários (1974:325), a metáfora é o próprio peróxido de “traduzir em palavras os nossos pensamentos e sensações”. O que distinguiria a metáfora do texto poético da metáfora da linguagem cotidiana ou mesmo científica é seu grau de ambigüidade (de polissemia). Quando nos referimos à asa da xícara, designamos um objeto por meio da alusão a outro cuja forma assemelha-se; porém, quando lemos “notre mémoire est un peu de sable suspendu à la lumière”, sabemos que não se trata mais de designar um objeto concreto no mundo, mas sim de uma construção de teor imagético menos denotativo e (por que não?) mais abstrato. Essa percepção, aliás, é manifestada por uma aluna. Nesta VE, vemos uma síntese do sentido que, para essa leitora, as diversas metáforas presentes na carta construíram:

O texto tem um aspecto um pouco filosófico, abstrato. Ele faz paralelos, fala da natureza, da resistência dela como do homem à guerra.

Um pouco complexo, nem sempre um parágrafo dava dicas ao que poderia vir [grifo nosso] (VE 19).

Se nossos leitores construíram sentido ao ler o texto de Jelloun (e todos de fato o fizeram), foi também porque puderam identificar o uso de metáforas e suas implicações no texto, tanto em relação ao fato de ser poético, quanto às relações que tais metáforas (ou “paralelos”) estabeleciam. Observamos, entretanto, que, como na verbalização acima, vários atribuíram a essas metáforas a complexidade do texto e, consequentemente, sua dificuldade para lê-lo. Muitos são os comentários nesse sentido:

Acredito que a linguagem metafórica dificulta um pouco a interpretação. (VE 5)

Como o autor usa muitas metáforas o texto acaba tendo um caráter literário, o que dificulta a leitura. (VE 6)

As metáforas também ...[não entendi] não entendi quase nenhuma.

As amendoeiras...não entendi se é outra metáfora ou algo literal mesmo. (VE 10)

(...) a forma como foi escrito dificulta o entendimento. Não se trata de um texto técnico (...)

como se trata de um texto poético e de uma descrição pessoal, não consegui associar com outros textos (...) (VE 15)

A minha maior dificuldade de compreender o texto foi o fato de ser um texto poético, cheio de conotações e expressões que desconheço. Acho que textos mais descritivos ou acadêmicos são de leitura mais fácil, já que não conheço muito bem a língua francesa, pois não possuem muitos termos em sentido figurado e o tema é mais objetivo. (VE 16).

A reação negativa desses alunos em face da constatação de que se trata de um texto literário pode ser compreendida de várias formas, nós a compreendemos de duas maneiras, que serão tratadas não em ordem de importância, mas sim em relação ao nosso contexto de ensino.

Em primeiro lugar, a tônica dos cursos de instrumental é, de fato, priorizar textos informativos, objetivos, denotativos (ainda que saibamos que a oposição entre subjetividade e objetividade seja passível de discussão e que todo texto objetivo é autoria de sujeitos, logo expressa um recorte, um ponto de vista); principalmente quando se trata do primeiro semestre de curso, sendo a avaliação do rendimento dos alunos efetuada nessas bases.

Isso se explica pelo fato de a compreensão destes textos ser menos exigente e pelo fato de que as primeiras semanas do curso são muito mais voltadas para as estratégias descendentes de leitura, como forma de sensibilizar o aluno para os macroprocessos, processos de elaboração e processos metacognitivos.

Tal dinâmica de curso acaba por gerar um “horizonte de expectativas” no aluno, talvez nem sempre em relação ao texto a ser lido, mas na maneira como proceder com tal leitura. Ao ver-se frente a um texto cujas respostas tradicionais às perguntas “quem?”, “quando?”, etc., não se revelam satisfatórias para a compreensão do texto, mas consistem apenas em uma (primeira) etapa para sua leitura, talvez esse aluno sinta-se desencorajado ou mesmo desmotivado para dar continuidade à leitura. E percebemos, aqui, um impasse na formulação dos cursos de instrumental. Se na abordagem global, desenvolvida ao longo dos anos 1980, foi necessário “tranqüilizar leitores em crise” desenvolvendo uma metodologia para leitura de textos informativos, acreditamos que encorajar, hoje, apenas a leitura de textos dessa natureza ou aceitar apenas que o aluno identifique a “idéia principal” de um texto para avaliar seu aproveitamento pode levar a uma acomodação do público de leitores universitários que temos, também, a responsabilidade de formar. Retomamos a pergunta formulada anteriormente: afinal, que leitores um curso voltado para a leitura pretende formar?

Em segundo lugar, acreditamos que o papel da literatura na formação escolar pode parecer paradoxalmente obrigatório e inútil para os alunos. O que gera uma reação negativa por parte dos mesmos. Discutimos anteriormente que a leitura literária no ensino de línguas estrangeiras, sobretudo do FLE, viveu diferentes momentos, mas, em síntese, há, atualmente, um consenso sobre seu valor positivo na formação dos leitores. Vimos também que, apesar de tal consenso, a maneira como e, sobretudo, quando trabalha-la permanece um tema a ser debatido. Identificamos, em função da maneira como reagem os alunos, uma maior reatividade ao fato de tratar-se de um texto literário por esse implicar maior empenho do leitor para que seja lido (o que discutimos no parágrafo anterior) e porque essa

leitura é percebida como difícil e sem aplicação para não especialistas. A literatura seria, para parte dos alunos, algo nobre e sem valor. Nobre porque aprendemos a admirar autores e obras na escola, os “clássicos da literatura” podem receber belas edições e ser uma pessoa letrada é um sinal de diferenciação (quase sempre positivo). No entanto, nem sempre a razão pela qual tal acúmulo de leituras é algo bom, valorizado, está clara. Parte de nossos alunos não aprendeu a relacionar o valor desse tipo de leitura a sua vida cotidiana, o que acaba por tornar tal atividade inútil.

Observamos em nossos alunos uma reação negativa mais associada à categoria “texto literário” do que à leitura do texto propriamente dita. Em outras palavras, no texto lido nessa primeira etapa das verbalizações escritas, todos, inclusive os que expressaram grande dificuldade para compreendê-lo, perceberam quais conflitos estavam em jogo e muitos identificaram seu caráter literário ou a predominância do uso de metáforas. Mas constatar esse aspecto do texto implicou, para parte do grupo, afirmar que essa era uma leitura difícil.

Uma das razões que nos levaram a retirar a informação de que se tratava de um texto literário era verificar se os alunos chegavam a essa conclusão e como reagiam a ela tendo efetuado parte da leitura. Uma experiência que poderia ter sido realizada nesse contexto, para que pudéssemos aprofundar a discussão, seria distribuir uma parte dos textos com a informação paratextual de que se tratava de um texto poético. Isso, entretanto,não foi realizado, porém, o que percebemos ao longo de nossa experiência no ensino do FLE e do FI é um bloqueio inicial maior à leitura quando os alunos sabem estar diante de um texto literário, hipótese a ser verificada em um trabalho posterior a esta dissertação. O que as VEs parecem mostrar é que a leitura literária não só é possível nesse estágio da aprendizagem, como pode contemplar os elementos destacados por Séoud (1997) para a sua leitura: polissemia, cultura e mesmo (eventual) prazer. Mais do que provar a importância da leitura literária no ensino do FI, queremos discutir como essa se realiza nesse contexto e o que pode significar e trazer para o ensino da leitura em FLE.

Se acreditarmos que a leitura literária não é um meio para a aquisição de competências lingüísticas, mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser um lugar no qual tais competências se desenvolvem, há um outro aspecto que julgamos relevante na experiência da leitura que propusemos a nossos alunos: a experiência da alteridade. Ao lerem a carta de Jelloun, entraram em contato com um universo singular e distante de uma família árabe, por meio das metáforas, mergulharam na subjetividade dessa família. Durante a leitura, encarnaram o “tu” a quem a carta destina-se, tornaram-se o filho que, do céu, segue os seus. Esse é um aspecto da leitura que foi mais desenvolvido na segunda etapa do processo destinada às verbalizações orais, nas quais compartilhamos a compreensão do texto em pequenos grupos.

Além da dificuldade relacionada ao uso de metáforas e ao fato de tratar-se de um texto literário, outro aspecto levantado como problemático para a leitura do texto por um número considerável de alunos foi a dificuldade relacionada ao léxico da carta. De certa forma, tal dificuldade está relacionada ao próprio fato de o texto ser literário, pois um uso mais conotativo da linguagem, associado a palavras que não conformam um campo semântico muito evidente para os alunos, implicou um maior grau de dificuldade para a compreensão do texto.

A esse respeito, também ressaltamos o fato de que, embora manifestem não ter compreendido, muitos alunos identificaram as metáforas e esse uso mais conotativo da linguagem. Vemos, posteriormente, de que maneira essa dificuldade foi tratada nas verbalizações orais e como buscamos fazer com que o aluno tentasse resolver o que não entendeu sobre o texto por meio de sua própria leitura. Nas palavras de Dabène e Quet (1999: 115) “Partir da leitura do aluno para chegar à leitura do aluno”.

É interessante observar, entretanto, que os alunos responderam diferentemente à dificuldade sentida para compreender parte do léxico da carta. É justamente sobre essa diferença que tratamos a seguir.